Parte significativa da história da genética no Brasil, bem como da evolução desta ciência no país e no mundo, começa a ser digitalizada para disponibilização gratuita aos interessados de qualquer parte do mundo. Trata-se do acervo pessoal do pioneiro geneticista Newton Freire-Maia (1918-2003), professor da USP e da UFPR, que realizou estudos sobre casamentos consanguíneos e, juntamente com Marta Pinheiro, elaborou uma classificação das displasias ectodérmicas utilizada internacionalmente até hoje – tais distúrbios no desenvolvimento dos tecidos derivados da ectoderme (camada exterior do embrião) se caracterizam por alterações na pele e estruturas acessórias (cabelos, pelos, dentes, unhas e glândulas).
O Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp recebeu a doação do Fundo Newton Freire-Maia em 2018 e agora foi contemplado por edital do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo) para modernização de acervos de museus e arquivos. “Além da digitalização e difusão do acervo, vamos utilizar os recursos também para modernização e compra de equipamentos. Nossa máquina de ar-condicionado, por exemplo, já tem doze anos de uso”, afirma Eliane Morelli Abrahão, historiadora responsável pelos Arquivos Históricos do CLE. “Também pretendemos adquirir uma digitalizadora de melhor padrão.”
Segundo a historiadora, a proposta é digitalizar 38 dossiês contendo a correspondência e documentação que o geneticista trocou com cientistas nacionais e internacionais de renome. “Não será a totalidade do acervo, que possui mais de 20 mil itens. Fizemos uma seleção, com a colaboração dos participantes de um evento realizado dentro da 3ª Semana Nacional de Arquivos, organizada pelo Arquivo Nacional e que tratou justamente dos arquivos pessoais de Newton Freire-Maia e de Bernardo Beiguelman [criador do Departamento de Genética da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp]. E, como sempre que trazemos um arquivo, vamos colher e disponilizar depoimentos orais de Eleidi Chautard Freire Maia, sua esposa, e de cientistas contemporâneos.”
O volume da correspondência e a riqueza de informações foram alguns dos critérios para seleção dos dossiês, sobressaindo-se nomes como de Warwick Kerr (falecido em setembro de 2018), Francisco Salzano, Crodowaldo Pavan, Luís Alberto Magna, João Lúcio de Azevedo, Eliane Azevedo e André Dreyfus. “Ele se correspondia com Newton da Costa [matemático], cujo acervo também está no CLE e que, sabendo da seriedade do nosso trabalho de conservação, nos indicou para a segunda esposa de Freire-Maia, Eleidi, que fez a doação”, recorda Eliane Abrahão. “Nossa contrapartida no projeto será realizar uma oficina de digitalização e inserção dos documentos na plataforma AtoM (Access to Memory), que é online e gratuita. Também queremos realizar oficinas em escolas.”
Drosófilas e doenças congênitas
O cientista social Ricardo Godoi Oliveira, profissional de organização de arquivos, vem se debruçando sobre o Fundo Newton Freire-Maia desde março de 2018, quando começaram os procedimentos de higienização e descrição dos documentos. “O CLE é uma arquivo de história da ciência, mas não tínhamos conhecimento da história da genética no Brasil, que é muito rica. Trabalho de arquivo é isso: mergulhar num acervo para entender a importância de um pesquisador e o contexto em que produzia. Fomos apreendendo a história Freire-Maia e da genética no Brasil. Na década de 1940, ele integrou o grupo de pioneiros da USP que formaram geneticistas que se espalharam pelo país e criaram departamentos e laboratórios de genética nas universidades brasileiras.”
Em 1955, a Fundação Rockefeller concedeu recursos para estímulo à ciência na América Latina e um dos focos foi a genética no Brasil, com a oferta de quatro bolsas de um ano nos Estados Unidos, sendo Newton Freire-Maia um dos escolhidos. “Foi nesse período que ele se voltou para a genética humana, pois até então estudava genética a partir das drosófilas, a chamada mosca da fruta”, prossegue o técnico do CLE. “Este momento de virada de trajetória é bem visível nas suas correspondências, que também permitem um paralelo com o desenvolvimento da genética internacional a partir da descoberta em 1953 da estrutura do DNA, que causou uma revolução na biologia: era o início à biologia molecular.”
Depois das drosófilas, Freire-Maia passou a se dedicar aos casamentos consanguíneos (entre primos), tema bastante complexo por gerar grande número de doenças congênitas. Ele realizou profundos estudos que levaram a importantes descobertas sobre os efeitos de alelos de genes prejudiciais em diferentes populações – foi o primeiro a ministrar aconselhamento genético no país. “O irmão dele, Ademar Freire-Maia, percorria o Nordeste para estudar comunidades onde havia incidência dessas doenças, indo inclusive a cartórios para verificar a genealogia dos pacientes e possíveis ligações com casamentos consanguíneos”, conta Eliane Abrahão. “Esse mapeamento foi bastante comentado no evento que realizamos.”
Ricardo Oliveira observa que, embora o doutorado de Freire-Maia tenha sido “Casamentos consanguíneos no Brasil”, o geneticista brasileiro ganharia notoriedade internacional ao elaborar, juntamente com Marta Pinheiro, uma classificação de displasias ectodérmicas, inexistente até então. “Em 1984 ambos lançaram Ectodermal Dysplasias, com a classificação máxima a que chegaram e que é uma referência até hoje – com a sequência dos estudos por outros cientistas, esta classificação se expandiu. Freire-Maia não era médico [e sim biólogo], mas fez uma ponte com a medicina. Médicos do mundo todo enviavam casos de pacientes com displasias ectodérmicas, detalhando sintomas e perguntando qual seria o tipo da doença.”
Filosofia da ciência
Uma curiosidade é que Newton Freire-Maia, um ateu, converteu-se ao catolicismo na década de 1980, passando a abordar questões como “Deus e a ciência” – principalmente no final da vida, se debruçou sobre filosofia da ciência. “A mudança representa uma grande ponte com o Centro de Lógica, que possui agora acervos de história da ciência, história da genética e filosofia da ciência”, destaca a historiadora responsável pelos Arquivos Históricos. “Vemos ainda, através desse acervo pessoal, muito do desenvolvimento da educação, da estruturação das universidades e da institucionalização da ciência.”
O CLE abriga o Fundo Ayda Ignez Arruda, a primeira mulher a dirigir o Imecc (Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica), que reúne documentos da época da intervenção na Unicamp, em que os diretores perderam seus cargos. Newton Freire-Maia sofreu o mesmo processo na UFPR, havendo uma série de documentos questionando sua exoneração. “A comunidade científica se mobilizou muito em favor dele”, diz Ricardo Oliveira. “Seus artigos retratam não apenas a genética e a ciência, mas também o contexto ao redor, como de crise na educação e nas universidades públicas. Para ele, o período entre 79 e 81 foi bem conturbado, com o país já caminhando para a abertura política, mas mantendo esses resquícios da ditadura.”