O marxismo na contemporaneidade: Uma teoria presente e necessária

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Capa do livro "Poder político e classes social", de Nicos Poulantzas

Poder político e classes sociais, de Nicos Poulantzas, discute o funcionamento das ferramentas jurídicas no Estado capitalista, tendo sido publicado pela primeira vez em 1968, na França. A obra, um marco para o desenvolvimento de novos olhares sobre as teorias marxistas, há décadas atravessa fronteiras de tempo e espaço, oferecendo embasamento teórico para análises do modo de produção capitalista a cientistas políticos do mundo todo.

Para o leitor e pesquisador brasileiro, esta edição, que integra a Coleção Marx 21, oferece acesso a conceitos e argumentos pouco explorados no país. O prefácio é de autoria de Armando Boito Jr., professor do IFCH-Unicamp, coordenador da coleção, pesquisador das relações de classe no capitalismo neoliberal no Brasil e na América Latina e cientista político considerado referência em estudos marxistas.

Nesta entrevista, Boito fala um pouco sobre a importância acadêmica da obra de Poulantzas e os impactos que sua tradução para o português causa à ciência política na atual conjuntura do Brasil. Ele discorre a respeito das teorias marxistas de Nicos Poulantzas e explica a pertinência da recente edição de um dos mais importantes livros desse pensador grego.

Editora da Unicamp - Qual a importância da reedição de Poder político e classes sociais, de Nicos Poulantzas, no Brasil de hoje? 

Armando Boito Jr. – A pergunta procede, mas, sem imputar nada a ninguém, não posso deixar de fazer um alerta contra o perigo de rebaixarmos o trabalho teórico. A reedição dessa obra de Nicos Poulantzas, que é uma obra teórica, poderia não ter nenhuma importância especial para a conjuntura brasileira e mesmo assim ser necessária e de grande valia, posto que ela, como obra teórica que é, transcende este momento e este país. No entanto, o fato é que ela tem uma importância especial para a presente conjuntura brasileira. O tratado de teoria política, que é o que melhor define este livro de Poulantzas, apresenta e desenvolve conceitos que estão fazendo muita falta na análise e no debate da conjuntura brasileira. Essa falta é tanto maior se observarmos a crise política prolongada na qual o país se encontra. A crise muda tudo, ou quase tudo. E isso exige muito mais do analista. Partidos políticos, forças sociais e correntes ideológicas que havia muito povoavam ou dominavam o processo político, e sobre os quais tínhamos pesquisa e bibliografia acumuladas, entraram em crise, declinaram, enquanto partidos, forças sociais e correntes ideológicas novas surgiram e se fortaleceram, e, sobre essas últimas, pouco sabemos. O estudo e a utilização do livro de Poulantzas para a análise da crise política brasileira serão muito proveitosos.

Editora da Unicamp - Por quê?

Armando Boito Jr. – Esse tratado evita dois erros e falhas que constatamos nas análises atuais. De um lado, e esse é o equívoco amplamente dominante, a orientação teórica denominada institucionalista, que é a orientação que ignora a relação das instituições políticas e do processo político com a sociedade e a economia, essa orientação tem se mostrado impotente para explicar a crise política brasileira. Seus melhores representantes, um tanto desorientados, estão atribuindo a crise à ação individual e deletéria de alguns indivíduos colocados em postos-chave do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. Ora, os indivíduos apresentados, sucessivamente, como os poderosos do dia foram, um a um, tragados pela crise, a começar pelo deputado Eduardo Cunha, a quem se atribui toda a responsabilidade da crise pelo fato de ter aceito uma proposta de processo de impeachment que era, de fato, improcedente. De outro lado, uma certa tradição marxista que nos fala das classes e de seus conflitos de modo simplificado e simplista, considerando que tudo se resume a um conflito entre o capital e o trabalho e, ademais, ignorando a importância das instituições, de seus valores e regras de funcionamento, na análise da política brasileira. O sofisticado tratado de teoria política de Nicos Poulantzas, apoiando-se e renovando a tradição que vem de Marx e de Engels, considera as duas pontas dessa corda, as instituições e as classes sociais, e concebe essas últimas de modo sofisticado e complexo – dispensando tratamento conceitual às frações de classe, às camadas e categorias sociais e aos modos os mais variados pelos quais elas intervêm no processo político. Estou pensando nos conceitos de força social, efeitos pertinentes, bloco no poder, fração de classe, hegemonia, classe-apoio e outros. São conceitos, também, que permitem detectar e qualificar o lugar que cada classe, fração ou força social ocupa na hierarquia de poder, porque as posições ocupadas por esses múltiplos agentes são distintas e desiguais. Necessitamos dessa sofisticação, dessa complexidade, desse ajuste de contas com a teoria para entender a política brasileira atual.

