Depois de 20 anos formado pelo Instituto de Artes da Unicamp (IA), o artista plástico Paulo Ito volta à universidade para atender a um pedido especial: criar uma obra em algum dos espaços disponíveis do campus. Vencedor da edição 2019 do Prêmio Fundação Bunge, que neste ano reconheceu o valor das artes visuais de rua e premiou artistas dedicados aos murais e grafites, Paulo agora poderá deixar sua marca no local que o formou como artista e contribuiu para que ele tivesse uma visão crítica do mundo e do próprio papel dos artistas de rua.
"Eu fico lembrando do tempo em que eu era aluno, então é um convite animador, uma consideração que você nunca imagina. Legal porque é uma maneira de deixar uma mensagem minha, mas também caracteriza a gestão dessa reitoria, externaliza uma postura aberta, que contempla a arte em um momento em que os artistas são atacados, que querem que eles desapareçam", avalia Paulo sobre a proposta apresentada pela universidade. Em um bate-papo descontraído com o Portal Unicamp, que ocorreu logo após o convite, o artista lembrou de sua vivência como estudante e de episódios significativos para sua carreira. Ele também opinou sobre o papel da arte de rua e dos artistas no momento atual do país.
Formação como artista e busca por liberdade
Paulo ingressou na Unicamp em 1996 para cursar Artes Visuais no IA. Na época, o curso se chamava bacharelado em Educação Artística. Hoje, ele acredita que essa experiência foi importante para que ele se tornasse um artista questionador, tanto em relação ao mundo, quanto ao seu papel como artista. "É difícil saber que caminho eu teria tomado se eu não tivesse passado por aqui. Mas minha passagem foi significativa. Quando eu comecei a pintar na rua e a conhecer outros artistas de rua, no começo dos anos 2000, eu tinha uma outra visão, outra bagagem, era algo mais experimental, e com uma pretensão mais artística. Isso tem muito a ver com essa passagem pela Unicamp e comigo hoje, de sempre tentar ter uma visão fora do que as pessoas estão fazendo", recorda Paulo.
A opção pela universidade também o tornou diferente de muitos outros artistas de rua, que adquirem experiência e sensibilidade artística com a prática do dia-a-dia e os desafios de criar em espaços públicos, muitas vezes contra a vontade de parte do público. "Eu sempre fui meio do contra, muitos artistas eventualmente estudaram artes, mas depois de passar pela experiência de rua, eu tive uma trajetória um pouco inversa. Isso, com certeza, foi importante", comenta.
Mas sua passagem pela universidade não contribuiu apenas na formação acadêmica. Foi no campus onde ele teve a primeira experiência da vida com os murais e grafites. O episódio ocorreu em 1997, na véspera de um evento em que a Unicamp receberia estudantes do Ensino Médio para conhecer a universidade, algo parecido com o que hoje é o programa Unicamp de Portas Abertas (UPA). Junto com outros colegas do IA, que formavam o grupo M.RRUT, criou uma performance de música e grafite. Foram mais de cinco horas de trabalho para que eles conseguissem deixar sua marca em um dos muros do Teatro de Arena da Unicamp, na praça do Ciclo Básico.
De lá para cá, o espaço já recebeu novos grafites e intervenções, mas a experiência se fixou na mente de Paulo. Desde então, não parou de trabalhar com a arte de rua, sempre na busca pela liberdade de criação e movido pelo desejo de produzir obras marcadas pelo senso crítico, sarcasmo e humor.
Depois de formado, Paulo retornou para São Paulo, onde começou a trabalhar com ilustrações publicitárias para pequenos comércios, como restaurantes e oficinas, e também com produções para materiais didáticos. Ainda assim, não parou de seguir seu ideal de produzir uma arte crítica e libertária. Para ele, era frustrante ter que atender a demandas específicas de clientes. "Acho que tudo isso veio de uma busca por liberdade, de eu poder produzir da forma mais livre possível. Acho que surgiu como uma resposta aos trabalhos comerciais que eu fazia no começo dos anos 2000. As pessoas queriam sempre coisas artisticamente pobres, conservadoras. Quando você pinta um comércio, você tem que fazer algo que agrade as pessoas, que chame o público, e isso me irritava demais. Acho que o que eu faço hoje é algo totalmente livre, sem chefe, posso até mesmo desagradar (risos), isso é fantástico", comenta Paulo.
