A cada quatro anos, milhões de brasileiros voltam seus olhares aos televisores nos horários das partidas da Copa do Mundo. Ruas e casas são enfeitadas de verde e amarelo, comércio de camisas vai a todo vapor, o assunto mais buscado nas mídias digitais é o Mundial. Esse poderia ser o cenário no país exatamente nesta quarta-feira (13), a um dia da abertura do maior evento esportivo do planeta. No entanto, nem o bom desempenho da atual Seleção comandada por Tite – que se classificou com tranquilidade nas Eliminatórias – se reflete em entusiasmo entre a população. A apatia foi confirmada em algumas pesquisas de opinião. O Datafolha publicou, no início de junho, que 53% dos brasileiros afirmam ter desinteresse pelo evento – em 1994, quando o Brasil conquistou o tetra, esse número não passava de 20%. Nas ruas, comerciantes reclamam de fracas vendas de apetrechos festivos e artigos de decoração e vestuário. Corrupção, greve de caminhoneiros e pré-candidatos à Presidência da República foram os assuntos mais comentados no Twitter na primeira semana de junho - o dobro de menções à Copa - segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Os motivos parecem ir além do fatídico resultado “7x1” contra o time alemão, que tirou a Seleção brasileira da Copa de 2014. O evento, aliás, realizado no Brasil, contou com exorbitantes investimentos em obras, várias superfaturadas, não concluídas ou subutilizadas. Cenário político e econômico de crise, desestímulo com a corrupção do próprio futebol, necessidade de renovação de gestão do esporte e ausência de identificação de parte da sociedade com o atual significado da camisa verde-amarela são possíveis causas da apatia inédita pela primeira “paixão nacional”. Três professores da Unicamp, de diferentes áreas de pesquisa, comentam sobre esse contexto e expectativas para o campeonato, à luz da pedagogia do esporte, sociologia e análise de desempenho de um time que, combinando atletas jovens e experientes, tem sim plenas condições de “briga” pelo título.
Desinteresse reflete maturidade dos brasileiros
Alcides Scaglia, professor de Ciência do Esporte na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), observa que o futebol de vinte anos atrás já não é o mesmo e essa percepção por parte do torcedor pode ser positiva. Para ele, chegou o momento de um turning point metodológico e de gestão do futebol brasileiro, muitas vezes preterido pelo público, que ampliou audiência dos campeonatos internacionais, como a Liga dos Campeões da Europa. “Temos jogos de qualidade, mas esperamos melhor gestão e organização, com formação de jogadores não só dentro de campo. Temos um modelo ultrapassado no Brasil e avançar em metodologias é prioridade”, analisa. Sobre a Copa, “o desafio é unir os atletas em um espírito de equipe, a fim de desbancar favoritos europeus ao título, como a França, Alemanha e Espanha”, continua o coordenador do LEPE (Laboratório de Estudo em Pedagogia do Esporte), que espera jogos de transição mais intensos.
Quanto ao aspecto político, o professor comenta que o caráter ufanista da competição no passado, que poderia ocultar graves problemas do país, já não existe mais. “Considero equivocado imputar ao futebol a alienação de massas. O que vemos hoje é a maturidade do brasileiro em demonstrar desconforto com várias questões e pedir mudanças”, considera Scaglia.
Mercantilização mudou o sentido do futebol no Brasil
Roberto Donato, sociólogo e professor do Núcleo Básico Comum da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), considera que o futebol tradicionalmente cumpre um papel de “equalizador de forças”, onde desigualdades em outros campos parecem minimizadas, quando o que vale com a bola em jogo é a habilidade. “Vemos no campo o que chamamos de manifestação dos excluídos. A paixão também está nessa inversão das coisas, o que caracteriza a dinâmica política do futebol”, considera Donato. No entanto, o processo de mercantilização e negócios milionários dos clubes mudaram o sentido do esporte no país nos últimos vinte anos. A aprendizagem do esporte mais livre e lúdico nas ruas deu lugar ao ensino mais formal e próximo ao modelo profissional de treino, dentro de escolinhas de futebol. “Isso tudo, combinado com a globalização e às práticas de corrupção dentro da CBF e da FIFA, distancia as pessoas do esporte. Chegamos ao ápice do fenômeno em 2018, com acirramento de discursos críticos do futebol como pão e circo”, analisa.
As manifestações político-sociais dos últimos cinco anos acentuaram a polarização entre esquerda e direita e também reverberaram no universo do futebol. O simbolismo da camisa verde-amarela, vendida e usada amplamente em outros Mundiais, mudou. “O uso da peça por pessoas com determinada postura política, especialmente que pediam o impeachment da então presidente Dilma Roussef, afastou parte da sociedade da real identidade do verde-amarelo e de seu significado histórico, deixando de ser um elemento de união e nacionalismo”. O professor ainda lembra as transformações no papel político da Seleção brasileira ao longo do tempo. Na década de 60, chegou a ser símbolo de resistência à ditadura na figura do técnico, declaradamente de esquerda, João Saldanha. Ele foi demitido três meses antes da Copa de 1970 e substituído por Zagallo.
