Concluir a faculdade é um momento de alegria para centenas de estudantes que se formam todos os anos nos cursos de Graduação da Unicamp. Depois de muito estudo e dedicação, receber o diploma traz aos novos profissionais a satisfação do dever cumprido. Mas além da vitória no próprio curso, alguns formandos deram o exemplo de que a superação pode ir além dos próprios limites físicos. São alunos que convivem com diferentes tipos de deficiências e, destacando-se nos estudos e agora beneficiando outras pessoas com sua atuação profissional, suas trajetórias ensinaram professores e alunos que é possível tornar a universidade um espaço mais plural e inclusivo. O Portal Unicamp apresenta duas dessas histórias, que podem ser uma boa inspiração para este início de ano.
"Nada é pronto para a pessoa com deficiência"
Há quatro anos, o desempenho de Pedro Henrique Carvalho no Vestibular da Unicamp foi notícia. Aprovado na seleção logo após concluir o Ensino Médio, o jovem foi o primeiro estudante cego a ingressar no curso de fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Mesmo com a alegria da aprovação, Pedro já tinha consciência de que o destaque mostrava o quanto a presença de pessoas com deficiência ainda não é algo natural em espaços como as universidades. "A pessoa com deficiência visual, quando entra em uma faculdade, ainda surpreende, é algo como: 'nossa, o deficiente visual conseguiu!', porque não é uma coisa comum e não é culpa de alguém específico, é culpa da sociedade mesmo. Porque nada é pronto para a pessoa com deficiência, então quando alguém entra, é uma novidade. O diferente causa uma certa estranheza, um certo choque", lembra o estudante.
Agora em 2020, Pedro começa o ano celebrando mais uma aprovação: antes mesmo de se formar fonoaudiólogo, ele foi aceito como aluno de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Saúde, Interdisciplinalidade e Reabilitação, também da FCM. Ele será orientado pela professora Rita de Cássia Montilha, dando continuidade a pesquisas que já desenvolvia desde a graduação, na iniciação científica. O novo mestrando pretende ampliar as contribuições que a fonoaudiologia pode trazer a pessoas cegas e com baixa visão, como o estímulo de outros sentidos, tais como o tato e a audição; a percepção dos ambientes em que as pessoas estão; os movimentos de boca e da mandíbula; e até mesmo a execução de expressões faciais, algo comum nas terapias fonoaudiológicas.
"Muitas vezes, a pessoa com deficiência não tem muita noção do que é uma expressão facial, principalmente quem é cego congênito, ou quem tem baixa visão congênita. A pessoa não tem muita noção do que é uma cara de bravo, ou uma cara de quem sentiu um cheiro ruim. Então a gente pode trabalhar com isso", explica Pedro. Ele ainda comenta que, para os fonoaudiólogos trabalharem habilidades de comunicação junto a pacientes cegos, como leitura e escrita, é preciso ter conhecimento dos recursos disponíveis, como o Braille. Por isso, acredita que pode aperfeiçoar os métodos e protocolos de atendimento fonoaudiológico. "Você tem que lançar mão de recursos óticos e de recursos não óticos, também precisa conhecer braile se for trabalhar leitura e escrita com uma pessoa cega", analisa.
A importância de redes de apoio
A deficiência de Pedro é congênita, permitindo que ele enxergue apenas vultos e luzes. Graças ao esforço da família e de profissionais que o acompanharam desde a infância, ele teve garantido seu direito de aprender o Braille e, assim, pode desenvolver os estudos de forma plena. "Foi um trabalho de todo mundo, de toda a família, porque envolve todo mundo. Tem que ter o apoio da família, a colaboração de todo mundo, porque você depende dos outros também, é um processo", comenta Carmem Lúcia Carvalho, mãe de Pedro, que chegou a aprender Braille junto com o filho para auxiliá-lo nas tarefas escolares.
Na universidade, Pedro também contou com o apoio dos colegas de curso e dos professores. Ele ainda destaca o auxilio recebido do Laboratório de Acessibilidade (LAB) do Sistema de Bibliotecas da Unicamp (SBU), responsável por adaptar textos e livros impressos em tinta para o Braille. Ao longo do curso, a FCM também adquiriu para o aluno um laptop adaptado para o uso da Linha Braille, uma espécie de teclado tátil com o qual a pessoa cega consegue selecionar caracteres Braille, que vão aparecendo em forma de texto na tela do computador. A ferramenta tornou seu trabalho mais ágil e deu autonomia ao estudante.
Os objetivos de Pedro estão apenas começando a se concretizar. Além do mestrado na FCM, ele também pretende cursar uma residência multiprofissional e atuar como fonoaudiólogo clínico, auxiliando não só os pacientes, mas todos os que convivem com pessoas com deficiência visual, especialmente crianças. "Quando uma criança nasce com deficiência visual, muitas vezes é um choque para a própria mãe. Às vezes a mãe não sabe como se comunicar, porque geralmente, quando a criança é menor, as interações são muito baseadas no sistema visual, então como estimular essa criança? Como me comunicar com ela? Um fonoaudiólogo pode propor soluções de como interagir com essa criança, como brincar com ela", explica.