"A arte é uma ferramenta para eu comunicar"
Paulo se define como um pintor de rua. Ele acredita que os artistas que se dedicam a essa área acabam transitando entre a essência do grafite, arte transgressora e que pode causar incômodo por ser feita sem autorização ou moderação em seu tom crítico, e os murais, que ganham cada vez mais popularidade nas grandes cidades do mundo e espaço nas galerias mais badaladas, mas nem por isso deixam de receber críticas dos grafiteiros "de raiz".
Hoje é essa dualidade que inquieta Paulo. Ele já teve obras expostas na Bienal Internacional de Grafite, realizada no Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia, além de ter participado de exposições coletivas fora do país. Seus traços também podem ser conferidos na A7MA (lê-se "a sétima"), galeria de arte de São Paulo. Um dos reconhecimentos pelo trabalho desenvolvido por anos nessa área veio agora com o Prêmio Fundação Bunge. A solução para esse dilema? Para Paulo, que tem nos traços sarcásticos e bem humorados da antiga Revista Mad uma inspiração é manter-se sempre comprometido com o que ele deseja transmitir com suas imagens. "A arte é uma ferramenta para que eu consiga comunicar o que estou pensando, não o contrário. Acho que para a maioria dos artistas a arte é um fim em si, por isso tanta preocupação estética, você vê obras muito bonitas, mas com um conteúdo simples demais. Por isso receber o prêmio me dá até uma apreensão, é legal ter esse reconhecimento, mas eu tenho que tomar cuidado. Por isso me comprometi a gastar totalmente o valor do prêmio com a minha arte, acho que você tem que ter esse comprometimento e esse cuidado", analisa o pintor.
Apesar do esforço para que seu trabalho seja cada vez mais reconhecido, foi de forma involuntária que um trabalho de Paulo viralizou. Às vésperas da Copa do Mundo de 2014, ele produziu um mural em um evento tradicional de arte de rua na Vila Pompeia, em São Paulo. A pintura, que colocava lado a lado os investimentos feitos para o mundial e a desigualdade social do país, chegou a ser compartilhada pela cantora Rihanna, colocando Paulo sob os holofotes. Assim como sua primeira obra, feita no Teatro de Arena da Unicamp, hoje o mural não está mais no muro que lhe deu 15 minutos de fama. Mas pode ser conferido em uma rápida busca no Google.
Depois de alguns anos desse episódio inusitado, Paulo olha para trás com autocrítica. "É interessante, você acha que isso vai te levar para o MoMA (risos). Mas teve uma projeção muito mais fora que dentro do Brasil. Acho que o brasileiro gosta de um humor mais escrachado e a mídia brasileira não se interessou muito, ela é conservadora. Eu também não quis muito papo com a mídia daqui, por ser muito radical com a grande mídia. Hoje eu avalio que eu poderia ter aproveitado melhor o momento aqui. Acho que se você não ocupa alguns espaços, outros artistas com menos qualidade artística vão ocupar. Então quando você acredita no que você faz, eventualmente você tem que fazer concessões. Não que eu me arrependa, mas eu faria diferente hoje, falaria com a grande mídia e tentaria expandir mais o meu trabalho".
O próximo compromisso artístico de Paulo será com a Unicamp. O convite para deixar sua marca em algum espaço do campus foi feito em uma reunião com o reitor Marcelo Knobel. Ele ainda não tem uma ideia clara do que pretende criar para a universidade, mas garante que será algo especial, como forma de retribuir a formação e o reconhecimento por sua arte. "Terminando aqui eu vou dar uma volta para ver se encontro a parede que faça com que meus olhos brilhem", comentou com o entusiamo de quem, dessa vez, verá sua marca no campus por um bom tempo.
Conheça na galeria de imagens alguns dos trabalhos de Paulo Ito: