“Nasci em Cangas del Narcea, uma vila mineira em Astúrias (Espanha) e fui batizado com o nome de José Mario em memória de dois irmãos de minha mãe: Mario morreu combatendo o fascismo na guerra civil espanhola, e Jose, o Pepe, morreu num campo de concentração em 1942, depois de ter sido capturado na França pelos nazistas.” Foi assim que José Maria Martínez Pérez, homenageado com o título de Professor Emérito da Unicamp, começou a contar sua trajetória marcada pelo fascismo para uma respeitosa plateia, na sala do Conselho Universitário, terça-feira à tarde.
“Nessa mesma época, na nossa aldeia natal, meu irmão e um primo do meu pai eram assassinados pelos fascistas espanhóis”, prossegue o professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc). “Meus avôs eram católicos fervorosos e minhas avós eram anticlericais fervorosas. Conta-se que a mãe do meu pai foi bater na porta do quartel onde ele estava preso: ‘não torturem meu filho, se é para matar, matem-no como já mataram um, mas não o torturem’. Minha mãe, nos seus últimos meses de vida, semiconsciente, não cessava em repetir os nomes dos irmãos mortos.”
José Maria Martínez seguiu contando que seus pais decidiram emigrar para a Argentina em busca de um futuro melhor para ele, tendo estudado em escolas públicas desde o primário. “Entrei na Universidade de Buenos Aires, naturalmente também pública, laica e gratuita, com muitas dúvidas em relação à minha vocação – e aproveitando que era permitido cursar duas carreiras simultaneamente. O tempo em que estudei na Faculdade de Filosofia e Letras foi importante para minha formação. Uma curiosidade é que passei no exame final com o professor Maurício Knobel três dias depois do nascimento do seu filho Marcelo [Knobel, atual reitor da Unicamp].”
Admitindo que seu interesse e talento para as ciências humanas eram bastante limitados, o professor emérito acabou se apaixonando pela chamada matemática transfinita, criada pelo alemão Georg Cantor no final do século 19. “A matemática transfinita é provavelmente a área da matemática mais próxima da filosofia e também da arte. Como a filosofia, essa matemática procura elucidar racionalmente a verdadeira natureza e o significado do conhecimento.”
Segundo Martínez, a restauração da democracia em 1973 motivou em muitos jovens matemáticos o sentimento de urgência por fazer algo relacionado mais diretamente com o que chamavam de reconstrução nacional. “Mas em setembro de 74, o governo democrático foi capturado por um bando fascista e as universidades públicas foram desmanteladas por um ministro da Educação ridículo. Pouco depois fui contratado pela Fundação Bariloche, que se dedicava ao desenvolvimento científico vinculado a ciências sociais, naturais, biologia e matemática.”
O docente do Imecc afirma emigrou para o Brasil em 1976, tomando uma “atitude preventiva”, depois que em março daquele ano os militares implantaram uma ditadura que considera responsável pelo maior genocídio da história argentina. “No Rio de Janeiro desfrutamos da hospitalidade e generosidade do professor Candido Mendes, que contratou a mim e meus companheiros para desenvolver aplicações do modelo mundial latino-americano elaborado sob a direção do professor Amílcar Herrera – que depois seria fundador do Instituto de Geociências da Unicamp. Consistentemente, o modelo demonstrava que o desenvolvimento sustentável e a mitigação da desigualdade poderiam ser atingidos através do planejamento econômico e a cooperação das sociedades humanas.”
Sobre sua trajetória dentro do Imecc, Martínez acha que foi bem sucedido em criar um grupo de pesquisa de otimização numérica – área que era muito incipiente no Brasil – e que hoje está disseminado de Norte a Sul do Brasil, estendendo-se à Argentina, Colômbia e outros países da América Latina. “O grupo nasceu forte e se desenvolveu bastante nesses mais de 40 anos. Temos uma posição de liderança nos três aspectos da nossa pesquisa: um deles puramente matemático, teórico, a dita matemática pura; outro que é intensamente prático, trabalhando com pesquisadores de outros setores e desenvolvendo técnicas a eles vinculadas; e um terceiro aspecto central, que é o desenvolvimento de métodos (algoritmos) que são de domínio público e muito acessados via internet. Creio que fizemos um bom trabalho.”
O professor emérito abordou também a questão da autonomia universitária estabelecida em 1989, vendo-a como um avanço necessário e almejado por amplos setores da comunidade acadêmica, mas põe o dedo numa ferida. “Muitos de nós, eu incluído, nos enganamos duplamente. Por um lado, pensamos que no marco da autonomia poderíamos responder à maioria dos problemas e dilemas da universidade; por outro lado, passamos a acreditar que as questões estritamente universitárias tinham sentido independentemente do debate sobre os destinos nacionais latino-americanos ou planetários. A realidade bateu à nossa porta em 2015. De repente nos encontramos em um país desconhecido, num mundo desconhecido. Foi preciso entender que nossa convivência com um novo país era conflitiva, que os guarda-chuvas institucionais eram frágeis e que, no entanto, o país do século 21 precisava do tipo de conhecimento, reflexões e projetos que as universidades deveriam estar em condições de oferecer.”
