Em um novo seminário sobre os desafios das universidades, o Laboratório de Estudos sobre Educação Superior (LEES), do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) da Unicamp, recebeu, em 23 de outubro, pesquisadoras em governança e financiamento no ensino para debate com o público e especialistas. Elizabeth Balbachevsky e Cristina Fioreze discutiram, no auditório da unidade, modelos possíveis para a gestão do ensino superior e novas alternativas regionais - em comum, a defesa de modelos democráticos, inovadores e socialmente responsáveis.
A vice-coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Políticas Públicas (NUPPs) da USP, Elizabeth Balbachevsky, pesquisa a governança no ensino superior a partir de diferentes modelos, suas mudanças e as transformações que estas incitam. “Governança é uma palavra que surgiu a pouco tempo no nosso vocabulário”, explica. “É um neologismo (do inglês, governance) e representa situações em que a autoridade pública é compartilhada com atores não governamentais. Relaciona-se com novos arranjos societais em que de fato a decisão pública é tomada em ambientes de negociação que envolvem grande autonomia, participação e autoridade de atores não-estatais”.
É o caso, por exemplo, dos colegiados de universidades públicas no modelo adotado pelo Brasil nessas instituições - inclusive na Unicamp. São conselhos, comitês e comissões, por exemplo, que garantem que as decisões serão tomadas por um grupo de representantes de igual autoridade - e não uma única pessoa ou grupo. O modelo, se bem executado, garante representatividade e transparência - mas é só um entre diferentes formatos de governança possíveis.
No modelo Humboldtiano que marcou o surgimento da universidade moderna com a criação da Universidade de Berlim e teve auge entre o fim do século XIX e início do XX, as universidades seriam um espaço de “anarquia organizada” - uma espécie de ninho no espaço social criado pela ciência, cujas decisões ocorreriam em função de valores e interesses externos. De suas cátedras surgiu o formato de colegiados e a universidade como uma arena de interesses. O formato, no entanto, atendia menos de 1% da população - um modelo muito excludente.
No formato desenvolvido na França e conhecido como napoleônico, por sua vez, a universidade seria um instrumento de política nacional - uma agência burocrática para a formação da oligarquia acadêmica que supriria as demandas de qualificação do Estado. Foi o caso de instituições da URSS e China. A universidade como uma república democrática, como conhecemos hoje nas públicas brasileiras, é herança das Reformas Universitárias de Córdoba a partir de 1907. Aqui, a governança dá-se por uma autoridade institucional representativa. “A universidade nesse modelo é acima de tudo uma instância das grandes profissões: medicina, direito... Nasce como um reflexo do modelo francês e é marcada pela ideia de que a universidade deve servir à sociedade”, explica a professora Elizabeth Balbachevsky. Governo e universidades interagem nesse modelo para, respectivamente, impor demandas estratégicas e receber recursos.
“Estas universidades, no entanto, são instituições para um mundo que não existe mais”, alerta a pesquisadora. A universidade humboltiana, por exemplo, não abarcaria a ideia de inclusão, acesso universal e diversidade - grandes demandas atuais. Também convertem-se como uma instituição central para o desenvolvimento e o governo tem uma agenda cada vez mais complexa e ampla para essas instituições, marcadas pelo permanente desafio de conciliar sua própria agenda com a governamental. Com a globalização, intensificação da concorrência e mudanças nas dinâmicas competitivas, antigos modelos dissolvem-se e cresce a necessidade de diversificação de caminhos para a qualificação profissional.
Nem público, nem privado: nas comunitárias regionais, a importância da democracia e dos laços com a comunidade
A professora do Grupo de Estudos Sobre Universidade da Universidade de Passo Fundo (UPF), Cristina Fioreze, conta que o formato de gestão por colegiados também foi adotado pelas universidades comunitárias regionais do Sul, modelo de ensino bastante comum na região há mais de 50 anos. São instituições privadas, laicas, sem fins lucrativos, geralmente administradas por fundações ou associações, que surgiram em resposta às demandas regionais por ensino superior no interior sulista, que não eram supridas pelo ensino universitário público. É o caso das tradicionais Universidade Católica de Pelotas (UCPel), Universidade de Caxias do Sul (UCS) e a própria UPF, instituição de Cristina.
Estas universidades apresentam modelo bastante específico na realidade do ensino superior brasileiro: embora privadas, tem como finalidade atender uma demanda pública, apostam em gestão por colegiados e têm, historicamente, identidade fortemente relacionada com um compromisso social com a região onde se inserem, principalmente através das atividades de extensão. Foi a natureza híbrida desse modelo - e toda a riqueza de contradições que expõem - que atraiu a atenção da pesquisadora.
O tensionamento entre público e privado na natureza dessas instituições questiona a dicotomia tradicional, bastante comum no Brasil, que relaciona sempre o público ao estatal e o privado ao mercado. Mas, dentro dessa perspectiva limitada, como explicar a mercantilização do ensino superior induzida pelo Estado? Ou a produção de bens privados por universidades públicas - como diplomas escassos - e de bens públicos por instituições privadas - como pesquisa básica e instrução coletiva?
Fioreze defende que a complexa realidade do ensino superior no mundo atual não é alcançada por essa associação tradicional, baseada meramente no status legal da propriedade dessas instituições. “Mais interessante seria entendê-las como uma composição variável entre público e privado, que pode mudar dependendo das políticas públicas, da gestão das instituições e dos próprios resultados que geram”, analisa. Unem-se então duas concepções teóricas: a de origem econômica; e a de origem política, na qual o bem público é entendido como tudo aquilo que é transparente, de acesso público, ligado a cidadania e democracia e regulado publicamente - o que nem sempre está associado somente ao estatal.
“São universidades muito ligadas ao conceito de bem público como bem comum e esse compromisso é parte do DNA desse modelo institucional - é o que mais caracteriza esse modelo comunitário. Existe uma preocupação muito clara da gestão na preservação dessa característica, embora possa-se discutir se é retórica ou real”, conta Fioreze.
Com o crescimento observado a partir dos anos 2000 no número de instituições privadas de ensino superior e grandes conglomerados voltados para o lucro, essas instituições deparam-se com o desafio de responder a demandas de um mercado altamente competitivo, sem afetar negativamente a gestão e os objetivos dessas instituições comunitárias. Se o corporativismo domina as questões do colegiado, estes espaços tornam-se relegados a discussão de “miudezas do dia-dia” enquanto a definição de princípios, sua real função, é limitada à alta administração corporativa - colocando em xeque inclusive a efetividade desses colegiados enquanto formato democrático.
Outro desafio para essas instituições num contexto de crescimento do setor privado mercantil é manter suas atividades de extensão, conta a pesquisadora. Uma vez que nasceram com um forte laço com as comunidades locais, a redução dos investimentos nessas atividades por motivos financeiros é criticada pelos públicos antes atendidos. “A extensão é o grande braço da universidade comunitária com a comunidade. Está para ela assim como a pesquisa está para a universidade pública”, explica.
“O tensionamento entre público e privado é orgânico a esse modelo e é justamente o equilíbrio entre essas duas dimensões a característica distintiva dele e sua riqueza, inclusive como uma diferenciação em relação a concorrência.” Para preservá-lo, essas instituições contam com maleabilidade para atender diferentes mercados. “O risco que correm então, na concorrência mercantil, é que as decisões de gestão pendam demais para a dimensão privada e perca-se esse equilíbrio. Não se pode descuidar da relação com a colegialidade e a comunidade, que é o coração público do modelo e garante esse rico equilíbrio”, conclui Fioreze.