A Editora da Unicamp lança no próximo dia 21 de outubro, às 15h30, na Livraria do IEL, Encontros na Análise de Discurso: efeitos de sentidos entre continentes, livro que reúne entrevistas e relatos de nomes importantes da Análise de Discurso, como Eni Orlandi, Paul Henry, Régine Robin, Michel Plon e Marie-Anne Paveau.
Os textos tratam das experiências dos entrevistados na área da linguística que busca, basicamente, analisar o funcionamento da ideologia nas práticas de linguagem. Todos os entrevistados têm em comum outro detalhe: conheceram, em algum momento da vida, Michel Pêcheux (1938-1983), filósofo francês que lançou as bases teóricas dessa linha com seu livro Análise automática do discurso, de 1969.
Frutos de um projeto elaborado pelo Coletivo de Trabalho: Discurso e Transformação (Contradit), as entrevistas do livro narram parte da história do desenvolvimento da Análise de Discurso pelo ponto de vista de pessoas diretamente envolvidas com ela, passando pelos impasses políticos e institucionais, além do impacto que Pêcheux causou em suas vidas acadêmicas.
Confira a entrevista feita com Luciana Nogueira e Guilherme Adorno, doutores em linguística pela Unicamp e organizadores do livro sobre o lançamento.
Editora da Unicamp: Como surgiu a ideia para o livro?
Organizadores: Em 2012, alguns membros do Contradit (Guilherme, Phellipe, Maurício e Rodrigo) participaram de uma das edições do evento organizado pelo Cemarx, o Colóquio Internacional Marx e Engels, do IFCH. Nessa ocasião, conheceram a Roselis Batista, que começaria ali a nos contar sua história, seu percurso e o encontro dela com o Pêcheux. Diríamos que, a partir dali, tivemos a ideia mesmo de realizar as entrevistas e publicá-las em livro. E nosso objetivo, desde o primeiro momento, foi tentar trilhar os trajetos, colocar em cena, dar visibilidade para a teoria materialista do discurso, na sua constituição e circulação, não só na França, como no Brasil e no México. A ideia para o livro coincide, de um certo modo, com o próprio projeto do Coletivo, que é enfatizar as questões ligadas ao materialismo, interessado em como isso pode fazer avançar em direção às questões da atualidade, visando a transformação da práxis científica, que também é política.
Editora da Unicamp: Qual a proposta dos organizadores ao reunir entrevistas com figuras importantes da Análise de Discurso?
Organizadores: Bem, de início, vale dizer que toda disciplina tem uma história. E nos interessou, assim, compreender um pouco mais dessa história da AD (Análise de Discurso), a partir dos sujeitos que a viveram, que a produziram. A relação com a França, nesse sentido, é inevitável. É importante dizer que nem todos os nomes em que pensamos estão no livro. As próprias condições espaciais, temporais e financeiras moldaram/modificaram a nossa proposta inicial. Então, como dissemos na Nota Prévia no livro, conversar com pessoas que participaram direta ou indiretamente da fundação, da problematização, da expansão e do desenvolvimento da Análise de Discurso, é insistir, de um certo modo, na retomada de percursos, na aproximação da concretude histórica da discursividade e seus (efeitos) sujeitos, na transformação da prática científica e política. Mas é preciso dizer que, independentemente de estarmos movidos pelo desejo de preencher algumas lacunas e também motivados a abrir novas questões, nos deparamos com a incompletude e a contradição, problematizadas por Pêcheux.
Editora da Unicamp: Como foi a experiência de fazer e reunir estas entrevistas, com tons tão diversos?
Organizadores: Muito difícil, mas extremamente sedutora. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o projeto envolveu muitas pessoas: os organizadores, os entrevistados e os colegas que apoiaram de diversas formas, entrevistando, traduzindo ou colaborando com o contato. E cada um em diferentes regiões do país, ou mesmo em diferentes países. Durante todo esse trabalho, nós primamos pelo respeito às particularidades de cada entrevistado, como o tempo, o modo de contato, a forma de falar/responder textualmente as nossas questões; enfim, diversas escolhas. Um dos diferenciais desse livro é justamente reunir entrevistas que também foram realizadas pessoalmente. A oralidade dá uma dimensão muito interessante para essa narrativa histórica. Como alguns membros do Coletivo fizeram estágio na França, essa interlocução teve mais condições de ser realizada. Para citar um caso: Luciana estava na França em 2012, e foi nesse momento que apresentamos o projeto do livro para a Francine Mazière. E ela o recebeu muito bem. Porém, como era algo que envolvia muita gente e cuidado com o trabalho, a entrevista foi realizada pessoalmente só em 2014 pelo Guilherme e o Phellipe (outro organizador do livro). Essa dimensão temporal é sintomática da complexidade desse projeto: desde a primeira ideia até o lançamento, foram sete anos de trabalho, muitos percalços e muito aprendizado com o funcionamento das diferentes línguas, o modo de trabalho dos sujeitos de cada país e as burocracias institucionais.
