A Universidade de Leiden, na Holanda, foi fundada 75 anos depois da “descoberta” do Brasil. É nesta instituição, considerada uma das mais importantes da Europa, que leciona a antropóloga Mariana Françozo, uma brasileira nascida em Campinas e que realizou toda a sua formação na Unicamp. Lá, Mariana ministra um curso de Museologia Crítica e desenvolve estudos relacionados principalmente às coleções indígenas pertencentes aos museus europeus. Recentemente, um projeto de pesquisa da antropóloga foi contemplado com um financiamento de 1,5 milhão de euros pelo European Research Council (ERC), agência de fomento da União Europeia. O trabalho fará a releitura do livro História Natural do Brasil, publicado na Holanda em 1648. O desafio é ‘desconstruir’ a obra, que é um tratado sobre história natural, para tentar entender as diferentes camadas de saberes indígenas e não indígenas presentes em suas 400 páginas. Em meados de julho, Mariana esteve na Unicamp, onde participou da Escola São Paulo de Ciência Avançada organizada pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Num dos intervalos de seus compromissos, ela falou ao Portal da Unicamp sobre a experiência na Holanda, sobre suas pesquisas e sobre a relação científica e afetiva que mantém com o Brasil.
Como foi a sua trajetória acadêmica na Unicamp, antes de se transferir para a Holanda?
Eu nasci em Campinas, cresci no Centro. Ingressei em 1998 na Unicamp, onde fiz a graduação em Ciências Sociais. Na sequência, também fiz o mestrado em Antropologia Social e o doutorado em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia. Ou seja, toda a minha formação foi feita na Universidade, sob a orientação do professor John Monteiro [John Manuel Monteiro, falecido em março de 2013].
Como surgiu o interesse pela temática indígena?
Bem, este é um assunto muito importante para a Antropologia. Além disso, fui influenciada pelo professor John Monteiro, que era considerado o grande nome da história indígena no Brasil. Quando comecei a trabalhar com ele, recebi muitas sugestões sobre temas e bibliografias que foram fundamentais para minhas pesquisas.
Um dos resultados dos seus estudos foi o livro “De Olinda a Holanda – O gabinete de curiosidades de Nassau’, lançado em 2014. Do que trata a obra?
Durante o Século XVI e XVII, principalmente na Europa, surgiram as chamadas coleções de curiosidades. Essas coleções eram compostas por objetos originários de várias partes do mundo, que os viajantes europeus adquiriam e levavam para seus países. Entre esses objetos estavam muitos artefatos indígenas, como adereços plumários, objetos de uso ritual ou uso diário, armas, entre outros. Estas coleções também incluíam espécies naturais, como plantas e animais empalhados ou desenhos e aquarelas representando plantas e animais. Os europeus colecionavam esses itens para estudos ou somente para admirá-los. Mauricio de Nassau, que governou a colônia holandesa no Nordeste do Brasil entre 1637 e 1644, também tinha a sua coleção de curiosidades. O livro mostra como Nassau utilizou essa coleção para fazer possível o governo dele no Brasil. À medida em que ele fazia alianças diplomáticas com grupos indígenas, grupos luso-brasileiros, entre outros, ele também promovia a troca de presentes com eles. Os objetos que Nassau recebia formaram o gabinete de curiosidade dele.
O que aconteceu com essa coleção?
Nassau a levou para a Europa, quando retornou ao continente. Ele continuou adotando o mesmo procedimento como estratégia política. Usava a coleção para presentear apoiadores e obtinha em troca, por exemplo, títulos de prestígio e nobreza. Hoje, sobrou pouca coisa da coleção. Os objetos estão dispersos por várias partes. Há itens espalhados pela Holanda, Dinamarca, Alemanha, França e Inglaterra.
O livro foi lançado quando a senhora já estava na Holanda. Como surgiu a oportunidade de lecionar na Universidade de Leiden?
Eu havia defendido o doutorado em 2009. Em 2011, surgiu uma vaga para professor de Estudos em Museologia em Leiden. Aí eu pensei: vou prestar o concurso para ver o que acontece. Fui aprovada em primeiro lugar e me transferi para a Holanda. O contrato inicial era de três anos, que foi renovado por mais três anos. Atualmente, o contrato se tornou permanente.
Que disciplinas ministra em Leiden?
Eu ministro um curso denominado Critical Museology, algo como Museologia Crítica. É uma tentativa de pensar, sob o ponto de vista histórico e antropológico, como são formadas as coleções dos museus, para que servem nos dias atuais, como estudá-las e como fazer o uso ético e crítico delas. Atualmente, os museus europeus sofrem uma forte crítica – correta, segundo o meu ponto de vista – em torno da proveniência das suas coleções. Algumas delas foram obtidas em circunstâncias questionáveis. No curso, nós fomentamos a reflexão sobre esses temas. Também dou aula de metodologia de pesquisa.
A questão do acesso está no escopo dessas reflexões? Quando digo acesso, me refiro tanto aos “produtores” desses objetos quanto ao público em geral.
