"Migrações Venezuelanas" debate os múltiplos aspectos da acolhida

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“Estamos há quatro meses no Brasil. Ficamos dois em Boa Vista e estamos há quase três em Guarulhos, São Paulo. Chegamos por meio da Acnur, da Onu. Passamos por todo esse processo. Meu esposo veio primeiro. Ficou sete meses em Boa Vista. Chegou quando ainda não existiam os abrigos, quando Paracaima era um desastre. Viveu três meses na rua. Eu tive que ficar na Venezuela, pois minha filha era muito pequena. Depois de seis meses sem vê-lo, decidi vir. Aquilo não era vida.” Assim começa o relato da trajetória de Francis Sanches (na foto acima), que ao lado de seus dois filhos, participou do lançamento do livro “Migrações Venezuelanas”, coordenado por Rosana Baeninger, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e Núcleo de Estudos de População "Elza Berquó" (Nepo), da Unicamp, e João Carlos Jarochinski Silva, da Universidade Federal de Roraima (UFRR), na última sexta-feira (9), no Museu da Imigração, em São Paulo.

Ouça o depoimento completo de Francis Sanches:

O livro traz análises e testemunhos dos diversos atores envolvidos na recente movimentação populacional, que registrou a entrada, no Brasil, de milhares de pessoas do país vizinho. O evento celebrou, de acordo com Baeninger, a união de esforços de Estado, academia e sociedade civil, para a garantia dos direitos dos imigrantes no país. “A Universidade, como organizadora, demonstra seu compromisso com a justiça social”, refletiu a pesquisadora.

Rosana Baeninger
Rosana Baeninger coordenou a publicação e articulação entre os atores

Para o reitor da Unicamp Marcelo Knobel, anfitrião do evento, a publicação representa um esforço importante no estabelecimento de parcerias. “O Nepo trabalha com imigração e refugio há muito tempo, estabelecendo esse contato com a sociedade, que é fundamental. Essa parceria com Museu da Imigração, o Ministério Público do Trabalho e as diversas entidades que trabalham nessa área é importante para o avanço do conhecimento e das ações relacionadas”, afirmou o reitor.

Catarina Von Zuben, coordenadora nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, também ressaltou a importância das parcerias estabelecidas e fortalecidas entorno da questão da imigração. “Fico feliz em ver representantes de todas as esferas do Estado, mostra a preocupação de todos com a questão migratória e a união de esforços para enfrentá-la”, afirmou. Von Zuben ressaltou ainda outros resultados da parceria como a criação da Clínica de Direitos Humanos na Unicamp e a publicação do Atlas da Migrações.

Catarina Von Zuben
Catarina Von Zuben, coordenadora nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho

Entre as organizações presentes estavam o Ministério da Justiça; a Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado de São Paulo; a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo; o Ministério Público do Trabalho (MPT); a Defensoria Pública da União (DPU); o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur); o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA); a Organização Internacional para as Migrações (OIM); a Missão Paz; Casa de Passagem Terra Nova; a Associação Nacional de Imigrantes Venezuelanos; boa parte dos quais contribuíram com capítulos do livro.

Durante o evento, foi inaugurada a exposição fotográfica La Jornada, na qual Chico Max registrou a passagem dos imigrantes na fronteira em Roraima. As fotos também ilustram a publicação lançada. Segundo o fotógrafo, que registrou momentos de força e alegria, seu trabalho pretende ser um contraponto às imagens negativas veiculadas pela mídia.  “Com esse trabalho, pretendi resgatar a figura humana por trás desses migrantes venezuelanos. Quando você vê o indivíduo, quando você ver a sua história,  você enxerga ali pessoas que poderiam ser nossos vizinhos, nossos amigos, com planos e sonhos”, relatou Chico Max

fachada do Museu da Imigração com banner da exposição La Jornada
A exposição "La Jornada" pode ser apreciada no Museu da Imigração até dia 31 de março

Nossa história de imigração

A secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania, da Prefeitura de São Paulo, Berenice Maria Gianella, assim como o reitor da Unicamp, contaram na mesa de abertura do evento um pouco de suas trajetórias familiares. “Eu sou imigrante também, não sou brasileiro”, contou Knobel. “Vim para cá em 1976, da Argentina, quando houve o golpe militar. Meus avós também eram imigrantes. Vieram da Europa - Polônia, Rússia, Ucrânia - no início do século 20. Meu avô contava que escapou de casa aos 11 anos, pois estava com muita fome. Ele tinha 15 irmãos. A família só descobriu que ele tinha saído de casa um ano depois, quando ele mandou uma carta dizendo que estava em Buenos Aires. Essas histórias estão vivas na nossa sociedade, onde a migração realmente faz parte de todos nós”, relatou.

