Os professores José Maurício Arruti e Artionka Manuela Góes Capiberibe, do Departamento de Antropologia da Unicamp, fizeram os anos de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional, que foi destruído pelo fogo na noite de domingo. Além deles, outros docentes da Universidade externam sua comoção pela perda de um acervo com cerca de 20 milhões de itens, que virou cinzas: Sidney Chalhoub, Silvia Hunold Lara e Pedro Paulo Funari, do Departamento de História; André Victor Lucci Freitas, do Departamento de Biologia Animal; e Antonia Cecilia Zacagnini Amaral, do Museu de Zoologia. As críticas ao governo federal, que reduziu drasticamente os recursos ao Museu da UFRJ estão em todos os depoimentos.
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Um primeiro balanço da tragédia foi publicado no site da Academia Brasileira de Ciências (ABC), com informações do pesquisador Paulo Buckup, do Museu Nacional da UFRJ, ainda no calor daquela madrugada. “Os prédios dos Departamentos de Vertebrados e de Botânica, Biblioteca Principal, Pavilhão de Salas de Aulas, Laboratório de Arqueologia na Casa de Pedra, Anexo Alipio de Miranda Ribeiro, e anexo da coleção do Serviço de Assistência ao Ensino não foram atingidos. O prédio principal – Palácio da Quinta da Boa Vista – teve perda total, com a possível exceção da coleção de material tipo de moluscos que pude ajudar a salvar graças a um técnico da Coleção que nos guiou em meio à escuridão. As grandes perdas foram os materiais da exposição e as coleções situadas no prédio principal: arquivo e acervo histórico, maior parte das coleções entomológicas, antropológicas, coleções de aracnologia e crustáceos.”
‘Fui dormir com o peito
apertado de dor, raiva e medo’
José Maurício Arruti
Estudei no Museu Nacional por mais de dez anos. Comecei em 1989, antes de entrar no mestrado, como estagiário recém-formado em História do grupo PETI – Projeto Estudo sobre Terras Indígenas. Trabalhei no arquivo histórico e etnológico que a equipe do PETI havia reunido, sob a coordenação dos professores João Pacheco e Antônio C. S. Lima, e que daria origem ao Atlas dos Povos Indígenas do Nordeste (1990). Neste período me encantei com os debates públicos promovidos por professores e estudantes do PPGAS do MN sobre as políticas públicas para indígenas, e que tinham repercussões reais sobre estas mesmas políticas. Uma experiência que me apontou a possibilidade de fundir História e Antropologia, assim como de fazer isso com alguma potência transformadora sobre a realidade.
Iniciei o meu mestrado no PPGAS em 1992 e terminei o meu doutorado em 2002, em uma época em que os tempos de pesquisa e redação regulamentares de uma dissertação e de uma tese eram de quatro e seis anos. A formação no PPGAS do Museu Nacional é uma marca profunda em todos que passaram por lá. Éramos alunos dos principais nomes formadores da Antropologia brasileira em várias das suas subáreas e isso nos era cobrado constantemente.
Em torno de um dos pátios internos do grande prédio do Museu Nacional ficavam a sala de aula, as salas dos professores, a secretaria e a Biblioteca Francisca Keller, uma fonte de pesquisa inesgotável, que nos dava acesso tanto à história das Ciências Sociais brasileiras, quanto à bibliografia antropológica internacional mais atualizada.
Entre uma atividade e outra, atravessávamos o pátio como quem atravessa um cenário suspenso no tempo, silencioso e cerimonioso, mas que, desde então, mostrava o desgaste da falta de recursos para manutenção adequada. Já eram dilemas para a administração da época, tanto a falta de espaço para o contínuo crescimento da biblioteca, quanto o risco que todos nós corríamos com a queda de um ou outro pedaço de reboco do beiral do prédio histórico. Isso contrastava com a certeza de que estávamos imersos em um espaço de saber e ciência, que todos nós reverenciávamos, e cuja alegoria eram os corredores de paredes cobertas de móveis com gavetas de fichas de catálogo e armários de vidro, expondo milhares de minúsculas e maiúsculas peças arqueológicas.
