Presente à histórica Assembleia Extraordinária da Unicamp do último dia 15 de outubro, o professor Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), concedeu antes esta entrevista pregando a articulação e maior mobilização da comunidade científica e acadêmica para enfrentar a onda de ataques às universidades públicas, às instituições de pesquisa e ao sistema nacional de ciência e tecnologia, criando-se um movimento para “pensar e construir um projeto de país”. “A Unicamp, particularmente, tem este papel muito importante de discutir essas questões internamente, mas também de se articular com outros segmentos para superarmos as dificuldades.”
Havendo quem veja certa inércia dos movimentos progressistas diante dos ataques à educação e à ciência que se acentuaram no atual governo, Ildeu Moreira observa que a sociedade civil brasileira sempre apresentou certa fragilidade. “Este é o problema. A nossa sociedade, tradicionalmente, não possui uma organização muito forte e vem mostrando suas debilidades ao longo de décadas, tanto que o país ainda não construiu um projeto nacional articulado. Precisamos atuar muito mais em conjunto: os setores acadêmico, científico, estudantil e os outros fora da universidade – empresários, trabalhadores, rurais – que fazem a nação existir. Acho que quase todos os setores dinâmicos – exceto alguns que se aproveitam dessa desigualdade – querem isso. A questão é como articulá-los.”
O presidente da SBPC lembra que em menos de trêss anos o Brasil vai comemorar o bicentenário da Independência, o que torna este um bom momento para reflexão. “Que país nós fomos nesses 200 anos? Que país repartido tivemos, com uma massa enorme de brasileiros alijados de condições adequadas vida? O Brasil foi o último país a abolir a escravidão, mostrando uma estrutura de sociedade bastante conservadora ao longo do século 19, ao passo que no século 20 lideramos muitos dos índices internacionais de desigualdades sociais, apesar de toda a riqueza e potencial que possuímos. Sempre é o momento, mas neste particularmente de crise, os movimentos sociais devem pensar o país que queremos.”
Pessoalmente, Moreira pensa em um país mais justo, que aproveite de maneira sustentável seu imenso potencial de biodiversidade e de riqueza para diminuir as desigualdades. “São metas que devemos colocar à frente, tendo a ciência, tecnologia e educação como instrumentos centrais, como fizeram outros países que estavam em situação similar há 30 anos. Ficamos atrás, por exemplo, da China, que tinha um PIB igual e investia menos em C&T que o Brasil; a Coreia estava na mesma situação. Esses países cresceram tão rapidamente porque apostaram em projetos nacionais e tiveram políticas continuadas em educação e C&T, enquanto o Brasil oscila muito: há momentos em que as universidades e os recursos se expandem e depois diminuem drasticamente.”
Eleito em julho de 2017 e reeleito agora para o biênio até 2021, o professor de física da UFRJ ressalta que a SBPC tem filiadas 144 sociedades científicas das áreas mais diversas e mantém uma tradição de discutir os grandes problemas da sociedade brasileira, não só na área de ciência, mas em outras importantes permeadas por ela, como saúde, meio ambiente, condições de vida e direitos humanos. “É fundamental que a SBPC esteja participando dessa luta, mas somos apenas um elemento de um contexto bem mais amplo. E acho fundamental que as universidades públicas, que têm hoje uma capilaridade em todo o território nacional, estejam articuladas no movimento de pensar o país.”
Catástrofe anunciada
Conforme Ildeu Moreira, os cortes mais acentuados de recursos para as universidades e o sistema de ciência e tecnologia começaram em 2014, mas a SBPC, em seus 71 anos de existência, já havia colocado o problema para os diversos governos anteriores. “A SBPC sempre participou ativamente da vida nacional no sentido de discutir a ciência. Colaborou na criação do CNPq, da Capes, do Ministério de Ciência e Tecnologia, na inserção da ciência na Constituição Brasileira, na Lei de Diretrizes e Bases. Sempre esteve presente, manifestando-se crítica e construtivamente, fosse qual fosse o governo. Os cortes vêm em um crescendo e uma das razões certamente é a crise econômica, mas ela não explica um processo que já chamamos de desmonte do sistema nacional de C&T.”
Moreira define como catastrófico o orçamento para este ano e pior ainda para 2020, dando o exemplo da Capes – “agência fundamental para a pós-graduação brasileira” –, que terá seus recursos cortados pela metade. “O CNPq também está estrangulado, sem recursos para fomento; a Finep, que é a agência para apoio à inovação, inclusive das empresas, está com 90% de seu orçamento contingenciado e, de maneira alguma, vai poder operar como deveria; e as universidades públicas federais também estão sofrendo com contingenciamentos e cortes. É um quadro bastante preocupante.”
Enquanto isso, acrescenta o presidente da SBPC, outros países apostam cada vez mais em ciência e tecnologia: a China caminha para destinar ao setor de 2% a 2,5% de um PIB imenso, Coreia do Sul e Israel reservam de 4% a 4,5% e os Estados Unidos, em torno de 3%, e isso há muito tempo. “E o Brasil segue patinando em aproximadamente 1%, reduzindo recurso público em que venha recurso privado. Além do desafio em termos de orçamento, existem outros, como de legislação e de burocracia, que no Brasil sempre foram um problema seríssimo. Conseguimos criar um marco legal para ciência, tecnologia e inovação, que avançou alguns pontos, mas que também trava a ciência brasileira – bem como a atividade empresarial – e que deveria ser implementado, discutido e aprimorado.”
Marcha pela Ciência
Ildeu Moreira recorda que a SBPC, nos últimos anos, vem cumprindo seu papel histórico de atuar junto ao governo e ao Congresso Nacional, como no início deste mês de outubro, na chamada Marcha pela Ciência, que incluiu manifestações públicas. “Levamos para todos os deputados da Comissão Mista de Orçamento o posicionamento de mais de 70 entidades pela recomposição do orçamento de 2020. Por uma recomposição tanto do CNPq, como da Capes, MCT e instituições e empresas de pesquisa fundamentais – a exemplo da Embrapa, que presta um serviço enorme para a ciência, a agricultura e a economia, e que também está com o orçamento reduzido à metade para o ano que vem.”
Insistindo no termo catastrófico para o cenário de 2020, Moreira insiste também para que a comunidade científica e acadêmica se mobilize mais para se contrapor a esta onda de ataques, quem sabe organizando grandes manifestações, como da Assembleia Geral Extraordinária da Unicamp. “Parece que as pessoas estão meio aturdidas diante da sucessão de cortes e de medidas prejudiciais para a ciência e o país. Mas todo governo é sensível a manifestações significativas da sociedade, mesmo que diga que não é. Já a SBPC é uma sociedade científica e não um sindicato que promova greves e atos públicos. Nosso papel é de juntar dados para o trabalho de convencimento junto ao Congresso, ao governo e à sociedade; é mais de articulação e de expor o quadro da realidade brasileira. É a sociedade brasileira, como um todo, que deve escolher seus rumos.”