O auditório da Associação dos Docentes da Unicamp (Adunicamp) recebeu nesta segunda-feira (2) o seminário "Militarização das Escolas Públicas", encontro que reuniu pesquisadores da Unicamp e de outras universidades, membros do poder público e de entidades da educação para discutir a proposta e a implementação do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, iniciativa do Ministério da Educação que pretende incluir militares nas gestões educacional, didático-pedagógica e administrativa de escolas públicas selecionadas. O evento foi promovido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Educacionais (GREPPE) e pelo Laboratório de Gestão Educacional (LAGE), da Faculdade de Educação (FE).
Durante o encontro, foram apresentados detalhes do programa e informações sobre a realidade de escolas que já operam em gestão cívico-militar, em comparação com a gestão convencional das escolas públicas. Também foram discutiras as motivações políticas e sociais que levaram a essa proposta e as implicações que a medida pode trazer aos alunos e às comunidades escolares.
"Me parece que existe uma preocupação muito forte com a disciplina, mas eles desconhecem que a disciplina militar tem um fim em si mesma. Na escola ela não tem um fim em si mesma, ela existe porque ela pode contribuir com a aprendizagem dos alunos. Eu não quero que os alunos sejam disciplinados só para eles serem disciplinados. Essa é uma diferença central. A disciplina militar não tem nada a ver com a disciplina na escola, então é um problema conceitual", comenta Cristiane Machado, professora da FE e uma das organizadoras. Ela analisa que não existem garantias de que a inclusão de militares no dia a dia das escolas resulte em mais disciplina por parte dos alunos.
Campinas será teste no estado
O Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares foi instituído pelo governo federal por meio do Decreto nº 10.004/2019 e tem o objetivo de incluir militares da reserva das Forças Armadas no apoio à gestão administrativa e educacional de escolas públicas. Para serem incluídos no programa, estados e municípios deveriam manifestar adesão ao modelo cívico-militar. De acordo com o Ministério da Educação, 15 estados e o Distrito Federal, além de 643 cidades, apresentaram o interesse. No último dia 21 de novembro foram anunciadas as 54 escolas que deverão fazer parte do programa já em 2020. No total, o ministério pretende implantar o modelo em 216 escolas até 2023.
Durante a apresentação inicial, Telma Vinha, professora da FE, apresentou dados que mostram um desempenho superior das Escolas Cívico-Militares (ECM), em comparação às demais instituições da rede pública, como os resultados no Ideb de 2017. Segundo o índice, a média das escolas públicas era de 4,1, enquanto das ECM era de 6,5. No entanto, a professora demonstrou que essas escolas contam com mais investimentos e recursos de seleção dos alunos, o que justifica o resultado. De acordo com Telma, são investidos por ano, em média, 19 mil reais por aluno nas ECM, contra apenas 6 mil reais investidos anualmente nos alunos das escolas convencionais. Ela também detalha que as ECM podem cobrar mensalidades e taxas de contribuição das famílias, além de realizarem vestibulinhos e seleções. Com isso, são escolas que atendem a um perfil socioeconômico mais privilegiado.
Ela também detalhou que as ECM impõem aos alunos uma série de normas e regimentos, como padrões de vestimenta e de estética, que podem afetar na construção das identidades dos alunos, além de princípios de conduta marcados pela rigidez. "A escola não só controla comportamentos, mas padroniza as aparências", expõe Telma. A professora comenta que países referência no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), como Singapura, Hong Kong, Finlândia e Canadá, caminham no sentido inverso do programa, investindo em modelos educacionais baseados na autonomia dos estudantes.
No estado de São Paulo, Campinas foi a única cidade selecionada para implementação do modelo cívico-militar. A escola selecionada é a Emef Prof. Odila Maia Rocha Brito, no Jardim São Domingos, bairro no extremo Sul da cidade e que apresenta uma das menores notas no Ideb (5,5) da rede municipal. Apesar do resultado da escola, os convidados argumentam que o sistema de educação da cidade é um dos mais bem avaliados do país e que não houve um debate com os profissionais da educação antes que a cidade aderisse ao programa.
"Chama a atenção Campinas, que tem um dos sistemas educacionais mais organizados do país, aderir ao programa sem sequer conhecê-lo, sem sequer consultar a comunidade, sem consultar a rede. Temos uma das redes mais estruturadas que existem, mais bem avaliadas. A não ser que seja utilizar a educação como moeda eleitoral, e a educação não é uma moeda eleitoral", argumenta Thereza Adrião, professora da FE responsável também pela organização do evento.
"Desde o Brasil Colônia vivemos sob uma lógica militar"
Para Roberto Romano, professor titular aposentado de Ética e Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, a iniciativa de se criar as ECM mostra uma deficiência do próprio pensamento e cultura militar do país. Para ele, a inclusão de militares no sistema educacional alimenta a ideia de que há um inimigo a ser combatido nas escolas. "Nas duas ditaduras do século XX, você teve a presença muito forte d ideal militar de disciplina. O que nós estamos assistindo é um retorno do que há de pior na tradição política brasileira, que é a recusa da vida civil, com suas liberdades, autonomia. Me parece que as consequências disso são tremendas, porque você tem, pela primeira vez, um plano ordenado de transformar as escolas em quarteis", comenta o professor.
Em uma análise sob o ponto de vista jurídico, o promotor João Paulo Faustinoni e Silva, do Ministério Público do Estado de São Paulo, afirma que o programa requer atenção em suas bases e em seu processo de implementação e condução. Ele explica que as medidas podem ser incompatíveis com o que prevê a Constituição Federal em relação ao direito à educação. "Em um primeiro momento, nos preocupa muito esse programa em vários aspectos relacionados à questão jurídica. Primeiro por uma total desvinculação dele dos princípios constitucionais do direito à educação e das estratégias e metas dos Planos Nacional e Estadual da Educação. Nesses planos não há qualquer referência à militarização de escolas para se alcançar as metas que estão lá estabelecidas, muito pelo contrário, todos os planos trabalham com o reforço da gestão democrática, da liberdade, de valorização dos profissionais da educação, e esse projeto trabalha com a ideia de hierarquia e disciplina, colocando profissionais estranhos ao meio educacional dentro da escola, o que pode gerar problemas tanto no âmbito do Direito Constitucional, quando no Direito Administrativo", explica o promotor.
Tenente-Coronel aposentado da Polícia Militar e doutorando em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela USP, Adilson Paes de Souza tem experiência em aliar a visão de dentro dos quartéis aos estudos sobre direitos humanos. Autor do livro "O Guardião da Cidade", que reflete sobre casos de violência praticados por policiais militares, ele acompanhou as discussões e concorda as críticas à intenção de se aplicar a disciplina militar nas escolas. "A disciplina militar é posta de uma maneira que tolhe o processo educativo emancipatório, tolhe a presença da crítica, da iniciativa do aluno ou da pessoa. A disciplina é um fator de inibição, e isso é perigoso. É uma fonte de autoritarismo, os alunos são como robozinhos. Aquela coisa engessada, dura, que tolhe o livre pensar. Se você pensa na escola como um exercício de pluralidade, de tolerância, isso morreu com a questão militar", afirma o pesquisador.