Emoção e gratidão
A professora Teresa Atvars, coordenadora geral da Unicamp, que representou o reitor Marcelo Knobel na assembleia universitária extraordinária, disse que a cerimônia, apesar de formal, misturava emoção, reconhecimento e gratidão, e razão e racionalidade. “Dessa mistura sai esse conjunto de ações que culminaram com uma grande aula proferida pelo nosso recém-nomeado professor emérito. Foi uma aula histórica que, se alterarmos as datas, vamos reconhecer o momento atual pelo qual passa o Brasil, incluindo até os ministros ridículos, talvez até com certo destaque no caso da Educação.
Na opinião do professor Nelson Maculan Filho, padrinho do homenageado e que o orientou na tese de doutorado defendida na UFRJ, José Mario Martínez seria professor emérito em qualquer universidade do mundo, por suas atividades nas ciências matemáticas e também pelo exemplo. “Ninguém forma ninguém, mas pode ser um exemplo para os outros na vida. Ele fez escola, formou grupos de pesquisa. E eu fico muito emocionado porque foi meu aluno. Tenho 77 anos e ele, 72.”
Francisco de Assis Magalhães Gomes, pró-reitor de Desenvolvimento Universitário da Unicamp e professor do Imecc, foi orientado no mestrado pela professora Ana Friedlander, esposa de Martínez, e no doutorado pelo próprio homenageado. “Chegando a Campinas como engenheiro civil recém-formado [pela UnB], a adaptação à matemática foi difícil, ainda mais mudando de cidade. Eles sempre me receberam com grande disposição e interesse. Não foram só orientadores, mas um exemplo a ser seguido de como tratar as pessoas de maneira ética e de produzir ciência de maneira correta. Dando aulas, o professor Martínez é espetacular, completo como nós outros professores gostaríamos de ser. Só que ele consegue, enquanto nós estamos sempre buscando.”.
Ainda de chuteiras
O professor emérito aposentou-se depois de 41 anos de Imecc, mas acredita que ainda está longe de “pendurar as chuteiras”, como diz, e vem participando do Grupo de Pesquisa e Ação em Conflitos, Riscos e Impactos Associados a Barragens (Criab), do IG/Unicamp. “É um projeto de caráter interdisciplinar iniciado há um ano, depois da catástrofe de Brumadinho, destinado a compreender, prevenir e reparar desastres ecológicos motivados sobretudo pelo rompimento de barragens. O trabalho é coordenado pelo professor Jefferson Picanço, talvez não por acaso, um geocientista como Amílcar Herrera.”
José Mario Martínez recorda que, quando chegou ao Brasil em 1976, planejou voltar para a Argentina em 1981, o que não aconteceu. “Agora não vou voltar, tenho minha família consolidada aqui. Já era casado e tinha um filho nascido em Bariloche, hoje professor da Unicamp [Julian, da FEA]; tenho outro filho que nasceu em Campinas e é professor da Unicamp [Leandro, do IQ]; e ainda minha nora, que é professora da Unicamp [Camila, do IQ]. Estamos todos pendurados na Unicamp.”
QUEM É
José Mario Martínez Pérez nasceu na Espanha em 22 de maio de 1948 e emigrou junto com seus pais para a Argentina em 1951. Cursou estudos primários e secundários em escola pública. É graduado em matemática pela Universidade de Buenos Aires (1971), onde atuou como docente auxiliar entre 1971 e 1974. Em 1975 e 1976 foi pesquisador da Fundación Bariloche. Casou em 1972 com Ana Friedlander, também matemática, com quem tem dois filhos, Julián e Leandro. Em 1976 emigrou para o Brasil.
Atuou como pesquisador na Universidade Cândido Mendes ao mesmo tempo em que completava seu doutorado na UFRJ (1978), quando foi contratado pela Unicamp para o Departamento de Matemática Aplicada (DMA). Orientou 38 dissertações de mestrado e 47 teses de doutorado, três das quais premiadas, um delas com o Grande Prêmio Capes (2010).
Foi fundador do Grupo de Pesquisa em Métodos Computacionais de Otimização, um dos mais relevantes do Instituto e com grande repercussão nacional. Teve também papel fundamental na criação do Laboratório de Matemática Aplicada, bem como do atual Laboratório de Otimização Contínua, ocupando a chefia de Departamento por diversas vezes, bem como de coordenador do Programa de Pós-Graduação em Matemática Aplicada e coordenador geral da Pós-Graduação do Imecc.
Aposentou-se recentemente como professor titular e pesquisador 1A do CNPq. É membro titular da Academia Brasileira de Ciências desde 2009, ano em que foi condecorado com a Ordem do Mérito Científico. Foi agraciado por dois anos consecutivos com o Prêmio de Reconhecimento Acadêmico Zeferino Vaz (2002 e 2003). Pela contabilidade do ISI Webofscience publicou 210 artigos científicos, com cerca de 4.4800 citações.