A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que 868 milhões de pessoas apresentam subnutrição calórica, 26% das crianças do mundo apresentam raquitismo, 2 bilhões de pessoas sofrem deficiência de um ou mais micronutrientes e 1,4 bilhão de pessoas apresentam excesso de peso, dos quais 500 milhões são obesas.
No caso de gestantes, a desnutrição altera o desenvolvimento embrionário e fetal, determinando a suscetibilidade de doenças na idade adulta. Este fenômeno, denominado programação fetal, é o processo pelo qual modificações ambientais intrauterinas ou durante a infância moldam, em longo prazo, a fisiologia de órgãos e tecidos, assim como a homeostase corporal.
Uma pesquisa conduzida na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp por Gabriel Boer Grigoletti Lima pretende mostrar as dimensões e implicações do estresse gestacional e desnutrição no desenvolvimento de desordens psiquiátricas futuras.
De acordo com Gabriel, a desnutrição proteica no início da vida acarreta mudanças duradouras na estrutura e na neuroquímica no sistema nervoso central (SNC), assim como anomalias comportamentais. O cérebro é extremamente sensível à programação pré-natal e diversos agentes como fatores de crescimento, de transcrição e nutrientes podem afetar permanentemente o desenvolvimento neural.
“Busquei avaliar os efeitos da restrição proteica durante a gestação e amamentação sobre a estrutura do hipocampo na prole de ratos machos e o comportamento relacionado à memória e emoções, principalmente a ansiedade e o medo”, explica Gabriel.
Observações feitas a partir do período histórico conhecido como Fome Holandesa provocada pelo bloqueio nazista no último ano da Segunda Guerra Mundial permitiu a pesquisadores relacionarem a exposição pré-natal à fome com transtornos afetivos na idade adulta, estabelecendo um risco duas vezes maior de desenvolvimento de esquizofrenia na população exposta à fome severa no início da gestação.
O estresse gestacional afeta diversas regiões neurais incluindo hipocampo, amígdala, corpo caloso, neocórtex, cerebelo e hipotálamo e, frequentemente, resulta em redução no volume dos tecidos que compõem estas estruturas. A formação hipocampal tem sido alvo de diversos estudos devido a sua importância na plasticidade neural, na neurogênese e na regulação de processos cognitivos.
“Estudos em ratos indicam que a desnutrição proteica pode causar um decréscimo no número de receptores de glicocorticoides no hipocampo, alterar a sensibilidade do Sistema Nervoso Central e, consequentemente, a resposta do organismo ao estresse”, afirma Gabriel.
Os estudos demonstraram, pela primeira vez, que a exposição materna à restrição proteica durante o desenvolvimento neural da prole causa importantes mudanças morfológicas no hipocampo e pode tornar estes animais vulneráveis a distúrbios neurais na idade adulta.
A pesquisa, conduzida sob orientação do médico José Antonio Rocha Gontijo, confirma a teoria do "cérebro egoísta", um paradigma recente que postula que, para manter estável seu próprio fornecimento de energia, o cérebro modula o metabolismo da energia na periferia regulando tanto a alocação quanto a ingestão de nutrientes.
“Assim, podemos afirmar que a teoria do cérebro egoísta explica a manutenção da massa encefálica. Entretanto, a proporção dos diferentes tipos celulares é profundamente alterada, o que pode expandir nosso entendimento sobre a adaptação ao estresse e a neurorregeneração em estados neurocomportamentais tidos como anormais”, explica Gabriel.
A pesquisa mostrou também, pela primeira vez, expressiva e significativa redução do numero de neurônios e células-tronco no hipocampo dos animais que sofreram restrição proteica durante o período de desenvolvimento, e que a exposição dos animais ao ambiente enriquecido promoveu a recuperação do número de neurônios e do processo de proliferação celular, particularmente de células-tronco.
“Os animais expostos ao ambiente enriquecido apresentaram maior atividade locomotora e capacidade de exploração e diminuição significativa no comportamento que reflete medo e ansiedade durante os testes em laboratório”, explica Gabriel.
Próxima etapa
As pesquisas realizadas no laboratório revelam as dimensões e a implicação do estresse gestacional em mecanismos de doenças futuras, particularmente desordens psiquiátricas.
“A importância destes fatos aponta a necessidade de uma abordagem translacional, que seja capaz de promover um dialogo entre achados experimentais e a demanda clínica, no sentido de melhor conhecer os mecanismos destas doenças e sua abordagem terapêutica”, explica Gabriel.
A pesquisa é a continuação da dissertação de mestrado Neurogênese e estrutura dendrítica hipocampais em ratos submetidos à restrição proteica durante a ontogênese encefálica: estudo comportamental e influências do ambiente enriquecido, defendida por Gabriel em 2015 dentro do programa de pós-graduação da Fisiopatologia Médica.
Recentemente, houve uma aproximação dos pesquisadores com os profissionais da Saúde Mental da Unicamp. Participam deste projeto José Antônio Rocha Gontijo, Patrícia Aline Boer, Paulo Dalgalarrondo e Amilton dos Santos Junior.
“A ideia é proporcionar uma retroalimentação positiva entre a Clínica em Psiquiatria e as pesquisas experimentais. As demandas já foram discutidas e os projetos esboçados. Acreditamos que, em breve, tudo seja posto em prática, gerando um ganho importante à descoberta de novos saberes e ampliando nossa contribuição à sociedade”, diz o pesquisador da FCM.
Dissertação: Neurogênese e estrutura dendrítica hipocampais em ratos submetidos à restrição proteica durante a ontogênese encefálica: estudo comportamental e influências do ambiente enriquecido
Autor: Gabriel Boer Grigoletti Lima
Orientador: José Antonio da Rocha Gontijo
Área: Pós-graduação em Fisiopatologia Médica