Ao assistir domingo à noite às cenas do incêndio na TV, fiquei mudo e perplexo. Minha primeira reação só veio depois de passar horas assistindo ao incêndio, como para me certificar de que aquilo não era só um pesadelo. Enviei uma breve mensagem para amigos e colegas de outros países com o máximo que podia expressar no momento: “O Museu Nacional do Rio de Janeiro completamente destruído pelo fogo, que já dura 5 horas. 200 anos de história científica. Milhares de anos de fontes documentais. Uma das melhores bibliotecas de antropologia do país. Uma centena de carreiras destruídas. Uma tragédia inestimável, que é a metáfora de uma tragédia ainda maior”. Fui dormir com o peito apertado de dor, raiva e medo.
O Museu Nacional era uma das nossas instituições maiores, em todos os sentidos. Foi uma escola, que me forjou a ferro e fogo, e era a casa de colegas de quem gosto e a quem admiro. O Museu Nacional era o símbolo da possibilidade que o trabalho intelectual tem em converter um projeto civilizatório imperial em um projeto civilizatório democrático, forjado na luta do saber contra preconceitos, racismos e relações de poder desiguais. Esta instituição foi destruída, não por um acidente, mas por um projeto político concorrente. A destruição do Museu Nacional é a marca mais dolorosa do momento crítico a que a sociedade nacional chegou, ao se degradar na política da ignorância, da opinião sustentada no meme, do egoísmo transformado em teologia, do mercado que não alimenta, mas que se alimenta da vida. A destruição do Museu Nacional é o ato mais espetacular de uma sucessão de atos destinados a destruir a ciência, a arte, a história e a memória brasileiras.
‘Imagino o que não mais
poderemos aprender’
Sidney Chalhoub
O incêndio do Museu Nacional é uma tragédia em tantos aspectos que demoraremos muito tempo para digeri-la, para entender os seus significados. O tamanho da perda vai continuar a ser avaliado nos próximos dias, conforme aumentar o conhecimento da sociedade a respeito de todo o patrimônio que queimou. Como historiador, pensando que se trata de uma instituição dedicada faz dois séculos à história natural e ao conhecimento de sociedades humanas diversas, imagino o que não mais poderemos aprender a respeito da história da produção de conhecimento sobre esses assuntos, sobre as formas de a sociedade brasileira conhecer o seu próprio passado, o passado de outras sociedades e a história dos espaços e espécies que nos constituem.
Na longa duração, o incêndio é apenas mais um exemplo da notória falta de cuidado com nossos museus, arquivos e bibliotecas, um verdadeiro traço do nosso “caráter nacional”, se é que isso existe – se existe, devíamos chamar de falta de caráter nacional. No curto prazo, parece uma vingança da insensatez. O atual governo do país e os apoiadores do projeto de direita que o engendrou, usurpadores todos do poder por meio de chicanas parlamentares e jurídicas de vária espécie, condenaram à penúria as universidades públicas e outras instituições culturais. Sabem que ali a falta de democracia não tem guarida, que haverá resistência sempre. Resta ver se o próximo governo, caso não seja outro inimigo da ciência e da cultura, se empenhará imediatamente num diagnóstico e posterior recuperação de instituições de envergadura semelhante. Tremo em pensar como andam as cousas no Arquivo Nacional, na Biblioteca Nacional, no Museu Nacional de Belas Artes, no Museu Histórico Nacional etc., etc.
‘Explicito que o governo
Federal é o responsável’
Silvia Hunold Lara
Não é uma tragédia anunciada. É quase uma metáfora de tudo o que o país está perdendo nos últimos tempos, devido ao descuido imenso com o que é essencial para o país: o direito das pessoas terem uma identidade, uma memória nacional. É isso o que se queimou. A perda é
incomensurável, considerando os 200 anos de acumulação de objetos, imagens e conhecimentos referentes a uma infinidade de campos do saber, e que não podem ser substituídos.
Há muito tempo vinha-se pedindo recursos para o Museu Nacional, que guardava peças absolutamente importantíssimas não só para a história do Brasil, mas de todos os lugares e povos com os quais tínhamos relações – o trono de Daomé, que D. João VI recebeu de presente, fazia parte da maior coleção da América Latina sobre história da África. Há o mesmo descaso com todos os museus e também com as universidades, e não apenas federais, sendo a Unicamp um bom exemplo.
