Os cerca de 1.200 metros que separam a Secretaria Executiva de Comunicação (SEC) do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp são cumpridos de forma diferenciada em janeiro. Por causa das férias letivas, praticamente não existe trânsito, o que permite a perfeita audição dos piados, chilreados e gorjeados das diversas espécies de pássaros que habitam ou frequentam o campus instalado no Distrito de Barão Geraldo, em Campinas (SP). A missão do dia é entrevistar o professor Daniel Mario Ugarte, argentino radicado no Brasil desde 1993 e um dos pioneiros das pesquisas em nanociência no país. O tema do encontro é a recente premiação na área da Física concedida ao docente pela The World Academy of Sciences (TWAS), entidade com sede em Trieste, na Itália. Ugarte é o segundo cientista da Universidade a receber tal distinção. O primeiro foi Cesar Lattes, em 1987.
A TWAS é uma das mais importantes corporações científicas do mundo. Foi criada em 1983 por um grupo de destacados cientistas, capitaneados pelo paquistanês Abdus Salam, que recebeu o Prêmio Nobel de Física em 1979, conjuntamente com Sheldon Glashow e Steven Weinberg. O objetivo da iniciativa, que conta com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), é estimular o progresso da ciência em países em desenvolvimento. A premiação distingue as contribuições dadas pelo laureado ao avanço do conhecimento em sua área de atuação, mas também à educação e à cultura. “Fiquei extremamente feliz ao receber este prêmio. Trata-se de um importante reconhecimento aos estudos que venho realizando ao longo da minha carreira”, declara Ugarte.
A cerimônia de premiação ocorreu em novembro passado, durante a 28ª Conferência Geral da TWAS, na sede da instituição. O professor do IFGW-Unicamp recebeu US$ 15 mil e uma placa. Instalado em sua acanhada sala com alto índice de ocupação, Ugarte recebe a reportagem para traçar um resumo da sua trajetória pelo universo científico. E adianta desde logo: “Investi muito tempo nas minhas pesquisas”. Filho de uma família simples, graduou-se em Física na Argentina, fez o doutorado na França e o pós-doutorado na Suíça. “Quando estava acabando graduação, optei pela área da microscopia eletrônica, porque dava emprego, e eu precisava trabalhar. Era uma técnica muito utilizada por diversas áreas, como a Física, a Geologia e a Biologia”, conta.
Na França, tomou contato com um tipo de microscopia mais avançada, denominada de microscopia eletrônica de transmissão, técnica utilizada para analisar as propriedades de objetos extremamente pequenos. Depois, na Suíça, dedicou-se a investigar os mecanismos que fazem com que as propriedades dos materiais mudem de acordo com o tamanho destes. Ou seja, Ugarte participou das pesquisas iniciais do que viria a ser conhecida mais tarde como nanociência, a ciência que estuda a natureza em escala atômica. Em 1993, o físico desembarcou no Brasil para trabalhar no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), instalado a poucos quilômetros da Unicamp.
Lá, ele dedicou-se à criação do Laboratório de Microscopia Eletrônica, com uma missão muito clara. “Eu divido meu trabalho em duas partes. A primeira é o desenvolvimento de pesquisa avançada associada à formação de recursos humanos qualificados. A segunda é a busca de soluções estruturais ou de infraestrutura que tragam benefícios para a comunidade científica e para a sociedade. Foi isso o que fiz no Síncrotron e o que continuo fazendo aqui na Unicamp”, diz. Tanto na sala de aula quanto no laboratório, Ugarte é um professor-orientador “linha dura”, como ele mesmo admite. Para o físico, o bom não é aceitável porque pode ser melhorado. “O nível da ciência brasileira não é muito elevado na média, embora haja pessoas muito competentes em todas as áreas. Nós precisamos aumentar a nossa massa crítica, e isso só pode ser obtido com a formação de pessoas em padrões elevados, o que exige muito estudo e dedicação. Empurrar o trabalho com a barriga não funciona comigo”, avisa.
Mais que cobrar, Ugarte fornece um exemplo de como o esforço é importante e traz resultados positivos. Quando estava fazendo o pós-doutorado na Suíça, um dos países mais ricos do mundo, ele e seus colegas contavam com um conjunto de equipamentos altamente avançados. Ocorre que, às 17h, todo mundo encerrava o expediente e ia embora para casa. “Eu ficava me perguntado: como é que essa gente tem tudo isso à disposição e não aproveita por mais tempo? Foi aí que comecei a ficar no laboratório após o expediente normal, ‘brincando’. À noite, eu podia fazer experimentos tidos como ‘incomuns ou irreverentes’. Acontece que o meu artigo mais conhecido, que foi capa da revista Nature em 1992 e trata da descoberta das cebolas de carbono, foi desenvolvido nessas condições. É por isso que sempre repito para meus alunos: brinquem, não se estressem, exercitem a criatividade”.
Tão importante quanto se dedicar a um tema ou a uma linha de pesquisa é saber o momento de buscar novos desafios, conforme Ugarte. Ele próprio desenvolveu uma notável capacidade de se reiventar ao longo do tempo. Depois de estudar a estrutura do carbono lá fora, o cientista optou por trabalhar, já no Brasil, com nanofios metálicos, com base nas imagens geradas com os instrumentos construídos no LNLS. “É preciso compreender que, eventualmente, as linhas de pesquisa morrem. A que eu conduzia em torno dos nanofios metálicos morreu, por diversas razões. Atualmente, estou reorientando minhas investigações. Estou utilizando a microscopia eletrônica e novos métodos de difração eletrônica para entender os nanomateriais. O objetivo, agora, já não é somente enxergar os átomos, mas observar e interpretar como eles estão dispostos em partículas extremamente pequenas. A microscopia eletrônica convencional não fornece essa resposta, pois não consegue fazer essa localização. Nós já conseguimos fazer a primeira medida. O próximo passo é ver se conseguimos chegar na resolução que nos permita resolver problemas científicos”, detalha.
No dicionário de Ugarte, a palavra “problema”, ressalte-se, é claramente um sinônimo de estímulo. É, por assim dizer, o propulsor para o desenvolvimento de soluções que propiciem a descoberta de uma solução maior. “Nós, cientistas, precisamos responder a perguntas. Isso leva tempo, mas se não for assim, não vale a pena. Se tiver que medir, se tiver que usar um software, eu sempre prefiro desenvolver essas ferramentas do que utilizar algo já pronto. Temos que construir. Eu prefiro fazer poucas coisas, mas coisas com qualidade. Infelizmente, a ciência tem muito ego. Ocorre que o prestígio em ciência vem da competência. Vivo repetindo aos meus alunos que a ciência não está limitada aos muros de uma universidade ou às fronteiras de um país. Quando você tem respeito do mundo, a mediocracia local pouco importa. É a competência que define o destino na carreira científica e não a política”, considera.