Reitor conhece exposição fotográfica
Reitor Marcelo Knobel visitou a exposição "La Jornada"

Gianella enfatizou o papel desempenhado pelos imigrantes da história do país e a importância da acolhida. “Os que chegaram sempre vieram para contribuir e vão continuar ajudando a construir o Brasil. É muito importante receber amigavelmente as pessoas que, por qualquer motivo, econômico, político ou humanitário, buscam o nosso país”, afirmou. Segundo ela, o município de São Paulo recebeu 300 venezuelanos em seus centros de acolhida. “São Paulo tem, desde 2016, uma política municipal para imigrantes, que contempla o acesso a todos os serviços públicos. Aqui, todas as crianças são matriculadas nas escolas, damos aulas de português para os adultos e temos um Conselho Municipal de Migrantes, também”, relatou.

Gianella
A secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania, da Prefeitura de São Paulo, Berenice Maria Gianella, falou sobre sua história familiar

Política Federal

O diretor do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça, André Zaca Furquim, por sua vez, garantiu que o Governo Federal dará continuidade às ações que vem sendo desenvolvidas. “Aproveito esse momento para deixá-los tranquilos. Muitos me perguntam o que vai ser da imigração. O que eu posso, por hora, afirmar é que todos os trabalhos, que estavam sendo realizados, vão continuar a ser executados e em uma intensidade ainda maior”, assegurou Furquim.

Furquim do Ministério da Justiça
André Zaca Furquim garantiu a continuidade da política do governo federal

Segundo ele, a nova configuração dos ministérios deve agilizar e potencializar as ações nessa área. “O Departamento de Migrações do Ministério da Justiça dobrou de tamanho. Nós hoje contamos com a Imigração Laboral, em razão da extinção do Ministério do Trabalho. Tivemos, também, a absorção da Coordenação de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, dentro Departamento de Migrações, uma unidade com a qual não tínhamos muito relacionamento, e agora faz parte do mesmo time. Isso faz com que a gente tenha condições de melhor tratar o assunto porque estamos juntos”, explicou.

Furquim ressaltou ainda a intenção de colaborar com a academia, apontando preocupação particular com os sistemas de dados. “Queremos ter condições de dar subsídios cada vez melhores para construção dessas obras acadêmicas, que fazem diferença na construção das políticas públicas”, declarou.

reitor e representante o Ministério da Justiça
Evento propiciou encontros e parcerias

Sistema de Informação

A importância de organizar o sistema de informação para melhor compreender os dados e, consequentemente, elaborar políticas públicas mais eficientes foi ressaltada por Tadeu Oliveira, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Observatório das Migrações internacionais (OBMigra). Segundo ele, a não identificação dos dados de entrada e saída de imigrantes do país pode apresentar um quadro destorcido da situação. “Quando a gente olha os pontos de entrada e saída do país, Pacaraima e Manaus são os únicos onde o saldo é positivo. Isso significa que estão entrando por um ponto e saindo por outro. Precisamos entender que o Brasil é passagem”, explicou.

De acordo com Oliveira, analisar apenas a entrada de imigrantes por Pacaraima leva a estimativas equivocadas do número de venezuelanos no país. “Se fizermos uma conta simples, multiplicando os 800 que entram por dia, teremos quase 300 mil pessoas em um ano. Mas não há os 300 mil venezuelanos em território brasileiro. Isso foi usado para dizer que era uma ameaça, que havia uma horda entrando que prejudicava o país”, afirmou. Para ele, essa definição é fundamental para a promoção de políticas públicas adequadas. “Uma coisa é atender 400 mil pessoas e outra coisa atender 50”, pontou.

mesa
O painel "Migrações Internacionais e Direitos Humanos" contou com a participação da UNFPA e OIM da ONU

