Na tradição católica, relicário é um objeto litúrgico onde se guardam relíquias da Santa Cruz ou dos santos para contemplação pelos fiéis. Pode se aludir também a objetos que são utilizados para abençoar o povo antes da procissão. Essas tradições permeiam o imaginário popular e são ressignificadas em um espetáculo produzido pelo Núcleo BPI (Bailarino-Pesquisador-Intérprete) do Departamento de Dança da Unicamp, intitulado O corpo como relicário, que estreia nessa sexta-feira, às 20 horas. A apresentação será na fábrica Flaskô (Rua Marcos Dutra Pereira – em frente ao número 766), em Sumaré, SP. Quem perder a primeira apresentação, poderá vê-la também no sábado (26) e no domingo (27), no mesmo local, às 19 horas. A entrada é franca, e o espetáculo terá duração de cerca de uma hora e quinze minutos.
Nessa terça-feira (22), uma equipe do Portal Unicamp esteve no local dos ensaios do espetáculo para vislumbrar uma prévia do que será a primeira apresentação para os funcionários e a comunidade da própria fábrica Flaskô, que entrou em concordata em 2003 e passou a ser gerida de forma inédita no Brasil por seus operários, que fabricam tambores plásticos. Desde então, outros espaços da fábrica foram sendo ocupados por projetos culturais e festivais, relata a docente do IA Graziela Rodrigues, diretora do espetáculo.
Ao saber dessa possibilidade de se apresentar lá, a professora entrou em contato com os operários com um pedido especial: "precisamos de um espaço para produzir um espetáculo de dança, onde faremos apresentações e também desenvolveremos outros projetos de cunho social com a comunidade local”.
O pedido foi realizado. A diretora do espetáculo descreve que foram oito meses de intenso trabalho com o Núcleo BPI do IA até que o espetáculo chegasse ao seu formato final. O resultado é visualmente agradável para quem chega lá. As cores e a diversidade dos figurinos trocados no palco chamam a atenção do público para a realidade de um país que tem muitos desencantos, mas que também tem seus encantos. O corpo como relicário fala de histórias de superação com a ajuda do divino presente na cultura popular. "Foi feito com muito carinho por um time de sete bailarinos de primeira linha, todos formados pela Unicamp no curso de pós-graduação em Arte da Cena (mestres, doutores e pós-doutores), e de três alunos da graduação, que trabalham na parte técnica”, informa.
Num contexto de dança, o termo relicário foi empregado para se relacionar a um corpo cuja vivência dos movimentos já nele impressos, pelo tempo, remete ao sagrado presente nas manifestações populares brasileiras”, conta Graziela. Esse universo é povoado ricamente por mulheres ribeirinhas, parteiras Pankararus, stripteasers, boias-frias, cortadoras de cana, moradoras de rua, colhedoras de café, mulheres Xavantes, quebradeiras de coco babaçu, cozinheiras que remetem às baianas das escolas de samba, das retirantes, das ciganas, dos folguedos de bois, das manifestações do congado. “Tudo isso junto leva a uma explosão de significados”, ressalta Graziela. "Para começar, a apresentação subverte totalmente o conceito tradicional de espaço cênico para propor aos espectadores deslocamentos por mais de um ambiente."
Pesquisa
O Núcleo BPI emprega um método que vai além da dança e das artes, explica Graziela. Embrenha outros campos como os da sociologia e da psicologia. E o ponto alto do projeto foi a ida do grupo a Pirinópolis, em Goiás, onde permaneceram por 11 dias, nas festividades do divino. Foram vivenciar corpo a corpo elementos para a pesquisa de campo e para o laboratório de criação. Conjuntamente a essas pesquisas, foram realizados laboratórios permanentes, quando os personagens de cada intérprete foram vivenciados durante as manifestações do divino, junto às folias, aos mascarados, às cavalhadas e ao cotidiano das festas, nas cozinhas dos festeiros.
