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O carnaval, espaço da liberdade por excelência, este ano derruba mais um tabu: sua própria liberdade. Representantes de blocos do Rio de Janeiro e São Paulo declararam que não tocarão algumas marchinhas tradicionais por considerarem as letras machistas, racistas ou homofóbicas. Reações contrárias e favoráveis tomaram a mídia e as redes sociais. O que para alguns foi entendido como um atentado à liberdade de expressão, para outros, foi considerado mais um pequeno passo na luta contra a discriminação e o preconceito.
Marchinhas como A cabeleira do Zezé e O teu cabelo não nega estão na berlinda. Há mais de 50 anos tocadas dentro e fora dos salões, aparentemente sem incomodar ninguém, viraram objeto de discussões. Conforme explica a historiadora Maria Clementina Pereira Cunha, professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), “quando Lamartine Babo escreveu O teu cabelo não nega, ele não pensava que estava sendo racista. Era um momento de grande sucesso das teorias da mestiçagem como marco diferencial para a identidade do país. Elas nunca atacaram a questão do racismo, ao contrário, tornavam-na simpática, palatável.”
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Para Sirio Possenti, professor do Instituto de Estudos de Linguagem (IEL) da Unicamp, o que mudou não foi a conotação discriminatória das letras, mas a mobilização das minorias ofendidas. “No passado as pessoas não tinham organização suficiente para se defender. Os homossexuais se escondiam, não queriam nem aparecer.”
Fortalecidos, os movimentos feminista, gay e negro passaram a questionar as letras carnavalescas. A socióloga Camila Teixeira Lima cita alguns exemplos de blocos feministas como o pernambucano “Ou Vai ou Racha”. "Elas [as participantes do grupo] nunca tocaram músicas homofóbicas, racistas, nem machistas. O que talvez tenha acontecido agora é que o debate chegou aos blocos tradicionais e atingiu aquela classe média branca masculina, que nunca teve seu lugar de fala questionado.”
Segundo Camila, que é doutoranda no IFCH, a polêmica surge do estranhamento por parte da população historicamente pouco acostumada a limites. "É uma elite que nunca teve sua voz calada, sempre foi muito violenta e falou o que quis. De repente, alguns grupos, que sempre tiveram que lutar muito para ter voz, conseguem conquistar alguns direitos. Daí vem essa resposta
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ofensiva”.
No estado da Bahia foi aprovada, em 2012, a Lei 'Antibaixaria', que proíbe a contratação com dinheiro público estadual de artistas que tenham no repertório músicas ofensivas a populações oprimidas. “Quer tocar toca, mas não vai ser com dinheiro público que você vai fazer ofensas a grupos que estão em situações de opressão”, conta Maíra Kubík Mano, doutora pelo IFCH e professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA),
O mais importante do debate talvez seja olhar para as contradições que ele aponta, destaca Carla Vizeu, cantora, compositora e mestre pelo Instituto de Artes (IA). “Acho que não está mais na época de falar que ‘a cor não pega’ ou ‘será que ele é’. É hora de retratar a mudança que está acontecendo. Essa é função social do artista, quebrar padrões, usar sua voz pra fazer diferença no mundo.”
Carla Vizeu é uma das autoras de Marchadelas, que participa, nesta terça-feira (21), da final do 1º concurso de marchinhas do Tonico´s Buteco, um bar no centro de Campinas. “A proposta foi colocar a voz da mulher protagonizando o que a gente vive no carnaval”, explica.
Liberdade de expressão e censura
A tensão entre liberdade e limites é apontada também pelo professor Possenti como uma chave para entender a polêmica. “O que importa é perceber que há essas forças em confronto: tem um grupo que acha que pode tudo, tem um grupo que acha que tem limites”, pontua. “Todo o controle, Freud diria, é uma chatice. A sociedade reprime comportamentos que ela considera inadequados à sua sobrevivência. No caso das marchinhas, o que é o chato? É você me dizer que eu não posso me divertir às suas custas? Por que não sou eu o chato que quero me divertir às suas custas?”
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No campo da comunicação a discussão se acirra. Qualquer limite ou regulação é imediatamente compreendido por muitos como censura. A liberdade de expressão é erigida como valor absoluto. No limite, como aponta Possenti, “Eu posso dizer o que eu quiser. Você pode não gostar e não ler”, lembrando as palavras do cartunista Laurent Sourisseau, diretor do Charlie Hebdo, no programa Roda Viva, em julho de 2015.
Já para a professora María Kubík, a defesa da liberdade de expressão nesses termos é na realidade uma defesa da liberdade de opressão. “É a liberdade de você continuar falando tudo e qualquer coisa mesmo que isso ofenda ou violente alguém, mesmo que isso mantenha o outro em posição de subordinação diante de você.”
Quando o assunto é linguagem as opiniões parecem ainda mais divergentes. Linguistas como Possenti apontam como equívoco teórico brigar pelo uso ou não de determinada palavra. “Se você troca uma palavra por outra, mas a situação não muda, em pouco tempo essa palavra vai conotar o que conotava a outra”, argumenta. Por outro lado, Kubík acredita que a cultura também deve ser encarada como um campo em disputa. “Conforme a gente vai trocando e mudando palavras pode haver também uma mudança cultural. Cada letra e cada palavra é também um trincheira, um espaço de disputa e de debate”.
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