Editora da Unicamp: A Nota Prévia da obra afirma que “Não trabalhar (com) a contradição na Análise de Discurso é ficar fora da movência dos sentidos. É deixar a teoria estagnar”. O quanto isso guiou a organização do livro?
Organizadores: Do início ao fim. Como dissemos, tivemos que lidar com uma heterogeneidade grande de pessoas e histórias, e isso implica necessariamente lidar com a diferença de vontade, de desejos e de necessidades, ou seja, ao lidar com o outro, a gente lida inevitavelmente com a contradição, o dissenso, o desentendimento. A questão é justamente trazer a contradição para o trabalho, e não fingir sua inexistência. É trabalhar “com”, e não “apesar de”. Encontramos o inesperado por diversas vezes. Em muitos momentos, o cansaço quase levou à desistência. De certo modo, reconhecer a alteridade e esse trabalho com a contradição nos ancorou e nos deslocou da tentação narcisista de aceitar apenas o conhecido.
Editora da Unicamp: A Análise de Discurso pode ser encarada mais como uma “teoria” ou como uma “metodologia”?
Organizadores: As duas coisas, inseparavelmente. Há método e há teoria para fazer análise. É uma relação dialética entre teoria e análise, e esta é uma especificidade da teoria materialista do discurso, que procura compreender a produção dos sentidos, materialmente. É o material de análise que fará o analista de discurso mobilizar a teoria. Como não se trata de uma relação de aplicação, muitas vezes a materialidade discursiva faz a teoria se deslocar. Quando, “na prática, a teoria é outra”, então talvez seja o caso de repensar a teoria. Levar isso às consequências não é fácil. Ao mesmo tempo, a teoria ajuda a nos deslocarmos de uma posição empírica, direta e até inocente em relação ao funcionamento do discurso.
Editora da Unicamp: Michel Pêcheux é a figura central quando se fala em Análise de Discurso, e todos os entrevistados o conheceram pessoalmente e têm experiências interessantes para compartilhar. O livro também é uma homenagem póstuma ao filósofo?
Organizadores: Certamente é uma homenagem a ele, mas não só. O livro trata de muitos aspectos da disciplina: histórias, dificuldades, atualidades e muitos sujeitos. Michel Pêcheux é uma figura de referência, um fundador, filósofo e político como poucos. Raro. No entanto, achamos que uma das coisas que o livro mostra é a complexidade da rede de relações construídas com ele. A Análise de Discurso é também resultado de um trabalho coletivo, composto por sujeitos com percursos singulares, com diferença de perspectivas. Um dos perigos que sempre corremos é o de achar que a Análise de Discurso seguiu somente os caminhos definidos previamente por Michel Pêcheux. Ele também soube escutar muito, retificar posições, reconhecer a importância do trabalho do outro. Em alguns momentos, chegou a ser confrontado. Assim, esse livro é uma homenagem a todos os que fazem parte da história da Análise de Discurso, nomeados ou não. Eni Orlandi, por exemplo, é uma autora com muito mais tempo de trabalho do que Michel Pêcheux. Isso não significa maior ou menor importância. Eni também formou um grupo de trabalho espalhado por todo o Brasil, assim como foi, de certo modo, afetada por esse grupo. Não existe práxis científica individual; ela é sempre coletiva. Nossa aposta é de que o livro mostre um pouco mais dessa complexidade para continuar construindo, coletivamente, o futuro da teoria.
Editora da Unicamp: O livro Análise Automática do Discurso é um marco na vida de praticamente todos os entrevistados. Como vocês enxergam a relevância desse texto hoje?
Organizadores: Interessante o destaque que você dá para a obra Análise Automática do Discurso, que, inclusive, está completando 50 anos agora em 2019. Considerado “o texto fundador”, a obra é extremamente relevante pela mudança de terreno que inaugura. Ali estavam dadas as bases para o desenvolvimento da teoria, que mais tarde, em 1975, ganharia contornos primordiais em Les Verités de la Palice (traduzida no Brasil como Semântica e discurso). Mas ela não é só a base para o que vem depois. Nesta obra, Michel Pêcheux lança questões que são até hoje de difícil compreensão e muito além do seu tempo. A proposta de automatização, que, desde o início, comporia apenas uma das etapas de análise, traz formas de trabalho totalmente novas para a época. Muito antes do surgimento do computador pessoal, o autor formulou algoritmos de tratamento dos textos para além de uma lexicometria ou uma estatística de dados. Uma obra que soube passear com maestria por muitas áreas do conhecimento: Linguística, História, Psicologia Social, Informática, Lógica e Matemática. Era uma ousadia para a época e continua sendo uma ousadia para os dias atuais.
