Assédio foi o tema do Cine Pagu especial

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A defesa dos direitos humanos passa por questões singulares do nosso dia-a-dia. Relações interpessoais no trabalho, na sala de aula e em casa escondem, muitas vezes, violações de direitos básicos. O cerco a liberdades, a exposição a situações humilhantes ou constrangedoras e a violência verbal e física fazem parte do cotidiano de grande parte da população, na sua maioria mulheres. Essa realidade do assédio, ligada estruturalmente à questão de gênero e sexualidade, foi o tema do Cine Pagu especial, que aconteceu nesta terça-feira (27) e quarta-feira (28), no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

O evento foi a primeira parceria do Núcleo de estudos de gênero Pagu com o Grupo de Trabalho (GT) de Combate à Discriminação Baseada em Gênero e/ou Sexualidade e à Violência Sexual, constituído em 2017, na Unicamp, para propor uma política da Universidade sobre o assunto. “Nosso principal objetivo no GT é evitar que essas situações de dor e sofrimento aconteçam dentro da Unicamp. Isso passa necessariamente pela sensibilização sobre o assunto, pois um dos principais problemas que identificamos é o silêncio”, contou Josianne Cerasoli, professora do IFCH e componente do GT.

mulher fala ao microfone
Josianne Cerasoli é parte do GT de Combate à Discriminação Baseada em Gênero e/ou Sexualidade e à Violência Sexual da Unicamp

Esta necessidade levou à parceria com o Cine Pagu, cujo missão é justamente promover o debate sobre questões relacionadas a gênero e sexualidade para além da sala de aula, conforme explicou sua coordenadora Karla Bessa. “O Cine Pagu é um Projeto de extensão do Núcleo de estudos de gênero Pagu, que a gente chama de projeção debate. Passamos um filme e convidamos alguém para fazer um debate. A ideia é utilizar realmente os filmes como educação de sensibilidade”, contou. Segundo ela, o objetivo é estabelecer uma conversa com a comunidade, divulgando as pesquisas desenvolvidas no âmbito do núcleo e trazendo convidados externos. “A proposta é sempre interdisciplinar, focado nesse eixo gênero, sexualidade e cinema”, explicou.

mulher com queixo apoiado na mão sobre a mesa
Karla Bessa, coordenadora do Cine Pagu.

A edição especial do Cine Pagu intitulada “Desafios éticos contemporâneos: entre desejos, afetos e assédios” foi apoiada pela Pró-reitoria de Extensão e Cultura (Poec), que possibilitou a composição de um evento maior, com participação de pesquisadores de fora da Universidade e mesas de debate, além da exibição dos filmes. As mesas redondas, apesar de um caráter mais acadêmico, incluíram pessoas com outras atuações na área, profissional e militante. “Nosso objetivo é poder pensar junto quais são os limites que precisam ser questionados. Isso também envolve a educação dos nossos próprios hábitos, do como eu me relaciono com o outro. Qual é a fronteira desse relacionamento? Precisamos estabelecer algumas medidas nesse código de civilidade, no tratamento interpessoal e intersubjetivo”, afirmou Bessa.

Para a pesquisadora, o cinema é um veículo potente para esse tipo de reflexão, pois atinge no imaginário social de maneira ampla. Dentre os filmes exibidos, estão os documentários “Girl Fact: a guide to surviving sex slavery” (2016) de Maël G. Lagadec, “Untold story” (2018) de Ruda Santos, “Precisamos Falar sobre Assédio” (2015) de Paula Sacchetta, e "Chega de fiu fiu" (2018) de Amanda Kamanchek Lemos e Fernanda Frazão.

montagem cartazes de cinema
Cartazes de filmes que compuseram a programação

“Untold story” teve sua estreia brasileira no evento, tendo sido legendado especialmente para exibição, em uma parceria do Cine Pagu com o diretor do filme. Ele é composto por narrativas de homens negros que sofreram abusos e assédios sexuais na infância, em Londres e Nova Iorque. “Embora quantitativamente mais mulheres sejam assediadas do que homens, assédio não é uma coisa só de mulheres. Por isso a importância desse filme no conjunto da proposta”, contou Bessa.

mulher fala ao microfone
Mônica Campos falou a partir da perspectiva do cinema

O assédio no mundo do cinema e nas telas foi abordado pela professora Mônica Campos, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na mesa de abertura do evento. Por meio da análise das quatro versões (1937, 1954, 1976 e 2018) do filme “Assim nasce uma estrela”, em cartaz nos cinemas, ela falou de como as mudanças nas relações entre os gêneros parece pouco linear. “Historicamente, é possível pensar em fluxo e refluxo da relação das mulheres em sociedade”, apontou. Ela comparou nas diferentes versões do filme as abordagens dos personagens feminino e masculino que protagonizam o filme, bem como a relação entre eles. “O tipo de relação que as personagens vão compondo vai se diferenciando. No filme de 76 com a Barbra Streisand isso fica gritante. É ela a produtora do filme e já é a grande mulher de Hollywood. A personagem dela faz tudo que as outras versões do filme não fazem. Ela rompe com ele. É a única que faz isso. No filme atual, a Lady Gaga desaparece. Há uma inversão. É um filme dos grandes produtores de Manhattan, aqueles que estão na bolsa. É um filme dos homens”, explicou.

montagem
Cenas dos filmes de 1976 e 2018 mostram a diferença que ocupou o papel feminino em cada um deles

Rafaela Vasconcelos expôs alguns achados de sua pesquisa de doutorado, recém-defendido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sobre a presença das mulheres e transexuais no exército. Ela defendeu a existência de uma política do assédio dentro da corporação militar. “Tornar-se militar é algo que exige que você saiba que o assédio é uma pressuposição das relações ali dentro”, afirmou. Dentre os mecanismos que comporiam essa política, Rafaela Vasconcelos destacou a banalização do assédio, por meio da qual a denúncia gera mais assédio à vítima. Outra prática comum, que reafirma a política do assédio, é o afastamento do assediado, enquanto o assediador mantém sua vida normal.

mesa de abertura de evento
Rafaela Vasconcelos falou sobre a estranheza de ser civil no ambiente militar

Josianne Cerasoli, por sua vez, pontuou aspectos dessa realidade no ambiente universitário. “O espaço acadêmico, juntamente com o militar, são as duas instituições líderes do grau de interferência das relações de gênero nas relações de trabalho. Existem algumas áreas dentro das universidades  que são praticamente vetadas para as mulheres”, relatou. Apesar de ser por definição um espaço plural de debate, a professora apontou pesquisas que mostram que os números de violência de gênero e assédio dentro de instituições universitárias são assustadores. “A expectativa que se tem em relação ao trabalho da mulher é um trabalho afetivo,  de acolhimento e  cuidado. Essa é a expectativa social.  Não é o trabalho intelectual que realizamos na Universidade”, destacou. 

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Trechos de filmes que compuseram a programação

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004