O anúncio do vínculo entre o vírus zika e a microcefalia infantil não teve efeito nenhum sobre as vendas de produtos anticoncepcionais de uso feminino do Brasil, incluindo pílulas tradicionais, pílulas do dia seguinte, implantes e dispositivos intrauterinos (DIUs). Não houve aumento no consumo desses contraceptivos, mesmo depois de o Ministério da Saúde, em novembro de 2015, advertir as brasileiras que desejavam filhos para que adiassem seus planos, em vista da epidemia.
Os dados, que aparecem no artigo "Contraceptive sales in the setting of the Zika virus epidemic", publicado no periódico Human Reproduction, devem servir como alerta para o verão 2017, quando voltam a crescer os casos de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, e representam mais um sinal do “descalabro” do sistema nacional de planejamento familiar, diz o principal autor do trabalho, o pesquisador Luis Bahamondes, da Clínica de Planejamento Familiar do Departamento de Obstetrícia e Ginecologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp.
O artigo se debruça sobre os números de venda de anticoncepcionais, entre setembro de 2014 e agosto de 2016, fornecidos por duas empresas farmacêuticas, uma brasileira e uma multinacional, que pediram para não ser identificadas. “Elas tratam esses números como se fossem segredo de Estado”, afirmou o pesquisador.
O texto do artigo reconhece que o trabalho tem limitações – por exemplo, não foram monitoradas as vendas de camisinhas – mas oferece a interpretação de que a estabilidade nos números não parece refletir uma indiferença das mulheres à questão do zika, mas sim a dificuldade de acesso a métodos contraceptivos mais eficazes que as pílulas comuns, como os DIUs.
Bahamondes diz que seria “simplista” culpar apenas os governos — na esfera federal, estadual, municipal – pela situação, embora reconheça que um sistema que, na prática, se apoia na venda de pílulas no balcão das farmácias é “cômodo” para o Estado. Ele aponta ainda problemas na formação dos profissionais de saúde, a concentração do planejamento familiar nas mãos dos médicos, já que enfermeiros também poderiam ser capacitados para a atividade, e uma indiferença social generalizada para com a questão. “É a sociedade como um todo que não se mexe. A sociedade se mexeu para conseguir antirretrovirais para as pessoas vivendo com HIV, e foi bem-sucedida”, compara.
“A prova” de que o gargalo está no acesso aos métodos, e não no interesse das mulheres, pode ser encontrada no ambulatório da Unicamp, disse Bahamondes. “A procura aqui é monstruosa”, afirmou.
“Este artigo é um sinal de alerta”, disse. “Mas um sinal de alerta que não aponta culpados. Porque os responsáveis são muitos: a sociedade, as faculdades de Medicina, as faculdades de Enfermagem, sociedades médicas, programas de residência médica”.