Dois dias após o ataque, a escola estadual Raul Brasil, em Suzano, abria as portas para receber uma força-tarefa. Profissionais da educação e também da área médica de universidades públicas paulistas, entre elas a Unicamp, se juntaram às equipes coordenadas pela Secretaria Estadual da Educação para uma reunião de emergência. A ideia era planejar dia após dia como será feito o acolhimento de funcionários e alunos que viveram aquele dia de horror. A professora Telma Vinha, da Faculdade de Educação (FE) e a médica psiquiatra Karina Diniz Oliveira, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) pisaram na escola pela primeira vez. Elas estão entre os profissionais da Unicamp convidados para atuar com a comunidade escolar e famílias.
“A maior discussão foi decidir se a escola deveria ser reaberta ou não. Havia alguns funcionários por lá e também um estudante. Eles ainda estão em estado de choque e nos questionam o que podemos fazer por eles”, conta Karina. Depois da reunião foi criado um grupo de whatsapp denominado “Atendimento Suzano” com uma série de contatos de uma rede de trabalho e solidariedade que está se consolidando depois da tragédia. A Unicamp está contribuindo com o trabalho das pesquisadoras e de alunos da pós-graduação que têm voltado à escola sempre que necessário. O Sappe, especializado em assistência psicológica e psiquiátrica ao estudante da Unicamp também deverá participar.
Se a violência se estabeleceu em um piscar de olhos, foi muito rápida também a reação dos profissionais envolvidos em devolver um pouco de normalidade àquela escola e também as demais da rede paulista. O Gepem Unicamp “Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral”, que tem Telma como uma das coordenadoras, publicou no dia seguinte em seu Facebook o seguinte post: “Hoje e nos próximos dias, professores de todo o Brasil receberão em suas salas de aula alunos impressionados e ansiosos, afetados por esse acontecimento tão violento. Para ajudá-los a elaborar o ocorrido, é muito importante propiciar na escola espaços de escuta e acolhimento para que possam falar, expor pontos de vista e expressar seus sentimentos”.
A página do Gepem compartilhou o “Protocolo de intervenção após casos de violência dura em escolas”, (veja aqui) elaborado por integrantes do grupo que se dedicam a investigar o bullying e outras formas de violência, desenvolvendo propostas de intervenção para a melhoria da qualidade da convivência. Criado no final do ano passado em função do episódio ocorrido no Jardim Regina em Campinas, próximo da Escola Municipal Doutor João Alves dos Santos, quando um adolescente baleou um colega, o protocolo foi rapidamente adaptado para o caso de violência extrema, ou “dura”.
Os sete passos do protocolo propõem atividades que estimulam a expressão de sentimentos, a escuta empática e a reflexão sobre ações que poderiam prevenir a ação. Os pesquisadores do Gepem são categóricos em afirmar que tão importante quanto ensinar matemática ou português é a escola desenvolver um trabalho que valorize a qualidade da convivência.
“Queremos contribuir para que a escola seja cada vez mais humanizadora. Existem ações concretas que são mediação de conflitos, métodos para interferir em situações de bullying, procedimentos de diálogo coletivo entre os alunos, criação de equipes de ajuda que amparam colegas, só é preciso oferecer esse tipo de formação para os professores”, afirma Telma. Mudar a cultura de uma escola cada vez mais preocupada com o conteúdo e menos com as questões de convivência é primordial.
“Temos projetos em que atuamos ao longo de dois anos na formação de professores e uma série de procedimentos que fazem com que a qualidade da convivência seja melhor. Isso interfere no aprendizado, na percepção de como eu me sinto na escola”, destaca Telma. A professora lembra que foi para a escola que os agressores de Suzano voltaram e não para um lugar qualquer. “A escola para eles tinha um significado ruim e isso é algo que pode ser mudado nos alunos para que eles se sintam mais pertencentes e apoiados, para que convivam em um ambiente que gostem de estar”.
Telma refuta o argumento daqueles que afirmam que a academia só sabe das coisas em teoria. “Estamos na academia, mas nossas intervenções estão na escola pública. Temos procedimentos que foram implantados e estão em andamento”. Um exemplo foi o convenio com a Prefeitura Municipal de Campinas encerrado ano passado. “Introduzimos uma disciplina que em algumas escolas ganhou o nome de 'vivencia ética' e que consiste em 100 minutos por semana nas escolas de Ensino Fundamental para que os alunos construam projetos antibullying, expressão de sentimentos ou linguagem assertiva”. Há assembleias quinzenais nas quais os estudantes colocam em pauta seus problemas.
Escola aberta
As atividades de prevenção não são a garantia de que novos casos de violência extrema não irão acontecer. No entanto o sentimento de mal-estar de alguns estudantes pode ser minimizado e cuidado. “A escola aberta é uma característica da sociedade democrática. Criar fortalezas ou disseminar a ideia das armas, como faz os Estados Unidos, não vai funcionar. Veja que é o país que tem o maior número de ataques. O poder de letalidade da arma é o que piora o quadro”.
A ideia de implantar no país um modelo de escola militar assusta a pesquisadora. “Precisamos trabalhar no desenvolvimento de competências para uma sociedade democrática, o plano de escolas militarizadas com mais repressão e controle é o contrário do que estamos propondo”.
A professora acrescenta que muitas vezes o trabalho realizado atualmente nas escolas não é efetivo. Palestras sobre bullying, por exemplo, podem não surtir efeito no bem estar e na formação ética dos estudantes. “As escolas precisam estudar outras estratégias para lidar de forma mais eficiente com o problema da violência e não atuar apenas como bombeiras”.
A escola de Suzano não se diferencia em nada com as demais escolas do Estado, salienta Telma. Está inclusive bem colocada no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O ataque chamou a atenção para a necessidade da adoção de políticas que privilegiem a boa convivência e em grande escala, atingindo todas as escolas. Esse também é o propósito do Gepem na busca de parcerias para viabilizar as ações.
Longo prazo
“Os alunos que viveram o ataque foram perseguidos por predadores. Não somos presa e quando isso ocorre há uma quebra na existência do indivíduo que precisará reconstruir sua existência com o novo mundo que conheceu”, explica a psiquiatra Karina Diniz, da FCM.
Ela destaca que algumas reações ao ataque surgirão até seis ou oito meses depois. Por isso a ideia das profissionais da Unicamp é acompanhar a comunidade escolar por cerca de dois anos. “Podem existir casos de pessoas que agora estão bem, tranquilas, mas que, com o tempo, podem desenvolver crises de ansiedade, ter pesadelos, podem não conseguir fazer as coisas como faziam, pode surgir uma crise de pânico e o sentimento de desamparo”.
Karina é vinculada ao Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da FCM Unicamp. A chefe do departamento, Renata Azevedo, destaca que os psiquiatras estão em Suzano atuando no cuidado do estresse pós-traumático. “Mas não sabemos quem vai evoluir para isso, se a nossa ação na escola será cuidar do ambiente mais saudável ou de pessoas em particular”.
Os profissionais estão empenhados em observar os grupos de adolescentes, de adultos e também das famílias dos agressores. “Há uma possibilidade de problematizar com todos eles algo que vai ser muito importante para a saúde mental dos estudantes que é saber que algumas pessoas que tem determinadas fragilidades, que o sofrimento de cada um precisa ser levado e conta”.
A produção de empatia também é apontada pelas psiquiatras como uma saída para o problema da violência nas escolas. E começa com os profissionais envolvidos na rede de apoio. “A gente não está indo como especialista porque não temos essa experiência, mas é uma oportunidade de aprender e ensinar coisas”, afirma Karina.