Editora da Unicamp - É possível afirmar que os estudos do autor, mais especificamente os apresentados em Poder político e classes sociais, oferecem um ponto de vista inovador para pensar o marxismo? Por quê?

Armando Boito Jr. – Sim, oferecem, sem dúvida. Vou tentar ser breve. Há aquilo que podemos denominar desvio economicista em alguns textos clássicos do marxismo, desvio que é contraditado pelos principais trabalhos de Marx e de Engels. A partir da organização, em 1889, da Internacional Socialista, esses desvios acabaram dando a tônica do marxismo praticado pelos intelectuais e dirigentes do movimento socialista. As obras de autores como Lênin e Gramsci caminham em outra direção, aquela de valorizar a política e a ideologia nos processos políticos e nas relações sociais. Poulantzas retoma esse fio condutor e acrescenta algo muito importante. Lênin e Gramsci tinham rompido com o economicismo na análise política, mas não teorizaram esse rompimento no tocante à concepção teórica mais geral da estrutura social. Gramsci chegou mais perto disso com o seu conceito de bloco histórico – a unidade entre a infra e a superestrutura, nos disse ele. Poulantzas, partindo do conceito de modo de produção tal qual o filósofo marxista francês Louis Althusser o reformulou, Poulantzas pôde designar um objeto novo para a teoria política e examinar exaustivamente esse objeto. Explico. Althusser concebeu o conceito de modo de produção de maneira ampliada, isto é, englobando não só a economia, mas, também, a política e a ideologia. Rompeu com a tradição que confinava esse conceito ao terreno da economia – modo de produção entendido como “modo de produzir”.... Na leitura da escola althusseriana, o livro maior de Marx, O Capital, seria a análise teórica do nível econômico da sociedade capitalista, e não a análise das sociedades capitalistas em geral. Poulantzas apropriou-se dessa ideia e assumiu a tarefa de analisar teoricamente o nível político da sociedade capitalista. Tratar-se-ia, embora Poulantzas não tenha dito isso, de completar e desenvolver o trabalho iniciado por Marx na sua obra maior. Acrescentar à teoria da economia da sociedade capitalista a teoria do nível político de tal sociedade. Designado esse novo e inédito objeto, Poulantzas abriu um amplo terreno de investigação e contribuiu enormemente para o desenvolvimento e a renovação do marxismo. E é por isso, também, que o seu enfoque é repleto de conceitos novos, enriquecedores para analisar a política.

Editora da Unicamp - Poderia explicar melhor a originalidade desse desenvolvimento?