Graziela revela entusiasmada que, nesse formato, o espetáculo é inédito. “Teremos solos, duos e trios dentro de sete relicários que foram criados para o espaço cênico principal e cuja produção foi integralmente feita por profissionais formados pela Unicamp.”
As pesquisas criaram uma conexão na cena com questões humanas fundamentais: o navio negreiro que ainda navega, de não ter nada e ter tudo, de continuar festando, da vida pela vida e da resistência. “Isso tudo reverbera num corpo aberto que assume a sua identidade. Não cumprimos as imposições do mercado para fazer uma produção contaminada por modelos eleitos para serem seguidos. Fazemos uma abordagem contemporânea da dança e da arte da cena com a participação da comunidade ali retratada", diz.
Os intérpretes e a idealizadora do projeto garantem que esse trabalho foi uma escola para todos. O grupo chegou a um nível de amadurecimento de pesquisa no corpo num momento muito especial, quando se vislumbrava a iniciativa do Programa de Ação Cultural (Proac), que também veio com um apoio do Faepex. Todos os bailarinos já vinham com um repertório de experiências muito variado, o qual teve como resposta representações de um universo brasileiro ao qual não se dá muita voz. A ideia era buscar o empoderamento dos personagens.
Essas pesquisas já haviam sido realizadas, mas a questão mais artística, da elaboração da vivência em campo e depois em cena, foi maturada dentro desse projeto. “Conseguimos esse espaço e estamos aqui desde 2 de janeiro. Vivemos as alegrias e as incertezas da fábrica, quando faltaram água e luz, e festejamos a concessão desse espaço privilegiado, que dificilmente se encontra em Campinas”, assinala a professora. “Também nos encantou ver a postura dos operários: de assumirem a nossa pesquisa com todas as dificuldades que estavam atravessando.”
Mariana Floriano, doutoranda em Artes da Cena, já planeja desenvolver na fábrica Flaskô oficinas com as crianças da comunidade local, na faixa entre cinco e dez anos. O grupo como um todo também pretende estudar outras ações para envolver essa comunidade, principalmente nos estudos de mestrado, doutorado e pós-doutorado.
Para uma das bailarinas, Larissa Turtelli, professora da Dança do IA e chefe do Departamento de Artes Corporais, o mais difícil foi ter que lidar com a demanda do tempo, pois teve que conciliar a pesquisa, as suas aulas e algumas reuniões inadiáveis. Mas o esforço foi coroado de êxito, comenta ela, pois o resultado ficou muito bonito de ver.
Já Paula Caruso, também professora do IA, diz que esse espetáculo deve ser visto com amor, pois ele sensibiliza muito as pessoas. “Fala de questões brasileiras que são, antes, questões humanas. Foi construído a partir de muita proximidade entre os componentes e essa interação também será levada ao público durante o espetáculo.”
Estão programadas ainda outras duas apresentações. Esse espetáculo ainda será exibido no dia 2 de setembro, às 20 horas, e no dia 3 de setembro, às 19 horas, no Armazém Baixada, em Ribeirão Preto (Rua Duque de Caxias, 141, centro); e, nos dias 5 e 6 de setembro, às 20 horas, no CIS-Guanabara da Unicamp (Rua Mário Siqueira, 829, Botafogo, Campinas).
FICHA TÉCNICA
Direção: Graziela Rodrigues
Intérpretes: Elisa Costa, Flávio Campos, Larissa Turtelli, Mariana Floriano, Mariana Jorge, Nara Cálipo e Natália Alleoni
Assistente de direção: Paula Caruso
Participação especial e Apoio Técnico: Jaqueline Soraia, Flávia Pagliusi e Yasmin Berzin
Produção Cultural: Mariana Floriano e Núcleo BPI
Cenografia e figurino: Márcio Tadeu e Heloísa Cardoso
Assistência plástica: Gabih Fuziyama
Trilha sonora: Fábio Evangelista
Fotos e vídeos: João Maria
Iluminação: Francisco Barganian
Assessoria de imprensa: Confraria da Informação
Arte gráfica: Giacko Studio
Costureiras: Juliana Di Salvi e Creusa Ferreira Quintans