Direito, proteção e trabalho

Ainda refletindo sobre as políticas de acolhida aos imigrantes, João Freitas, da Defensoria Publica da União (DPU), e Livia dos Santos Ferreira, auditora fiscal do trabalho, abordaram a situação de vulnerabilidade dessa população. De acordo com Freitas, a DPU tem, desde julho de 2018, uma missão permanente instalada na fronteira. “Estamos há sete meses com dois defensores sediados em Pacaraima, com foco em monitorar o controle migratório de entrada. Este é um tema bastante sensível para prevenção do rechaço indevido e garantia de assistência jurídica gratuita ao migrante em situação de trânsito na fronteira. Além disso, a DPU assumiu a função, um tanto pesada, da representação legal de crianças e adolescentes separados ou desacompanhados e, por extensão, também dos indocumentados, que abrange boa parte das crianças venezuelanas abaixo de 10 anos”, relatou.

auditora fiscal do trabalho
Para auditoria Fiscal do Trabalho, Lívia dos Santos Ferreira, a legislação não oferece proteção ao trabalhador comum que chega ao país

Do ponto de vista da Auditoria Fiscal do Trabalho, a legislação não oferece proteção ao trabalhador comum que chega ao país. De acordo com Lívia dos Santos Ferreira, a ausência de regulamentação do visto do trabalhador comum fragiliza o imigrante tornando-o mais vulnerável a situações de trabalho escravo. “Estamos tratando de uma imigração decorrente de vulnerabilidade socioeconômica e não há qualquer dispositivo de proteção na lei, no que tange o visto do trabalhador comum, que não vem exercer uma atividade específica”, explicou.

Segundo ela, há no Brasil hoje uma resolução normativa que permite às agências de empregos intermediarem trabalhadores estrangeiros. Ao mesmo tempo, a atuação dessas agências não é regulamentada por nenhuma lei. “Isso é gravíssimo, porque estamos falando de um trabalhador vulnerável. Se ele está sendo intermediado, provavelmente, está levando desvantagem, está sendo endividado. São práticas comuns do trabalho escravo”, alertou. (Assista abaixo o vídeo “Fome, saudades e trabalho escravo: a travessia dos venezuelanos no norte do Brasil”, do Repórter Brasil, exibido por Livia Ferreira durante o debate)

A auditora ressaltou ainda a dificuldade que vem sendo enfrentada para concessão de documentos aos trabalhadores resgatados de situações de trabalho escravo. “Quando encontramos um trabalhador estrangeiro indocumentado, em condição de trabalho análoga ao escravo, não estamos conseguindo dar o documento para vítima. Coisa que até o início de 2018 conseguíamos bem rápido”, afirmou. De acordo com ela, a Polícia Federal informou que entende que a nova Lei de Imigração, que torna a permanência desse trabalhador um direito, revogou a portaria referente ao trâmite de expedição dessa documentação.

Operação Acolhida

operação acolhida
Operação acolhida realizada pelo Exercito na fronteira em Roraima

A ação do Exército Brasileiro na fronteira foi relatada pelo Coronel Georges Feres Kanaan, coordenador da Operação Acolhida. De acordo com ele, o maior desafio da operação no momento é o processo de interiorização que, por meio de parceria do Ministério do Desenvolvimento Social com as prefeituras, direciona os imigrantes de Roraima, para outros lugares do país. “Nós temos três pilares:  o ordenamento da fronteira,  o abrigamento e a interiorização.  O desafio, hoje, é manter a interiorização.  O estado de Roraima é um estado isolado, porém estratégico. Não tem vizinhos, o vizinho brasileiro é, ao sul, o Amazonas separado por uma baita floresta.  É um estado que não tem a sua ligação na rede nacional de energia.  É um estado que só tem uma BR principal.  O desafio é que Roraima seja, realmente, uma passagem”, explicou o Coronel.

coronel
Coronel Georges Feres Kanaan relatou a operação acolhida

 

 

Francis Sanches e seus filhos
Filhos de Francis Sanches brincam no jardim do Museu da Imigração
Filha de Francis Sanches
mesa
Operação Acolhida
Fotógrafo Chico MAx
Exposição La Jornada no Museu da Imigração
Exposição La Jornada no Museu da Imigração
Exposição La Jornada no Museu da Imigração
Imagem de capa
Audiodescrição: Em área externa, imagem frontal de baixo para cima e em plano médio, duas crianças, ao centro na imagem, sendo um menino que encontra-se inclinado para frente e faz sinal de positivo com as duas mãos, tendo logo à frente, entre os braços, uma menina com cerca de três anos de idade, em pé, que sorri. Ambos são observados por uma mulher, à esquerda, que está em pé e sorri. Logo atrás deles, em todo o fundo da imagem, uma árvore de grande porte, com muita folhagem e longos galhos. Imagem 1 de 1

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004