Uma mãozinha levantada, uma coroa real na cabeça e, uma a uma, as crianças vão para frente falar sobre que parte mais gostaram da história e porquê. A parte do cabelo black power, que carrega tudo o que Tayó considera mais importante na vida é, disparada, a que elas escolhem para reproduzir. “E o que, ou quem, você levaria no seu black power?”, instiga Kiusam de Oliveira, autora do livro O mundo no black power de Tayó. O clima da conversa, a essa altura, é o melhor possível. Mas no começo do evento de contação de histórias não foi bem assim.
Kiusam é escritora, professora de educação infantil, arte-educadora, militante do movimento negro. Ela foi uma das convidadas para atividades na Estação Guanabara do evento Unicamp Afro, realizado pela Universidade até o fim do mês de novembro (veja aqui o site com a programação). Ela contou a história da menina Tayó somente depois de uma aula sobre racismo que gerou aplausos e um certo constrangimento.
- Vou te contar a razão:
A menina negra Loide de Souza Mafra sempre embalou bonecas brancas. Só na faculdade, nos anos 1980, encontrou a primeira boneca negra para comprar. Hoje Loide, que já está aposentada, tem mais de cem bonecas e bonecos negros que estão em exposição no mesmo evento, na Estação Guanabara. Jovens que visitaram a exposição antes da contação de história, muitos deles negros, fizeram, de acordo com a escritora, alguns comentários jocosos sobre as bonecas. Kiusam ouviu e decidiu começar assim sua conversa inicial com o público: “A maior vitória do racista é quando o negro não se reconhece como negro”.
Kiusam se lembrou que as bonecas negras geralmente são rejeitadas entre as crianças. Que quando ela conta histórias com bonecas negras e pede que abracem as bonecas, algumas crianças rejeitam dizendo que ela é feia e preta. “Bonecas negras são desprezadas no espaço escola. Isso está ligado à afetividade relacionada ao corpo negro”, reflete a autora.
O racismo divide, continua a escritora: “nos separam enquanto negros por tipos de cabelo, por tons da pele, alguns são considerados mais negros que outros. Mas cada vez que vejo isso acontecer, me fortaleço no meu trabalho de empoderamento das crianças negras e não negras, na contação de histórias, e na conversa de textos engajados na temática das relações étnico raciais”.
Kiusam tem o poder das palavras. É enfática em dizer que não se pode falar em direitos humanos no Brasil, “quando nós não temos um enfrentamento maior, um combate das práticas racistas, que vão desde uma criança na escola dizer ‘minha mãe falou para eu não emprestar o lápis para ela porque ela é negra’ até destruição de casas de candomblé e o apedrejamento de jovens com seus fios de conta”.
Para a autora, desde 2003 houve um pequeno avanço, que foi a ampliação do número de pessoas que se declaram negras para o IBGE. Houve a instituição da lei 10639/2003 que obriga as escolas a incluir no currículo o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana. Mas chega o mês de novembro, o Mês da Consciência Negra, e não há que comemorar.
“Espera-se esse mês para falar sobre o assunto, um assunto que as crianças estão vivendo cotidianamente nas escolas. Elas ouvem que tem cabelo ruim e isso incide no corpo das crianças negras que rapidamente se entendem como feias, como não princesas, como não bonitas”. Kiusam não está desqualificando a luta que garantiu as programações de novembro. Ela considera que, pelo menos nesse mês, existe uma oportunidade maior para sensibilizar pessoas sobre o que significa o racismo.
Literatura
Ela denomina a literatura infantil que faz como “uma literatura negro-brasileira do encantamento”. Kiusam observa que as crianças se sabem negras de uma forma pejorativa e negativa. Elas acreditam que sejam feias por serem negras. “Entendo que as crianças negras precisam ter seus corpos re-encantados. Estamos num país que destrata negros e negras. Posso não conhecer todos os negros e negras que estão nesse espaço, mas com certeza todos eles passaram por situações como eu passei”.
Todas as crianças precisam dar conta de se reconhecerem bonitas e potentes, para se tornarem jovens produtivos e ativos, e adultos conscientes de sua beleza e representatividade no mundo, complementa a professora.
Sobre a universidade, isso também precisa mudar, destaca Kiusam. “A universidade tem um papel fundamental de ser um espaço de criação e de pesquisas, de teorias e validação de formas de pensar e agir intelectualmente. Mas a universidade acaba valorizando os cânones, que nunca são negros. Há, no entanto, grandes cientistas negros que não tem visibilidade”.
Segundo ela, a universidade também precisa cumprir a lei que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares.
A contação de histórias terminou. Faltava pouco para que todos fossem embora. E finalmente, na plateia composta de crianças pequenas na frente, de maioria branca, e adolescentes mais atrás, com maior número de pessoas negras, uma mão levantada. Era a de um garoto de cabelo black power.