Quero explicitar a responsabilidade do governo federal que, com o teto de gastos públicos, prioriza certas áreas e corta recursos para moradia, educação e ciência – isto é uma escolha de todas as autoridades em nível federal. Ouvi de alguém sobre a vergonha de contar para as gerações futuras quem deixou isso acontecer. É possível reconstruir o prédio, mas o acervo era único. Ele morreu.
‘Para a pós-graduação é
um abalo sísmico de alto grau’
Artionka Manuela Góes Capiberibe
Em minha área, a Antropologia, o Museu Nacional do Rio de Janeiro possuía a biblioteca mais completa da América do Sul, superatualizada, com um arquivo de documentos que vinha sendo formado havia mais de 50 anos. Fiz o doutorado de 2004 a 2009 pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), que foi o primeiro criado no Brasil, com professores altamente qualificados, e que era lugar de debate e conhecimento muito inovador. O PPGAS sempre teve nota 7 [a máxima], desde que foi criado o sistema de avaliação da Capes, e inúmeras teses foram premiadas.
Este acidente tem um impacto de proporções gigantes para as mais diferentes áreas, e também ao acesso por parte da população, pois o Museu era uma forte referência na educação, com seu acervo arqueológico e paleontológico. As pesquisas biológicas também caminhavam com força, apesar do apoio cada vez menor. Perderam-se ricas coleções da cultura material indígena, como plumárias e cestarias. E toda a documentação sobre a região camponesa do Nordeste, doada pelos professores Moacir Palmeira e Lygia Sigaud.
Para a pós-graduação, é um abalo sísmico de grau muito alto. As salas de aula, dos professores, os registros e pesquisas de várias gerações de alunos, sendo que nem tudo estava digitalizado. Documentos como as cartas da família real são absolutamente insubstituíveis.
É chocante o descaso. Entrei no doutorado do PPGAS vinda da Unicamp com suas salas e equipamentos bem arrumados. Levei um choque no Museu Nacional, com os vazamentos e os fios elétricos expostos. Vi que a qualidade da sua pesquisa não se refletia na infraestrutura – e isso há mais de uma década. O recurso que chega é quase uma esmola para a ciência caminhar, reflexo de como o Estado trata o conhecimento, vendo-o como gasto e não como investimento.
O contingenciamento de recursos para educação e ciência sufoca, impede que se avance. Se esta mentalidade não mudar, incorporando a ideia da ciência como fundamental por estar presente no dia a dia das pessoas, o Brasil vai começar realmente a andar para trás. Tudo o que se faz hoje é pelo esforço grande dos pesquisadores. O Museu Nacional é um patrimônio histórico e cultural. Muitas pessoas, como eu, devem muito àquela instituição.
‘O pessoal do Museu gritava
por ajuda havia décadas’
André Victor Lucci Freitas
Do ponto de vista do nosso trabalho, que é com a biodiversidade e a conservação, esse incêndio é uma catástrofe inimaginável, com a perda de mais de 20 milhões de itens, incluindo toda a coleção, por exemplo, de lepidópteras (borboletas e mariposas), que é a minha área de estudo. Imagine a perda de grandes coletas feitas nos anos 1920, 30, 40 na Amazônia, em lugares para onde nunca ninguém mais voltou, como ao longo do Juruá; ou de material histórico do Rio de Janeiro, de quando a área urbana ainda não tinha engolido a baía da Guanabara: havia registros importantíssimos para entender melhor como toda essa biodiversidade brasileira se distribuía na mata Atlântica. Mesmo que não tivéssemos mais os ambientes, esses exemplares eram um testemunho que foi perdido para sempre.
Para entender o que pode acontecer no futuro, às vezes usamos o passado – e esse passado não existe mais. Esta coleção do Museu ainda não estava toda informatizada e, por pior que fosse, se tivéssemos fotos e as informações, seria uma perda irreparável, mas ainda teríamos com o que trabalhar.
Do ponto de vista taxonômico, de legado cultural e científico humano, se perderam os tipos (holótipos e parátipos), que são material básico na descrição das espécies, sendo que uma boa parte dos tipos de espécies brasileiras estava no Museu Nacional. Isso não se substitui, pode-se eventualmente tentar reparar o que foi perdido, mas de maneira bastante ruim. O professor Keith Brown, meu orientador já aposentado, quando descrevia novas espécies ou encontrava um material importante, deixava sempre uma parte no Museu.
