O mercado de trabalho, ao refletir as desigualdades de gênero presentes na sociedade, torna-se um espaço desafiador para as mulheres. Dificuldades no acesso e jornadas exaustivas, por exemplo, são alguns dos problemas enfrentados e que têm incidência sobre a saúde das trabalhadoras. Estas e outras questões relacionadas ao trabalho feminino foram debatidas na mesa-redonda “Gênero e Trabalho: faces da desigualdade”, nesta terça-feira (12), no Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Unicamp. O evento também marcou o lançamento do e-book de mesmo nome, em que pesquisadoras da área da saúde, epidemiologia e sociologia abordam diferentes aspectos da questão.
Aparecida Mari Iguti, docente da FCM, é uma das organizadoras do livro, junto à docente Inês Monteiro, e explica a relevância dos estudos de saúde, gênero e trabalho. “Uma das razões é que a concepção do trabalho continua sendo machista. A questão de gênero e da divisão sexual do trabalho fica um pouco escondida. Em pleno século XXI a gente continua com questões bastante básicas, seja na questão do trabalho, seja na questão da saúde”. Dessa forma, observa, é importante que esses problemas não sejam só tema de pesquisa, mas suscitem as reflexões necessárias para profundas mudanças em direção e uma sociedade mais igualitária.
Quatro autoras expuseram resultados das pesquisas na mesa-redonda. Os temas abordados foram: barreiras e dificuldades no trabalho para as mulheres trans; ingresso precoce no mercado de trabalho e a relação com a saúde das mulheres; precarização no trabalho das manicures; relação entre trabalho, aposentadoria e saúde das mulheres idosas.
Mulheres trans e trabalho
Heloísa Aparecida de Souza, psicóloga docente da Pontifícia Universidade Católica (PUC) Campinas, abordou a questão das mulheres transsexuais e o acesso ao mercado de trabalho, assunto sobre o qual ela e os estudantes Carlos da Silva e Rômulo da Silva escreveram para o e-book. Segundo ela, se o mercado já é desafiador para mulheres cisgênero, para as trans é ainda mais árduo e restrito. “Se trata de uma questão que ainda é muito tabu, cercada por preconceitos”, afirma.
Após explicar a transsexualidade feminina, caracterizada pela pessoa que nasce com genitália masculino mas não se identifica com o papel de gênero masculino, Heloísa assinalou que os desafios destas mulheres começam geralmente na infância, quando é comum haver punições por atitudes que não correspondem às expectativas da família. Entre a infância e a adolescência, o ambiente escolar, organizado ainda com uma marcação de gênero forte, passa a ser um novo enfrentamento. Por isso, há um índice de evasão alto entre as transsexuais, que se sentem inadequadas naquele ambiente, ocasionando baixos níveis escolares.
Todas essas limitações dificultam o acesso ao trabalho, trazendo o desalento e a desesperança para a vida dessas mulheres. “Essa população não se encaixa nos padrões socialmente estabelecidos e valorizados e que estão à margem do trabalho, que é central na nossa existência e determina nossa identidade e pertencimento social”, avalia Heloísa. “Precisamos estar atentos porque o silenciamento gera uma invisibilidade, como se aquela for e aquele sofrimento não existisse”.
Ingresso precoce no trabalho
A relação do ingresso precoce no trabalho com a prevalência de doenças foi exposta por Isabella Miquilin, epidemiologista e doutora em Saúde Coletiva. A pesquisa da qual fez parte utilizou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) 2008, ano em que, além do questionário básico, foi incluído um suplemento de saúde. Foi identificado, no estudo, que mais de 70% mulheres brasileiras ingressam no mercado antes dos 18 anos, sendo a idade média de entrada 15 anos.
Isabella lembrou que o trabalho infantil tem consequências para o processo de desenvolvimento das crianças, trazendo riscos como exaustão corporal, acidentes, transtornos músculo-esqueléticos, perda da infância e evasão escolar. Já na vida adulta, a pesquisa identificou que quanto menor a idade de entrada, pior é o estado de saúde autorreferido. Sobre doenças crônicas, como diabetes, asma, coluna, tendinite, artrite reumatismo, bronquite, asma, doenças do coração, insuficiência renal, depressão, câncer, tuberculose e cirrose, foi percebido que todas, com exceção da tuberculose, têm maior proporção quando mais cedo a entrada no mercado de trabalho, especialmente depressão e hipertensão.
As mulheres que começam a trabalhar mais cedo também são as que possuem a menor faixa de rendimentos. Todas essas questões, indicou Isabella, mostram que a entrada precoce no mercado de trabalho está associada não só à vulnerabilidade às doenças crônicas na idade adulta, mas a um ciclo de vulnerabilidade social, relacionado à desigualdade. Assim, para a pesquisadora, é preciso incremento “da seguridade social e de todas as políticas de Estado que valorizem o trabalho e não permitam que sejam causadores de mais crianças inseridas no mercado no Brasil”.
Trabalho precário
Juliana Andrade Oliveira, socióloga, doutora em Sociologia e pesquisadora da Fundacentro, foi responsável pela primeira pesquisa da área de sociologia do trabalho na área da beleza. Ela entrevistou 12 manicuras, e constatou uma situação precária de trabalho, com altas jornadas, ausência de proteção social e exposição a riscos químicos e biológicos.
“É uma profissão com um certo grau de subalternidade e devido a isso, ela acaba sendo mal remunerada e pouco reconhecida como trabalho”, observa Juliana. A pesquisadora também expôs a mudança na legislação dos salões de beleza, em 2016, com a chamada Lei do Salão Parceiro. Para ela, essa foi uma antecipação de uma espécie de Reforma Trabalhista no setor dos salões, ao permitir um contrato que pode ou não conter obrigação de horário e permite não formalizar vínculo trabalhista.
Trabalho e mulheres idosas
A relação entre saúde, situação ocupacional das mulheres idosas foi o tema apresentado por Margareth Lima, pesquisadora do Centro Colaborador em Análise de Situação de Saúde (CCAS) da Unicamp. Margareth, junto às pesquisadoras Neuciane Sousa e Marilisa Barros, identificou que 20% das idosas não trabalham e não são aposentadas, sendo dependentes da renda de outra pessoa. “Elas estão em piores condições em quase todas as escalas de saúde, qualidade de vida e bem-estar”, avalia.
Entre as mulheres que trabalham, tipo de ocupação mais frequente (36,6%) é aquele por conta própria e sem estabelecimento, como no caso de costureiras e cozinheiras. Unindo estas mulheres com aquelas que realizam trabalhos domésticos, o resultado é um total de metade da população de idosas trabalhando sem carteira assinada. “Isso também é mais um indicador de precariedade no trabalho”, avalia Margareth.
Em relação aos níveis de saúde e bem-estar, é possível, segundo seu estudo, que o trabalho contribua nesse sentido, dependendo da ocupação, mas o preconceito em relação à velhice, além das limitações causadas por problemas de saúde são empecilhos para permanecer no mercado de trabalho.