Donato considera um terceiro fator como possível explicação do desinteresse pela Copa: a distância entre torcedores e jogadores, que fazem carreira desde adolescentes no exterior, diferentemente de algumas décadas, quando os atletas se consagravam ainda em solo brasileiro, a exemplo dos ídolos Zico e Falcão. “Com raras exceções, os jogadores são ilustres desconhecidos no Brasil e vice-versa, o próprio estilo de jogo está mais europeu, com diferenças estéticas e táticas, mais distantes da identidade nacional”, comenta Donato.
Apito inaugural pode mudar a sensação de desânimo
Na visão do professor Sérgio Cunha, do Departamento de Ciências do Esporte da Faculdade de Educação Física (FEF), a apatia dará lugar ao interesse a partir do primeiro jogo, quando a bola começa a rolar. “Deixar de torcer não vai melhorar a situação política, então aproveitemos para trabalhar questões de respeito, tolerância, diversidade e tantos aspectos culturais do Mundial”, avalia o professor. Assistir aos jogos da Copa – todos, aliás – está entre uma das atividades programadas para o professor, que vai gravar e analisar as partidas. A proposta é estudar a eficiência dos dribles e fazer comparações entre Brasil e Europa. “O jogo sul-americano contemporâneo é criativo, mas tem um estilo mais individualista, com menos troca de passes”, avalia o pesquisador.
Cunha prevê umas das Copas mais disputadas dos últimos tempos, com oito equipes favoritas equilibradas e estudiosas sobre as estratégias adversárias. No entanto, vê com cautela as simulações de possíveis campeões com base apenas em inteligência artificial. “É necessário unir aspectos técnicos, físicos e táticos, sob perspectiva científica, com dados de alta confiabilidade para esse tipo de previsão”, alerta o professor, que atualmente coordena, junto com o professor Ricardo Torres, do Instituto de Computação da Unicamp, o projeto temático da Fapesp “O segredo de jogar futebol – Brasil X Holanda”. Pesquisadores de várias instituições (participam também a FCA Unicamp, USP Ribeirão Preto, UEL-Londrina e Universidade Groninger, da Holanda) devem calcular drible, finalização, passes, posições de ataque e defesa, intensidade de jogo, para contribuir com o treinamento adequado dos jogadores, utilizando um equipamento de radiofrequência de alta precisão - Sistema de Medição de Posição Local (LPM) - para posterior modelagem matemática.
Futebol e universidades: aproximação ainda é desafio no Brasil
O projeto temático deve contar com uma amostra de 300 partidas de futebol de clubes brasileiros. Assim que o equipamento chegar ao Brasil – a previsão é segundo semestre deste ano – as medições começam, especificamente no time do São Paulo, de acordo com Cunha, um dos poucos que abriu as portas à pesquisa acadêmica. Há 30 anos, o professor se dedica a investigações sobre posicionamento de jogadores, faixas de velocidade e sistemas de jogos. Informações de pesquisa podem, por exemplo, ajudar a minimizar riscos de lesão dos atletas e melhorar índices de desempenho, mas o professor confessa sentir dificuldade no trabalho em parceria com técnicos, clubes e federações. “Os resultados não vão apenas para periódicos e congressos, mas são compartilhados em plataformas específicas dos clubes, que poderão decidir estratégia, analisar comportamentos de equipe e de cada jogador. Mas, falta iniciativa de aproximação das universidades no Brasil”, afirma o professor. Ele lembra, no âmbito de Copa do Mundo, que “times europeus, como a França e a Bélgica, formam novas gerações com forte trabalho nas categorias de base em conjunto com as universidades, o que pode ser um diferencial na competição”.
Alcides Scaglia concorda com a necessária aproximação do esporte com as universidades brasileiras, citando dois exemplos. Um deles é a capacitação de treinadores, apesar da formação de alto nível de jogadores. A Unicamp foi pioneira, em 2013, com uma disciplina de graduação específica para formar treinadores dentro do curso de Ciência do Esporte. “Não abordamos apenas a técnica mas gestão de pessoas”, explica o professor. Ele também cita como exemplo o analista de desempenho nas comissões técnicas, função nova no país e ainda em fase de estruturação em vários clubes da própria série A. “Esse profissional deve dominar novas tecnologias e ter formação universitária, o que confere grande responsabilidade às instituições de ensino e pesquisa”, conclui.