Editora da Unicamp: O tema “ideologia” está em voga atualmente. Fala-se em “ensino sem ideologia”, em “relações comerciais sem ideologia”, de maneira que o próprio termo se tornou mal interpretado, com uma conotação negativa. Como você analisa esse tipo de fala?
Organizadores: Sem dúvida, é o tipo de fala que já mostra a ideologia em funcionamento. Se entendemos a ideologia como prática, como mecanismo de produção de evidências, a ideologia jamais poderá ser “descartada” ou utilizada como “atos de escolha”, somente quando se quer, quando se considera oportuno. Somos sujeitos de linguagem e a interpretação nos constitui. Onde há interpretação, há ideologia. Para nós, trata-se de uma relação constitutiva entre sujeito, linguagem e ideologia. Dizer “ensino sem ideologia” ou “relações comerciais sem ideologia”, ou ainda, em outra direção, dizer “ideologia de gênero”, é um modo de, ideologicamente, apagar a ideologia. Não há neutralidade nem mesmo nas falas mais cotidianas. Agora, chama a atenção, como você mesmo coloca na sua pergunta, que está “em voga” atualmente o termo “ideologia”. Por que isto é curioso? Veja, no final da década de 1970, começou a se falar no “fim da história”, o “fim das ideologias”. Nas décadas de 1970 e 1980, temos acontecimentos políticos que foram interpretados como uma virada na história: a dissolução das esquerdas, a queda do muro de Berlim, o início da redemocratização da União Soviética nos anos 1990, as reformas econômicas da China e muitos outros. Para alguns, parecia que o capitalismo finalmente tinha ganhado. Aos poucos, as contradições, os problemas econômicos, as guerras, a exploração animal e a ambiental, a perseguição a negros, mulheres e LGBTs foram mostrando que o capitalismo não era tão maravilhoso assim. Hoje, ainda estamos experienciando essa disputa em relação ao mundo que queremos. Como muitas posições ideológicas ganharam voz, isso fica em pauta nas discussões familiares, institucionais e cotidianas. É difícil desenhar o mapa ideológico atual, porque o que fica evidente são as polaridades, os opostos mais diretos; mas há muito mais em funcionamento. Justamente a Análise de Discurso nos ajuda a compreender um pouco o que está acontecendo. Porém, falta trabalho e tempo para dar conta do contemporâneo. Estamos sempre correndo atrás.
Editora da Unicamp: Como estudantes de letras, linguística, filosofia, ciência política, psicanálise e outras ciências humanas podem se beneficiar com a leitura de Encontros na Análise de Discurso?
Organizadores: De inúmeras maneiras. De modo ainda mais geral, acreditamos que apresentamos algo para todo mundo que se interessa pelo fazer científico. Como dissemos, o livro mostra que ciência se faz no plural, pelo coletivo, com diferenças, com trabalhos que passam pela relação com o político, com o econômico e com o ideológico. Há aí também um problema posto: colocar a teoria em questão, pela história da teoria. O modo como ela se formula não é linear, não é sem dúvidas e não é sem compromissos. Para além destes pontos mais gerais, a leitura do livro é uma experiência de lidar fora da caixa com as disciplinas: linguística, história, filosofia, psicanálise encontram-se o tempo todo na história e na prática da Análise de Discurso. Como os estudantes poderão notar, não se trata de fazer uma mistura ou uma soma aleatória, mas a teoria lida com as materialidades complexas que nos constituem como sujeitos de linguagem, sujeitos históricos, sujeitos políticos.
Serviço
Livro: Encontros na Análise de Discurso: efeitos de sentidos entre continentes
Organizadores: Guilherme Adorno; Helson Flávio da Silva Sobrinho; Juliana da Silveira; Luciana Nogueira; Luís Fernando Bulhões; Maurício Beck; Phellipe Marcel; Rodrigo Oliveira Fonseca.
ISBN: 978-85-268-1482-0
Edição: 1ª
Ano: 2019
Páginas: 328
Dimensões: 14x21
LANÇAMENTO
Data: 21/10, segunda-feira
Horário: 15h30
Local: Livraria da Editora da Unicamp no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)