Armando Boito Jr. – Marx, Engels, Lênin, Gramsci fornecem toda uma problemática, além de conceitos e teses, para que se possa desenvolver uma teoria do político, isto é, do nível político, e da política, isto é, da prática política. Porém, principalmente no que se refere ao político, a carência existia. Marx, em O Capital, deu indicações importantes sobre a presença, necessária, do Estado capitalista na economia. A circulação e a produção de mercadorias com base no trabalho assalariado, isto é, a economia capitalista necessita do Estado para poder funcionar. Forneceu também elementos preciosos para pensar o político no modo de produção capitalista e socialista. Estou pensando, por exemplo, no seu texto Guerra civil na França, no qual, analisando a experiência da Comuna de Paris de 1871, Marx evidencia a inadequação da instituição Estado capitalista para o exercício do poder operário e, ao mesmo tempo, fornece elementos teóricos para pensar a forma que deve assumir a organização do poder político no socialismo – a nova democracia de massa que já aponta para o processo de extinção do Estado. Lênin, basta lembrar os seus clássicos O Estado e a revolução e também o Que fazer para notar como esse grande dirigente e intelectual marxista era atento à importância da forma de organização das instituições políticas que, entendia ele como marxista, têm consequências fundamentais sobre as relações e as práticas políticas concretas. Gramsci teorizou mais sobre as relações e a ação política que sobre as instituições. Pensou aquilo que ele denominou “sociedade civil”, que é um conjunto de instituições nas quais se desenvolveria a luta pela hegemonia ideológica, embora tenha dedicado pouca atenção à análise da estrutura organizativa de tais instituições. Partindo desse legado, e também daquilo que está presente implícita e embrionariamente nos textos clássicos, Poulantzas caracteriza a estrutura mínima e invariável do nível político no modo de produção capitalista. Essa estrutura estabelece o valor da igualdade como valor máximo desse modo de produção. Mas, entendamo-nos bem sobre isso! Jacques Bidet, cujo livro também publicamos na Coleção Marx 21, denomina esse valor de base a “metaestrutura”, aquilo que a estrutura propriamente dita afirma e, ao mesmo tempo, nega. Explico. O direito na sociedade capitalista, e em contraste com as sociedades de ordens e de estamentos anteriores ao capitalismo, estabelece a igualdade jurídica entre todos; porém, ao estabelecer a igualdade entre agentes sociais desiguais, o que tal igualdade jurídica faz é encobrir a desigualdade socioeconômica e, desse modo, permitir a sua reprodução. Trata-se, portanto, de uma igualdade formal. Bidet indica uma origem econômica para a formação desse valor fundamental da sociedade capitalista: o fato de o capitalismo ser uma economia que generaliza a produção mercantil. A troca supõe a igualdade, mesmo que formal, entre sujeitos proprietários. Pois bem, Poulantzas caracteriza o Estado capitalista como uma instituição que estabelece o direito burguês e se cobre de uma aparência pública ao recrutar os seus funcionários, ao menos no plano do discurso e das aparências, entre todos os cidadãos, independentemente da classe social à qual pertençam. Esse direito igualitário e esse recrutamento formalmente universal têm consequências políticas e ideológicas decisivas para a reprodução da sociedade capitalista e influem pesadamente na dinâmica política de tais sociedades. A ideologia nacional, cuja importância na mobilização das vontades políticas é evidente; a necessidade de diferentes formas de encenação da representação popular no Estado; a intransparência da cena política no capitalismo, em que os partidos burgueses e pequeno-burgueses parecem desvinculados dos interesses de classe; a dinâmica do processo político que obriga o Estado a encontrar aquilo que Poulantzas denomina “equilíbrio instável de compromisso”, ponto no qual o pessoal de Estado localiza o que é necessário, de acordo com a correlação de forças de uma conjuntura dada, conceder às classes trabalhadoras para fazer passar os interesses maiores da classe capitalista; enfim, esses e outros elementos estão vinculados, de formas diversas, àquela estrutura mínima e invariável do nível político do modo de produção capitalista tal qual o caracteriza Nicos Poulantzas. Isso tudo tem repercussões profundas na teoria do Estado, dos regimes e dos partidos políticos, nas distinções sutis, mas importantes, que se verificam no interior da classe capitalista e nas relações complexas dessa com o Estado etc. E Poulantzas explicita e desenvolve tais consequências. É uma análise, rica, multifacetada, cuja complexidade e riqueza não é possível, evidentemente, apresentar na sua inteireza numa entrevista que visa apenas dar ao público leitor uma ideia sobre esse grande livro que é Poder político e classes sociais.

Editora da Unicamp - E no Brasil, qual foi a contribuição das teorias de Poulantzas?

Armando Boito Jr. – Foi grande. Temos hoje uma verdadeira “biblioteca poulantziana” constituída de pesquisas que analisam a história política do Brasil e também a política brasileira contemporânea. A Abolição e a Proclamação da República, o Estado e o poder no período da República Velha (1889-1930), a Revolução de 1930, o período populista, a ditadura militar, a ideologia nacional-desenvolvimentista, o período dos governos do PT, as relações internacionais e a política externa brasileira, as crises políticas do século XXI, tudo isso foi passado sob o crivo de pesquisadores inspirados na obra de Poulantzas. A Unicamp teve um papel central na irradiação desse tipo de análise. A maioria dos autores, hoje professores em grandes universidades brasileiras, formou-se aqui. Há analistas da produção intelectual brasileira que falam de uma “Escola poulantziana de Campinas”. Essas pesquisas, publicadas em livros e artigos no Brasil e no exterior, acrescentaram muito ao que se sabia sobre o Brasil. Trouxeram muitas teses novas, algumas delas desconcertantes para a bibliografia até então existente.

Editora da Unicamp - O senhor poderia exemplificar?

Armando Boito Jr. – A tese segundo a qual o Brasil teria passado por uma revolução antiescravista e antimonárquica que deve ser caracterizada como a revolução burguesa brasileira; a tese da posição subordinada dos cafeicultores no bloco no poder da República Velha; a reelaboração marxista da tese da constituição da burocracia de Estado como força social autônoma e dirigente do processo de industrialização brasileira; a polêmica com análises da ditadura militar que ocultavam o conteúdo castrense do regime político; a análise da política externa como prolongamento dos interesses do bloco no poder vigente no Brasil no cenário internacional, em polêmica com a orientação teórica dominante nesse campo; a tese da existência, no período neoliberal, de uma fração burguesa que deve ser caracterizada com o conceito poulantziano de burguesia interna e sem o qual não se pode compreender o período dos governos petistas e sua crise e outras.

