Em 1979, há quatro décadas, o professor de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), José Ricardo Ramalho, publicava o primeiro estudo etnográfico brasileiro em que o crime e a prisão eram observados através da ótica dos próprios presos. A pesquisa, que deu origem ao livro “O mundo do crime e a ordem às avessas”, foi realizada na Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, complexo prisional que após alguns anos seria palco da maior chacina de presos da história do país.
“O massacre foi um absurdo, algo indescritível de injustiça e de não entendimento. Dentro da cadeia, quando eu fiz pesquisa, existia uma tensão permanente entre a polícia e os presos. Havia repressão, de entrar na cela e bater nos presos, mas não nessa dimensão do massacre. É importante ressaltar que são pessoas que, embora tenham sua liberdade restringida, fazem parte da sociedade”, relembrou José, que esteve no evento “Carandiru e outras fronteiras”, realizado na segunda-feira (25), no auditório Marielle Franco do Instituto de Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
Manter a memória do massacre viva foi a motivação do evento, segundo Natália Padovani, organizadora das atividades e professora da área de Antropologia da Unicamp. O evento, também organizado pelo professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Gabriel Feltran, contou ainda com os pesquisadores franceses Marie Morelle, Sebastian Jacquot, Jerome Tadié e o professor de Sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Hirata.
Natália, que integra uma rede de pesquisadores focados no sistema prisional e na criminalidade e o Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, aponta que o estudo de José foi pioneiro no país e, por isso, a ideia era reverenciar este marco na trajetória da área de pesquisa. Para a pesquisadora, compreender os diversos fenômenos que envolvem a criminalidade tem o potencial de produzir melhores formas de operacionalização dos aparelhos de Estado, caso os operadores destas instâncias encarem a interlocução além de uma mera formalidade.
“Essa agenda de pesquisa sempre foi importante para se pensar diversas formas de políticas de segurança pública que não têm de fato o efeito de segurança. Agora, mais do que nunca, há uma falência total das políticas de segurança pública e uma desconexão entre as políticas de Estado e a população que supostamente seria atendida por ela”, observa.
“Se acabar o crime vai acabar uma indústria muito grande”
Hoje, 27 anos após o massacre, o sistema prisional segue em crise, bem como a segurança pública, expondo o descompasso entre uma política de encarceramento em massa - o Brasil é o terceiro colocado em população prisional - e os efeitos sobre a segurança na sociedade. Mortes, tortura e chacinas se perpetuam, e o país consta na 9º posição na lista de países mais violentos segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Por que se conservam políticas e perspectivas cujos resultados são atestadamente fracassados? Para José Ricardo, a resposta se encontra na fala de um dos seus entrevistados no Carandiru: “se acabar o crime vai acabar uma indústria muito grande”.
Natália Padovani também analisa no mesmo sentido. “O mundo do crime produz uma indústria, um comércio, e toda uma rede de serviços de segurança pública”, afirma. A pesquisadora, que possui como foco as penitenciárias femininas, traça um paralelo entre sistema prisional e a questão do trabalho para afirmar que o mundo do crime é reprodutor do mundo do trabalho. “O sistema prisional é um aparato que não só produz o criminoso que objetiva encarcerar, mas que por meio dele possibilita a criação de números ótimos da economia, pois retira das estatísticas empregados e desempregados - emprega uma parcela significativa de pessoas no complexo industrial e comercial penal ao mesmo tempo que retira desempregados e os aprisiona”.
Manter determinados setores fora de circulação da sociedade, ainda, conforme pontua o professor Gabriel Feltran, é uma estratégia de manutenção de uma ordem sociopolítica assentada na generalização de valores mercadológicos e punitivistas. O etnógrafo, que realiza estudos em periferias de São Paulo, também aponta que foi a dimensão de guerra de uma política prisional vigente no estado na década de 1990 que produziu o massacre do Carandiru, o qual estava inserido, ainda, em um panorama de alta letalidade da polícia.
“Era uma política, no estado de São Paulo, mais ou menos parecida com o que o Bolsonaro e o Witzel falam hoje de que ‘existe uma alteridade radical e a gente tem que matar os inimigos e quanto mais matar mais puro a gente fica, mais limpa a sociedade fica e mais ordem a gente vai ter quando a gente tirar as causas da desordem, que são os outros’”.
Para o professor, se o massacre impulsionou uma reformulação de políticas públicas, trazendo a questão dos direitos humanos para o debate, também gerou uma reação de setores aprisionados que decidiram não mais contar com os governantes e organizar-se em grupos como o Primeiro Comando da Capital (PCC).
“O estatuto do PCC, que é de 1993, cita explicitamente a reação do Carandiru. O Carandiru aparece como uma virada de que não é mais possível contar com bom senso ou ações políticas. De um lado, as mudanças na segurança pública propiciaram a expansão do PCC, porque ele instrumentaliza justamente a política de mega encarceramento, de espalhamento das cadeias, para produzir-se como facção. E ao mesmo tempo se utiliza dos eventos do Carandiru para dizer ‘não mais contato ou relação política, agora o caminho é guerra direta’.”
Por isso, ele explica que estudar violência é estudar o Estado. E nesse sentido, o professor analisa que é preciso resgatar a capacidade de ação dos pesquisadores para agir de forma propositiva em torno das questões e demandas urgentes na sociedade.
“O mundo do crime e a ordem pelo avesso”
José Ricardo Ramalho, em entrevista ao portal da Unicamp, relembrou as motivações da pesquisa que originou o livro, resultado do seu doutoramento em Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), realizado durante período da ditadura militar. Ele conta que, para enfrentar o regime, era preciso necessário unir a intelectualidade à classe trabalhadora. Assim, os estudos junto aos setores populares eram vistos como estratégias de resistência.
“Eu vivi num contexto da ditadura militar, num curso de ciências sociais que tinha uma ideia de construir a resistência à ditadura militar. Isso significava buscar reconectar intelectuais com o povo trabalhador que tinha sido acachapado em 1964. No período de 1964 a 1968, quem tomou cacetada foram os trabalhadores, quem foi colocado nas prisões eram os trabalhadores”, explica.
Olhar menos para organizações e mais para os trabalhadores, enquanto protagonistas da história, assim, era um objetivo. Ao perceber que a criminalidade está associada diretamente à divisão de classes, o então estudante passou a frequentar a Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, para entrevistar encarcerados. “Os presos eram considerados pela imprensa e pela sociedade como verdadeiros animais dentro da cadeia. E achei que era interessante saber o ponto de vista deles com relação ao fato de estarem presos, as relações deles com a sociedade, a punição que haviam recebido”.
A tese deu origem ao primeiro trabalho etnográfico brasileiro realizado dentro de uma prisão. Códigos de conduta próprios dos presos, que frequentemente colidiam com os códigos institucionais do sistema penitenciário, além das expectativas em torno da “recuperação” foram identificadas na pesquisa, sinalizando que as categorias de trabalho e família eram frequentes. Além disso, o professor observou que as associação de “delinquência” às características do mais pobres, em jornais da época, também era um traço preponderante.
O livro está disponível online e pode ser acessado aqui.