Todas as tardes de segunda-feira a gare do CIS-Guanabara é invadida por uma cantoria afinada, produzida na Galeria I. De lá, em meio a acordes de Vinícius de Moraes, de Adoniran Barbosa e de Vítor e Leo , baixos, barítonos e sopranos ensaiam novos arranjos de samba, bolero, MPB e música sertaneja. São cantores que integram o programa “Brincando com a Música”, sediado há três anos na Estação Guanabara, em que a caçula da turma tem 70 anos e a decana está prestes a completar um século de vida. E para comemorar o centenário de dona Jacy de Arruda Faccioni, que ocorre no próximo dia 17, o grupo se reuniu nesta segunda (12) para uma apresentação especial que contou com a presença de inúmeros convidados, entre eles, o reitor da Unicamp, professor Marcelo Knobel.
A comemoração do aniversário de dona Jacy marca a primeira visita oficial do reitor ao CIS após sua posse em abril desse ano. Para Marcelo Knobel, celebrar o centenário de uma integrante de um dos inúmeros grupos sediados na Estação Guanabara é um momento especial, não apenas para o grupo que atua no CIS, mas para toda a comunidade acadêmica. "Atividades como esta evidenciam o esforço da Unicamp na direção de uma integração maior com a sociedade, não só por meio da pesquisa e do ensino, mas também pela arte e a cultura".
Para o sociólogo e diretor do CIS-Guanabara, Marcelo Rocco, o projeto fomenta a participação de pessoas que queiram compartilhar o prazer de cantar e declamar poesias, sem que haja qualquer pré-requisito. Para além da ação, o mais importante para o CIS é fomentar iniciativas que atendam a terceira idade, uma vez que o mercado do entretenimento não prioriza essa faixa-etária. “Essas pessoas encontram nessas tardes não somente interlocutores da música e poesia, mas a possibilidade de ampliar o convívio com o outro, afastando de vez a condição de solidão e esquecimento, algo que muitos idosos estão sujeitos”.
Tudo na memória – Quem vê dona Jacy sem apoio de bengala e desprovida de óculos para leitura quando canta ou declama poemas não imagina que a senhora com pouco mais de 1 metro e meio de altura comandando um grupo de idosos está fazendo 100 anos. “Faço minhas sessões de fisioterapia com disciplina”, justifica. “Agora, as letras de música e de poemas, eu fico até tarde da noite decorando para não fazer feio na hora da apresentação. Por isso não leio diante do público”. Isso justifica a declamação do longo poema Vida Plena, de sua autoria, em que todo o conteúdo é previamente memorizado. “Só me preocupo com a interpretação”.
Natural de Sales de Oliveira (SP), dona Jacy traz em sua biografia passagens difíceis. “A vida foi dura comigo”, avalia. Aos seis anos de idade perdeu a mãe. Aos sete perdeu o pai, a casa e viu a família se desfazer quando as cinco irmãs foram distribuídas entre os parentes. “O mundo desabou sobre mim. Passei a ser a orfãzinha que todos tinham piedade. Perdi minha identidade e briguei com Deus. Só me reencontrei com ele aos 13 anos quando praticamente assumi a ‘guarda’ de minha irmãzinha, filha de minha tutora. Se hoje chego aos cem anos sem perceber é por causa da grande fé que tenho em Deus”, acredita.
Apesar dessa história que poderia alimentar o roteiro de uma novela ou de um drama cinematográfico, dona Jacy se recorda com saudade dos tempos de criança. “Minha infância foi muito linda. Segundo minha cabecinha que trabalha e que flutua muito, sempre imaginei que meu pai fosse um boêmio. Ele tocava vários instrumentos, violão, bandolim e chocalho. Ele trabalhava muito, acordava cinco horas da manhã voltava só à tarde, tomava seu banho, e saía para encontrar com poetas e escritores. Lembro que ele pedia para a mamãe me distrair até ele voltar. Acho que eu era uma das filhas mais salientes e ele gostava de ficar comigo”. Ela acredita que suas influências musicais e literárias tenham vindo de seu pai.
