Newton Freire-Maia e a história da genética no Brasil

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Ricardo Oliveira e Eliane Abrahão: recursos do edital serão utilizados também para modernização e compra de equipamentos
Ricardo Oliveira e Eliane Abrahão: recursos do edital serão utilizados também para modernização e compra de equipamentos

Parte significativa da história da genética no Brasil, bem como da evolução desta ciência no país e no mundo, começa a ser digitalizada para disponibilização gratuita aos interessados de qualquer parte do mundo. Trata-se do acervo pessoal do pioneiro geneticista Newton Freire-Maia (1918-2003), professor da USP e da UFPR, que realizou estudos sobre casamentos consanguíneos e, juntamente com Marta Pinheiro, elaborou uma classificação das displasias ectodérmicas utilizada internacionalmente até hoje – tais distúrbios no desenvolvimento dos tecidos derivados da ectoderme (camada exterior do embrião) se caracterizam por alterações na pele e estruturas acessórias (cabelos, pelos, dentes, unhas e glândulas). 

O Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência (CLE) da Unicamp recebeu a doação do Fundo Newton Freire-Maia em 2018 e agora foi contemplado por edital do ProAC (Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo) para modernização de acervos de museus e arquivos. “Além da digitalização e difusão do acervo, vamos utilizar os recursos também para modernização e compra de equipamentos. Nossa máquina de ar-condicionado, por exemplo, já tem doze anos de uso”, afirma Eliane Morelli Abrahão, historiadora responsável pelos Arquivos Históricos do CLE. “Também pretendemos adquirir uma digitalizadora de melhor padrão.”

Segundo a historiadora, a proposta é digitalizar 38 dossiês contendo a correspondência e documentação que o geneticista trocou com cientistas nacionais e internacionais de renome. “Não será a totalidade do acervo, que possui mais de 20 mil itens. Fizemos uma seleção, com a colaboração dos participantes de um evento realizado dentro da 3ª Semana Nacional de Arquivos, organizada pelo Arquivo Nacional e que tratou justamente dos arquivos pessoais de Newton Freire-Maia e de Bernardo Beiguelman [criador do Departamento de Genética da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp]. E, como sempre que trazemos um arquivo, vamos colher e disponilizar depoimentos orais de Eleidi Chautard Freire Maia, sua esposa, e de cientistas contemporâneos.”

O volume da correspondência e a riqueza de informações foram alguns dos critérios para seleção dos dossiês, sobressaindo-se nomes como de Warwick Kerr (falecido em setembro de 2018), Francisco Salzano, Crodowaldo Pavan, Luís Alberto Magna, João Lúcio de Azevedo, Eliane Azevedo e André Dreyfus. “Ele se correspondia com Newton da Costa [matemático], cujo acervo também está no CLE e que, sabendo da seriedade do nosso trabalho de conservação, nos indicou para a segunda esposa de Freire-Maia, Eleidi, que fez a doação”, recorda Eliane Abrahão. “Nossa contrapartida no projeto será realizar uma oficina de digitalização e inserção dos documentos na plataforma AtoM (Access to Memory), que é online e gratuita. Também queremos realizar oficinas em escolas.”

Drosófilas e doenças congênitas

O cientista social Ricardo Godoi Oliveira, profissional de organização de arquivos, vem se debruçando sobre o Fundo Newton Freire-Maia desde março de 2018, quando começaram os procedimentos de higienização e descrição dos documentos. “O CLE é uma arquivo de história da ciência, mas não tínhamos conhecimento da história da genética no Brasil, que é muito rica. Trabalho de arquivo é isso: mergulhar num acervo para entender a importância de um pesquisador e o contexto em que produzia. Fomos apreendendo a história Freire-Maia e da genética no Brasil. Na década de 1940, ele integrou o grupo de pioneiros da USP que formaram geneticistas que se espalharam pelo país e criaram departamentos e laboratórios de genética nas universidades brasileiras.”

Em 1955, a Fundação Rockefeller concedeu recursos para estímulo à ciência na América Latina e um dos focos foi a genética no Brasil, com a oferta de quatro bolsas de um ano nos Estados Unidos, sendo Newton Freire-Maia um dos escolhidos. “Foi nesse período que ele se voltou para a genética humana, pois até então estudava genética a partir das drosófilas, a chamada mosca da fruta”, prossegue o técnico do CLE. “Este momento de virada de trajetória é bem visível nas suas correspondências, que também permitem um paralelo com o desenvolvimento da genética internacional a partir da descoberta em 1953 da estrutura do DNA, que causou uma revolução na biologia: era o início à biologia molecular.”