Questionado se pretende seguir também com um doutorado, Pedro ainda tem dúvidas, prefere se concentrar no momento às conquistas já alcançadas. "Para a pessoa com deficiência, é uma luta constante. Mas a gente vai buscar o nosso lugar", afirma com a consciência de que o caminho não será simples, mas que suas realizações abrirão portas para muitas pessoas.
"Você começa a ver as coisas de uma perspectiva bem diferente"
Apesar de ter semelhanças com a história de Pedro, a convivência de César Gatto com a deficiência tem uma diferença sensível: ela teve início em 2015, enquanto ele estava no terceiro ano do curso de medicina. Por conta da manifestação da Síndrome de Guillain-Barré, doença autoimune que ataca o sistema nervoso, o jovem teve uma paralisia súbita dos movimentos do corpo. Conforme ele se recorda, os sintomas apareceram em 19 de maio daquele ano. Logo pela manhã, ele não conseguia movimentar as pernas. À noite, foi internado na UTI com paralisia completa.
Em um primeiro momento, César acreditou que o impacto dessa nova condição iria interromper seus planos por completo. Mas depois de um mês de internação e outros seis meses de reabilitação em São José dos Campos, sua cidade natal, e com uma rede de apoio e incentivo, ele percebeu que a vida poderia continuar de onde fez uma pequena pausa. "Eu achei que não ia conseguir. Acho que só voltei porque meus pais foram insistentes. E aí surgiam coisas que eu pensava: 'não vai dar para fazer isso, sou cadeirante', mas com a ajuda dos professores, dos colegas, você vê que consegue sim. Para mim, foi lindo. Pensei: 'não é que deu certo? Olha como você é bobo!' (risos)"
Hoje César comemora a formatura em medicina e já vem atuando na área como plantonista em hospitais e unidades de pronto atendimento nas cidades de Piracicaba e Indaiatuba. Seu tratamento de reabilitação também continua com fisioterapias, que já permitiram a recuperação dos movimentos das pernas, mas ainda é necessário estimular sua força muscular, para que César consiga se manter em pé. A tendência é que o jovem volte a caminhar, mas ele mesmo reconhece que os movimentos não serão como antes. "Eu gostaria muito de voltar a andar, mas se eu não conseguir, eu preciso ter um plano B. Os dois são muito parecidos, se eu voltar a andar vou fazer só algumas coisas a mais que eu não faria sendo cadeirante. Quero ter minha família, meus filhos, e principalmente a carreira acadêmica, ser professor. Eu gosto muito da Unicamp, gosto daqui", comenta.
O sonho de ser médico surgiu ainda no colégio, depois que César conheceu o programa Médicos Sem Fronteiras e passou a querer realizar um trabalho semelhante ao da organização humanitária. Outro plano era o de fazer a residência médica na área de infectologia. Porém, com a dificuldade de locomoção, foi necessário parar e repensar quais caminhos ele seguiria na medicina. Agora, ele pretende cursar a residência em pediatria.
Mas as mudanças trazidas pela deficiência a César não foram apenas em relação às áreas em que ele pretende atuar. A experiência de ser paciente e contar com a colaboração de quem está em seu entorno fez com que ele olhasse o exercício da medicina com mais empatia, característica importante para quem cuida da saúde das pessoas. "Você começa a ter a perspectiva do paciente. Antes disso eu não pensava muito dessa forma, pensar no que ele está sentindo internado, depois de 20 dias em uma enfermaria, eu não levava isso muito em consideração. Depois que eu fiquei um mês internado na UTI, com um grande esforço para me recuperar, comecei a dar bastante valor para o que os pacientes estão sentindo, pensando em como está sendo a vivência deles ali, perguntando coisas que antes eu não perguntaria. Quando você vira paciente, você entende bem", reflete César.
Atenção para a acessibilidade
A perspectiva com que César passou a encarar o mundo não foi a única que mudou depois de sua doença. Segundo ele, conforme a família, os amigos e professores passaram a ter contato direto com sua rotina e necessidades de apoio, principalmente para locomoção, os empecilhos enfrentados pelas pessoas com deficiência tornaram-se mais evidentes para eles. "Depois que fiquei deficiente físico, meus amigos, parentes, todo mundo começa a notar que as coisas não são acessíveis, algo que eu também não notava antes. Quando você conhece alguém com deficiência, de qualquer tipo, começa a pensar: 'puxa, o César não conseguiria subir aqui sozinho'. É uma coisa que fica na cabeça das pessoas quando elas vivenciam ou quando têm alguém próximo que vivencia isso. É interessante então escutar essas pessoas", observa César.
Ele ainda ressalta que, para quem convive com uma pessoa que adquiriu uma deficiência, o apoio é fundamental no processo de elaboração e é necessário o incentivo constante para que a pessoa não pare e siga em frente. Essa é uma das lições que César tira todos os dias de seu processo de superação. "Cada um vai vivenciar a deficiência física de um jeito. Durante essa caminhada eu conheci muita gente que tem deficiências diferentes da minha, e uma coisa que fica clara é que é uma limitação, mas sua cabeça funciona bem. Então, se você não voltar a fazer suas coisas, se você não tentar, você nunca vai conseguir voltar. Muita gente acha que acabou, mas não é bem assim. Acho que isso é o mais importante que eu aprendi", conclui o rapaz.