Fazer conhecer e amar as culturas indígenas e africanas é o objetivo de Bene Fonteles, em sua passagem como professor especialista visitante pela Unicamp. Como parte da programação, o artista ocupa, junto com Fúlvia Gonçalves, a Galeria de Arte do Instituto de Artes (GAIA), até dia 15 de Outubro. A inauguração das duas exposições aconteceu nesta terça-feira (17) e contou com o lançamento do documentário “Terra e Semente”, dirigido por Eduardo Paiva do IA.
Fúlvia Golçalves, cuja história se confunde com a da própria Universidade, traz sua visão do humano na superfície da madeira e no documentário, pela lente de Paiva. Bené Fonteles, depois de incursões nas artes plásticas, música, jornalismo, poesia e da longa trajetória como artivista, chega pela primeira vez como professor na Universidade. Sua exposição “...transFIGURAções..” é promovida pelo Museu de Artes Visuais (MAV), com curadoria de Sylvia Furegatti. No encontro, o que chega reverencia a artista da casa, abrindo não apenas a exposição, mas o coração de cada um dos presentes. “Eu acho que a gente deveria fazer uma reverência a essa mulher que se dedicou tanto a arte aqui”, diz Bené curvando-se em frente à Fúlvia, que agradece e ressalta: “Continuo trabalhando!”.
Bené Fonteles: enquanto conversarmos, adiamos o fim do mundo
“Eu sou filho do encontro da civilização do couro, do Nordeste, com a civilização da borracha, da Amazônia. Eu sou esse conflito e confronto”, diz o artista paraense, nascido de pais cearenses que se aventuravam na mata, em busca da riqueza prometida pelo ciclo da borracha. Depois, no Mato Grosso e no Distrito Federal, participou ativamente da luta pelos direitos indígenas, incorporando a cultura deles a sua arte. “É como se eu tivesse criado uma vitrine para arte deles”, disse. Na “vitrine”, que Bené expõe na GAIA, redes, cocares e tangas compõem a série ninhos, doada para o acervo do MAV.
Para Sylvia Furegatti, diretora do MAV, a presença de Fonteles vem ao encontro do momento histórico de abertura da Unicamp aos estudantes indígenas e à diversidade étnico-racial e social. “Encontrar com alguém que tenha essa resiliência, essa postura ética, crítica e artística, eu acho que é um presente que a gente ganha”, afirmou.
O programa Professor Especialista Visitante, que trouxe Bené Fonteles, é promovido pela Pró-reitoria de Graduação (PRG) e busca trazer pra universidade pessoas que sejam reconhecidas nas suas áreas de atuação, não necessariamente ligadas à academia. De acordo com a pró-reitora de Graduação, Eliana Amaral, o edital permite às Faculdades e aos Institutos trazerem profissionais com expertises diversas e forte atuação no mercado. “O professor especialista visitante traz uma visão do mundo de fora da academia para o estudante, rompendo um pouco a redonda de vidro em que ficam no período da graduação. Busca aproximar, cada vez mais, a formação dos problemas do mundo real e da sociedade”, explicou.
Além das aulas matutinas aos estudantes, o artista oferece um curso livre, gratuito e aberto à comunidade interna e externa a Unicamp, todas as quintas-feiras, às 14h horas na sala P10 do Departamento de Artes Plásticas do IA.
Para Bené Fonteles, ensinar no ambiente formal universitário é um novo e estimulante desafio. Segundo ele, suas aulas têm buscado trazer aos estudantes uma história da arte brasileira a partir das heranças ameríndias e africanas. “Fico fazendo essa costura toda da história da arte no Brasil para chegar à ideia de que a gente não existiria sem a mestiçagem. Se a gente não conhece, não ama. Esse é o meu intuito: que esses alunos conheçam mais profundamente”, refletiu Bené.
No dia 27 de setembro, o artista participará da Casa dos Saberes Ancestrais, na Casa do Lago. Criada pelo Departamento de Cultura da Pró-reitoria de Extensão e Cultura (DCult-Proec) da Unicamp, a Casa dos Saberes Ancestrais teve como inspiração a obra “OcaTaperaTerreiro” de Fonteles, para Bienal Internacional de São Paulo de 2016, onde aconteciam as “Conversas para adiar o fim do mundo”. O título, emprestado pelo amigo Ailton Krenak, inspira também na Unicamp, a atuação do artista. “Essas conversas continuam. Como diz o Ailton, quanto mais a gente conversa, mais a gente adia o fim do mundo. Quando a gente conversa, propõe coisas, outras alternativas para a coisa não degringolar, como está degringolando”, afirmou Bené Fonteles.
Fúlvia Gonçalves: desde os quatro anos de idade, desenho na calçada, na parede, no fogão. Precisava ter cuidado comigo, porque eu ia rabiscando tudo
Com “Terra e Semente”, Fúlvia Gonçalves traz algumas de suas obras emblemáticas, produzidas ainda durante seu doutorado na Unicamp. A técnica desenvolvida por Flúvia envolve um empaste criado pela artista, aplicado a superfícies planas, sobre o qual ela desenha. “Com o cabo do pincel, eu vou fazendo os desenhos, sem esboço prévio. O que eu imagino, vai acontecendo. Depois de seco, começo a pintar com cores lavadas, muita água, tinta acrílica. Em outras partes, trabalho com rolinho de tinta”, contou Flúvia.
Conforme contou a artista, ela foi responsável, ao lado de Zeferino Vaz, Rogério Cerqueira Leite e um grupo de artistas pela fundação do Instituto de Artes da Unicamp, na década de 1970. “Nós ficávamos juntos com a música, com a turma do teatro. Era uma beleza! A gente trabalhava junto”, lembrou. Já na gestão de José Aristodemo Pinotti, Fúlvia criou o Departamento de Artes Plásticas. “Eu faço parte dessa história”, afirma. Sua arte está também registrada no campus, sendo a criadora dos murais das fachadas dos prédios do Hospital Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti – Caism.
Com prêmio recebido em Milão na Itália, exposições nos Estados Unidos e Europa e participações da Bienal Internacional de São Paulo de 1976 e 1992, Fúlvia Gonçalves se orgulha da sua trajetória. “É um percurso longo. É uma poética dentro do espaço e do tempo que se revê”, pontua.
A fim de contar essa história, Eduardo Paiva, docente do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do IA, produziu o documentário que leva o mesmo nome da exposição. Nele, Fúlvia conta sua história e mostra um pouco da sua arte. “Eu gosto de fazer documentário sobre artistas onde o artista fala. Chamar um monte de pessoas para falar sobre um artista e ele mesmo não falar da obra é um grande erro na estética da linguagem documentária. Eu procuro fazer um universo. O artista fala dele. Os outros não entram no documentário. As pessoas assistem e tiram suas conclusões sobre a obra sobre a trajetória”, explicou o diretor.
Outras obras da artista podem ser apreciadas até dia 28 de setembro no Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC), na exposição “Mundo Criativo”.