Depois das drosófilas, Freire-Maia passou a se dedicar aos casamentos consanguíneos (entre primos), tema bastante complexo por gerar grande número de doenças congênitas. Ele realizou profundos estudos que levaram a importantes descobertas sobre os efeitos de alelos de genes prejudiciais em diferentes populações – foi o primeiro a ministrar aconselhamento genético no país. “O irmão dele, Ademar Freire-Maia, percorria o Nordeste para estudar comunidades onde havia incidência dessas doenças, indo inclusive a cartórios para verificar a genealogia dos pacientes e possíveis ligações com casamentos consanguíneos”, conta Eliane Abrahão. “Esse mapeamento foi bastante comentado no evento que realizamos.”

Ricardo Oliveira observa que, embora o doutorado de Freire-Maia tenha sido “Casamentos consanguíneos no Brasil”, o geneticista brasileiro ganharia notoriedade internacional ao elaborar, juntamente com Marta Pinheiro, uma classificação de displasias ectodérmicas, inexistente até então. “Em 1984 ambos lançaram Ectodermal Dysplasias, com a classificação máxima a que chegaram e que é uma referência até hoje – com a sequência dos estudos por outros cientistas, esta classificação se expandiu. Freire-Maia não era médico [e sim biólogo], mas fez uma ponte com a medicina. Médicos do mundo todo enviavam casos de pacientes com displasias ectodérmicas, detalhando sintomas e perguntando qual seria o tipo da doença.”

Filosofia da ciência

Uma curiosidade é que Newton Freire-Maia, um ateu, converteu-se ao catolicismo na década de 1980, passando a abordar questões como “Deus e a ciência” – principalmente no final da vida, se debruçou sobre filosofia da ciência. “A mudança representa uma grande ponte com o Centro de Lógica, que possui agora acervos de história da ciência, história da genética e filosofia da ciência”, destaca a historiadora responsável pelos Arquivos Históricos. “Vemos ainda, através desse acervo pessoal, muito do desenvolvimento da educação, da estruturação das universidades e da institucionalização da ciência.”

O CLE abriga o Fundo Ayda Ignez Arruda, a primeira mulher a dirigir o Imecc (Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica), que reúne documentos da época da intervenção na Unicamp, em que os diretores perderam seus cargos. Newton Freire-Maia sofreu o mesmo processo na UFPR, havendo uma série de documentos questionando sua exoneração. “A comunidade científica se mobilizou muito em favor dele”, diz Ricardo Oliveira. “Seus artigos retratam não apenas a genética e a ciência, mas também o contexto ao redor, como de crise na educação e nas universidades públicas. Para ele, o período entre 79 e 81 foi bem conturbado, com o país já caminhando para a abertura política, mas mantendo esses resquícios da ditadura.”

Carta de John M. Optiz, médico geneticista do Shodair Children's Hospital (EUA), de 6 de março de 1984. Optiz trocou dezenas de cartas com Freire-Maia sobre casos de displasias ectodérmicas no hospital americano. Optiz recebia esclarecimentos que auxiliavam no tratamento dos pacientes e, Newton, vários exemplos de displasias para juntar ao seu material de pesquisa. No primeiro parágrafo Optiz elogia a versão manuscrita final de Ectodermal Dysplasias, prevendo que o livro seria considerado mundialmente como a maior contribuição do brasileiro para a genética humana.
Carta de John M. Optiz, médico geneticista do Shodair Children's Hospital (EUA), de 6 de março de 1984. Optiz trocou dezenas de cartas com Freire-Maia sobre casos de displasias ectodérmicas no hospital americano. Optiz recebia esclarecimentos que auxiliavam no tratamento dos pacientes e, Newton, vários exemplos de displasias para juntar ao seu material de pesquisa. No primeiro parágrafo Optiz elogia a versão manuscrita final de Ectodermal Dysplasias, prevendo que o livro seria considerado mundialmente como a maior contribuição do brasileiro para a genética humana.
Carta de Warwick Estevam Kerr, de 30 de março de 1960, agradecendo o envio de uma publicação e dando sugestões de pesquisa. A amizade entre os dois geneticistas foi muito intensa, o que observamos não apenas pela quantidade de cartas trocadas, mas também pelo tom descontraído que utilizavam para escrevê-las: no segundo parágrafo, Kerr sugere que Newton Freire-Maia faça um cálculo para descobrir a probabilidade de ocorrência de anomalias congênitas na família real britânica, tendo em vista a notícia sobre um casamento entre primos.
Carta de Warwick Estevam Kerr, de 30 de março de 1960, agradecendo o envio de uma publicação e dando sugestões de pesquisa. A amizade entre os dois geneticistas foi muito intensa, o que observamos não apenas pela quantidade de cartas trocadas, mas também pelo tom descontraído que utilizavam para escrevê-las: no segundo parágrafo, Kerr sugere que Newton Freire-Maia faça um cálculo para descobrir a probabilidade de ocorrência de anomalias congênitas na família real britânica, tendo em vista a notícia sobre um casamento entre primos.

 

Imagem de capa
Trabalho de higienização e descrição dos documentos começou logo após a doação do acervo de Newton Freire-Maia (no destaque)

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004