Editora da Unicamp - Que conceitos da “raiz marxista” são trabalhados em Poder político? Poderia dizer algo mais sobre como eles dialogam com textos de outros marxistas importantes como Lênin, Gramsci e Althusser? Como Poulantzas expande as reflexões desses três pensadores?

Armando Boito Jr. – Sobre isso, há muitas observações interessantes a fazer. Poulantzas situa o seu trabalho numa das tradições marxistas e apresenta particularidades interessantes. Evidentemente, os textos que mais influenciam a obra de Poulantzas são os textos clássicos do marxismo, a começar por Marx e Engels. Desses autores, que são os fundadores do materialismo histórico, Poulantzas usa muito os textos de análise histórica e de análise política. Lê Marx e Engels não só para, como faz a maioria dos marxistas, utilizar aquilo que está explícito e sistematizado na obra desses autores. Seguindo um procedimento da escola althusseriana, Poulantzas utiliza muito do recurso da leitura sintomal, tentando extrair o que está implícito e não sistematizado para trazer à luz e sistematizar. Localiza com esse procedimento a existência de conceitos potenciais, ainda em estado prático, que ele, Poulantzas, retifica e/ou desenvolve. Já vimos que, para a construção do objeto da sua pesquisa que, como indicamos, é o nível político do modo de produção capitalista, Poulantzas apoia-se no conceito também althusseriano de modo de produção ampliado. Logo, do ponto de vista epistemológico e metodológico, a maior influência, me parece, é de Louis Althusser. Para as análises dos fenômenos políticos e ideológicos do Estado e da sociedade capitalista, Poulantzas trabalha muito os textos de Lênin e incorpora também, ainda que com sucessivas retificações, muitos textos de Gramsci. Nota-se ainda a influência de textos de Mao Zedong – na França de 1968, quando o livro foi lançado, o maoísmo estava muito presente na cena social e intelectual. Por motivos variados, o seu trabalho dialoga pouco com as teses de Kautsky, Stálin, Trotsky e dos autores da Escola de Frankfurt. Há nessa matéria outro ponto a ser destacado. Poulantzas utiliza muito os autores não marxistas e o faz, graças a um procedimento epistemológico particular, sem incorrer em inconsistências teóricas. Isso o distingue da maioria dos autores marxistas do século XX e atuais e confere ao seu trabalho uma superioridade intelectual notável. Poder político e classes sociais contém um impressionante balanço do estado da arte da ciência política do século XX. Poulantzas analisa e discute os autores institucionalistas, os autores elitistas, os teóricos pluralistas, os funcionalistas, os estruturalistas e ainda outros. Ele critica e reaproveita também elementos da obra de Max Weber. As notas de rodapé do seu livro compõem um verdadeiro inventário, amplo e erudito, do campo da ciência política – a bibliografia de Poulantzas contempla textos publicados na Alemanha, na Inglaterra, na França, na Itália e nos Estados Unidos, o que destoa de um certo provincianismo que marcava a cena intelectual francesa da segunda metade do século XX. Nesse procedimento, convém observar, Poulantzas reata com uma tradição iniciada pelos próprios clássicos do marxismo. Marx incorporou, após crítica e retificações, os grandes teóricos da economia política; Engels escreveu o clássico Origem da família, da propriedade privada e do Estado, incorporando e retificando as contribuições do antropólogo Lewis Morgan; Lênin escreveu o seu Imperialismo, etapa superior do capitalismo utilizando muito o trabalho de John Hobson Imperialism: A study; Gramsci incorporou pensadores políticos italianos. No caso de Poulantzas, e novamente recorrendo à epistemologia da escola althusseriana, ele usa de modo consciente e sofisticado o procedimento da retificação/incorporação de eventuais novidades conceituais produzidas a partir de outras teorias, mas que podem, quando retrabalhadas, ser reaproveitadas pelo marxismo sem que por isso se incorra em inconsistências ou contradições teóricas. É um procedimento necessário, que permite desenvolver e renovar o marxismo, e que não deve ser confundido com o ecletismo ingênuo.

 

Leia resenha do livro Poder político e classes sociais escrita por Tatiana Berringer, doutora em Ciência política pela Unicamp e professora de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e publicada no Jornal da Unicamp.

 

SERVIÇO

Título: Poder político e classes sociais

Autor: Nicos Poulantzas

Tradutora: Maria Leonor F. R. Loureiro

ISBN: 978-85-268-1488-2

Páginas: 368

Preço de capa: R$ 86,00

Editora da Unicamp – 1a. edição, 2019

 

 

 

 

Imagem de capa
Audescrição: O professor Armando Boito em uma mesa e ao lado uma estante com livros

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004