Viúva, três filhos, sete netos e 13 bisnetos, dona Jacy mostrava-se uma pessoa avançada, um ponto fora da curva para uma mulher que chegava à maturidade nos anos 40 do século passado, apesar disso ela insiste que “foi criada à moda antiga”. Casou-se aos 28 anos e numa época em que a maioria das mulheres era sustentada pelo pai ou marido, ela foi à luta, cursou contabilidade quando percebeu que o dinheiro proveniente de suas costuras não era algo muito seguro. “Muita gente pedia o serviço e não pagava. Era difícil”, lamenta.
Afirma ter descoberto sua veia literária já em Campinas, quando passou a coordenar uma oficina de poesia na Associação de Moradores do Bairro da Vila Marieta. No entanto, dona Jacy nutria dois sonhos que se realizaram quando a maioria das pessoas já teria pendurado as chuteiras: fez magistério e tornou-se professora de pré-primário aos 72 anos e subiu ao palco na condição de atriz aos 90, quando interpretou um trabalho realizado no Teatro do Sesc. “No magistério eu era a substituta virtual. Quando faltava professor, alguém me telefonava em cima da hora. Eu ia correndo, mas com uma alegria...”
Música e poesia – Seu interesse pela arte mantém vivo no grupo “Brincando com a Música”, que na verdade, é uma espécie de sarau em que os idosos dividem os ensaios em dois momentos. Dona Jacy coordena os trabalhos de literatura. “Temos uma agitação bastante grande. Ensaiamos poemas, declamamos e tudo termina com a apresentação de um jogral. Há poesia individual também.” Esse é um dos momentos em que o militar reformado, Jacyro Bertozzo, 80 anos, expõe seu talento quando declama poemas de seu livro Cordel Paulista.
Na segunda parte dos trabalhos, o grupo ensaia o coral, sob a coordenação de dona Mildred Ravizza, 73 anos, que logo avisa: “Aqui não tem lugar para a ‘sofrência’ [também conhecida como dor de cotovelo], músicas desse gênero não têm espaço no repertório”, afirma com a autoridade de quem comanda essa atividade musical há muitos anos. Ela lembra que os ensaios ocorriam no Sesc desde 2003, porém as oficinas ali sediadas ganharam novos formatos e o grupo ficou à deriva. “Mas um trabalho desse não podia terminar dessa forma. Ainda bem que a Unicamp abriu suas portas e hoje estamos aqui, muito felizes”.
Dona Marilisa Matiazzo Andreoli, 79 anos, a mais nova integrante do grupo [nova de casa e não de idade, faz questão de afirmar] é um retrato dessa felicidade dos idosos: “Nos sentimos muito alegres. É uma terapia. Quando termina o ensaio não vejo a hora de chegar a próxima segunda-feira para estar aqui novamente”. O aposentado César Maiolini, 73 anos, voz marcante do coro masculino e sempre um dos primeiros a chegar, procura transitar com a mesma desenvoltura na música e na literatura. Além de cantar afinado, pouco antes da homenagem, fala baixinho com orgulho sobre a poesia que escreveu para esse encontro. “Dona Jacy não sabia de nada, foi uma surpresa que fiz para ela”, fala orgulhoso.
Mildred Ravizza exalta a importância do grupo, o enorme bem que seus integrantes fazem quando se apresentam a cada dois meses na Casa de Terapia Reviver. “Faz um bem enorme para eles e para nós”. O número de integrantes do grupo “é um pouco flutuante. Os médicos atrapalham nossos ensaios”, afirma de maneira bem humorada. Dona Jacy, atenta, interfere na conversa. “Nossa coordenadora musical é muito competente e exigente. Se não ensaia, não canta. Os arranjos são únicos e ninguém pode atravessar aqueles que estão cantando certo. Ela [Mildred] não gosta quando eu falo isso, mas é a pura verdade. É por isso que esse grupo deu tão certo.” Dona Jacy acrescenta que o CIS-Guanabara é um espaço para o idoso “expressar e extravasar seus sonhos poéticos. A música faz muito bem para o espírito, é um momento de êxtase”.