O mais triste de tudo, quando se fala em tragédia anunciada, é que o pessoal do Museu estava gritando por ajuda havia décadas, mostrando que a situação era complicada e perigosa, exigindo uma maneira adequada e definitiva de preservação do material, se não as perdas seriam insubstituíveis. E aconteceu.
Tenho muitos alunos e amigos que não conseguem parar de chorar, hoje. É como perder uma porção muito grande do trabalho de inúmeras vidas. E esse trabalho foi jogado no lixo de uma hora para outra. Reconstrução, só do prédio, pois todo o resto volta ao zero. Políticos vão dizer que fizeram o melhor, mas teremos apenas uma casca para os milhares de anos de história que foram embora – múmias egípcias, o fóssil mais antigo do ser humano na América (Luzia), esqueletos de dinossauros, preguiças gigantes. Tudo isso nunca vai ser reposto.
‘Coleção emprestada pela
Unicamp não foi atingida’
Antonia Cecilia Zacagnini Amaral
É realmente uma lástima para todos, e principalmente para nós que trabalhamos com museus e em outras instituições. Temos mais este registro do esquecimento da importância das atividades em cultura, educação e ciência. O Museu Nacional não é o primeiro caso, tivemos os incêndios no Butantã e em outros museus. O país está de luto, é uma perda que não tem retorno, não tem outro acervo igual.
O Museu de Zoologia da Unicamp tem exemplares de vertebrados emprestados ao Museu Nacional, como de anfíbios, répteis e peixes, que não foram atingidos pelo incêndio, segundo as últimas notícias, porque estavam em outro local. É difícil valorizarem o nosso trabalho, mas tragédias como esta, pelo menos, fazem com que a população mostre interesse pela ciência. Fora da universidade, tenho vizinhos que choraram.
‘Não há futuro digno sem uma
relação crítica com o passado’
Pedro Paulo Funari
Havia ali uma infinidade de materiais únicos e sem paralelos. Uma parte foi estudada e publicada, mas os fundos eram imensos e muito não chegou a ser objeto de investigação. Outro aspecto refere-se à perda para a história intelectual do Brasil, pois havia ali farta documentação sobre a ciência brasileira desde o estabelecimento do Rio de Janeiro como sede do reino, depois capital nacional. Apesar dos diversos estudos já publicados sobre essa história institucional, o acervo documental desaparecido ainda reservava muitíssima informação, perdida para sempre.
O incêndio diz muito sobre o limitado empenho da sociedade brasileira, em especial das suas elites, pela ciência e pela educação, em geral, e pelo patrimônio e o passado, em particular. Recursos são sempre escassos, mas algumas restituições de condenados por corrupção mostram que apenas pequena parte seria o bastante para a manutenção adequada do Museu Nacional. A ciência e a educação não encontram a prioridade que seria condição necessária para uma sociedade com melhor desenvolvimento social, econômico e humano, assim como para amenizar as desigualdades. Apesar dos avanços nas últimas décadas, a educação e a ciência continuam sem a devida atenção, com prejuízo para todos.
No que se refere à relação complicada com o passado, a sociedade brasileira, muito marcada pelos conflitos e traumas (escravidão, ditaduras), foge do passado e se refugia no “país do futuro”, para parafrasear Stephan Zweig (Brasilien, Ein Land der Zukunft, 1941). A criação de novas capitais, como Belo Horizonte (1897), em Minas Gerais, e Goiânia (1933), em Goiás, já mostrava isso, algo tornado nacional com a mudança da capital do Rio de Janeiro, carregado da História e dos seus conflitos (escravidão, espoliação colonial, governos oligárquicos, ditadura, lutas de rua), por uma cidade criada ex nihilo, voltada para o futuro, Brasília (1960). Essa ilusória busca por um futuro sem os traumas do passado cobra um preço alto. Enquanto se criava o Museu do Amanhã (2015), o Museu da Língua Portuguesa entrava em combustão (2015), os Museus Paulista (fechado em 2013) e de Arqueologia e Etnologia da USP têm suas exposições fechadas há muitos anos. Cabe a todos contribuir para mudar essa situação, pois não há futuro digno sem uma relação crítica com o passado.