Sem dúvida. Muitos museus estão preocupados em saber se os indígenas do Brasil e de outros países sabem da existência dessas coleções e se estão interessados em estudá-las ou até mesmo em recuperá-las. No curso, nós abordamos essas questões. Sobre o acesso do público, também é um tema importante tanto na Holanda quanto no restante do mundo. As coleções dos museus etnográficos holandeses estão disponibilizadas online, em sua totalidade, desde 1999. Basta entrar e baixar o arquivo. O acervo do Rijksmuseum, que reúne importantes obras de arte, também está 100% online. Todo o conteúdo pode ser usado de graça. Os museus estão notando, porém, que disponibilizar é apenas o primeiro passo. O segundo passo é tentar encontrar pessoas ao redor do mundo, inclusive os produtores dos objetos, como você mencionou, que tenham interesse na coleção e que queiram trabalhar junto com os museus. Ou seja, só expor não basta para fazer o conhecimento avançar. O museu se torna verdadeiramente democrático quando exibe suas coleções e ouve o que o público tem a dizer sobre elas.
Como tem sido a sua experiência científica e acadêmica na Holanda. Há menos burocracia e mais recursos por lá?
Fora do Brasil também há burocracia. Na Holanda, há a diferença da sociedade, que é muito direta. As pessoas dizem o que pensam, sem filtros. Nos primeiros meses, estranhei. Veja, não é uma maneira rude de falar. É uma forma objetiva. Tem a ver com a questão cultural. No fim das contas, isso ajuda a fazer com que o trabalho flua. Obviamente, o pesquisador que trabalha na Holanda conta com mais recursos que no Brasil, e isso faz muita diferença. Lá, a sociedade tem clara a importância da universidade para a formação das pessoas e para o desenvolvimento do conhecimento. No Brasil, também sabemos dessa importância, mas os investimentos não são tão significativos quanto lá.
Mantém cooperação com pesquisadores brasileiros, os da Unicamp em particular?
Tenho um olhar afetivo pela Unicamp. É a minha casa. Tenho muitos colegas nos departamentos de Antropologia e História [ambos do IFCH] com os quais mantenho contato. Nós organizamos eventos e participamos de congressos juntos. Acabei de participar, aqui na Unicamp, da Escola São Paulo de Ciência Avançada, que apresentou um nível excelente. Esse contato existe e fazemos pesquisa colaborativas sempre que possível. Aliás, gostaria de registrar que a Europa em geral e a Holanda mais especificamente estão muito interessadas na ciência produzida no Brasil. As instituições são muito abertas para receber doutorandos e pesquisadores daqui. Os holandeses reconhecem a qualidade dos nossos cientistas. A minha experiência, lá, mostra que nossos profissionais não deixam nada a dever aos profissionais de outros países.
Um projeto seu acaba de receber um financiamento de 1,5 milhão de euros da União Europeia. Qual o tema desse estudo?
O projeto de pesquisa nasceu da junção da minha trajetória na Unicamp, focada no estudo do Brasil holandês, com a minha experiência na Holanda, onde estudo as coleções indígenas e ministro o curso de Museologia. É um projeto que tenta juntar as duas coisas, partindo do livro História Natural do Brasil, publicado na Holanda em 1648 [obra de Guilherme Piso e George Marcgraf]. A obra é um tratado da história natural, que ficou muito famoso. O que meu projeto quer fazer é reler esse livro não como um tratado da ciência europeia, mas como uma compilação de saberes indígenas.
E como pensa em fazer essa releitura?
O financiamento vai me permitir contratar uma equipe que será formada por dois doutorandos, um pós-doc e um assistente de pesquisa. Teremos cinco anos para trabalhar. Vamos estabelecer cooperações com pesquisadores da Europa e Brasil. O desafio é ‘desconstruir’ o livro para tentar entender as diferentes camadas de saberes indígenas e não indígenas presentes em suas 400 páginas. A obra traz informações como o nome da planta ou animal em língua indígena, a tradução para o português e, eventualmente, a tradução para o holandês. Também traz explicações sobre a morfologia das plantas e dos animais, além de uma explicação sobre como os indígenas usavam essas espécies. Tudo isso acompanhado de ilustrações. É um material extenso e fantástico, que vai permitir que exploremos questões relacionadas à botânica, zoologia, linguística e cultura material, entre outras. Daí a importância de estabelecermos parcerias com profissionais de várias áreas.
A Unicamp aprovou recentemente o princípio das cotas étnico-raciais. Em uma das audiências públicas que discutiram o assunto, um professor universitário de origem indígena disse que as cotas são importantes porque permitirão que os indígenas deixem de ser somente objeto de pesquisa, para também contribuírem para o desenvolvimento da ciência. A senhora concorda com essa posição?
Eu penso que é isso mesmo. É uma mudança que temos sentido há alguns anos, e que esse professor colocou muito claramente. Trata-se de uma mudança que será muito positiva para ciência. A ciência avança quando tem diversidade. É importante que o ambiente científico reúna pessoas com visões de mundo diferentes. Meu novo projeto aposta nisso. O livro que vamos estudar contém epistemologias indígenas, formas de pensar o mundo natural que nem sempre são levadas a sério. A aposta é que encontraremos outras, com o auxílio de especialistas de diversas áreas e incluindo igualmente especialistas indígenas, que têm conhecimentos que nós não temos e têm interesses que precisam ser levados a sério. A questão das cotas é importante. Fico feliz que a Unicamp tenha adotado essa medida. Ela é importante por causa da questão histórica e política, certamente, mas é importante também porque faz com que a ciência ganhe força.