“É um precedente terrível o de revogar bolsas que já estavam previstas no sistema da Capes”, avalia a doutoranda em Sociologia da Unicamp, Karina Quintanilha. A estudante assinou os papéis para recebimento da bolsa de pós-graduação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no 27 de fevereiro. No entanto, devido à portaria nº 34, publicada no dia 18 de março, foi uma das pesquisadoras que tiveram o benefício cortado.
“Foi um choque, principalmente pela medida ter sido tomada em meio a essa guerra mundial contra o coronavírus, quando a nossa capacidade de mobilização deveria estar voltada para conter essa crise sanitária agravada pelas desigualdades e falta de investimentos públicos”, observa Karina. Para ela, essa medida não é apenas mais um corte, mas um “um atentado anticiência contra o futuro do conhecimento científico no Brasil bem no momento em que o país atravessa a maior crise que nossas gerações já viveram”.
O paradoxo entre efetuar os cortes no momento da pandemia do novo coronavírus, diz a doutoranda, é evidente. “Nesse momento de pandemia global, fica claro o valor das universidades, professores e pesquisadores de todas as áreas no trabalho e protagonismo a favor de toda a sociedade, trazendo análises multifacetadas e pesquisas de ponta. E o que a Capes faz? Deixa esses pesquisadores à sua própria sorte em meio ao desemprego em massa, sem recursos mínimos para dar continuidade a trabalhos de interesse público e que possam contribuir para uma saída da crise no Brasil”.
Os cortes, anunciados como mudanças nas diretrizes para a concessão de bolsas, salienta Karina, prejudicam especialmente estudantes de baixa renda e optantes de cotas raciais, além das pessoas que abdicaram de oportunidades de trabalho ou se mudaram para Campinas para se dedicar ao mestrado ou ao doutorado com a bolsa. “Estamos com receio de um abandono forçado do curso em razão dos cortes em um contexto de desemprego massivo no país”, frisa.
Resultado avassalador
Assim como Karina, muitos estudantes que já haviam passado por processo seletivo e se deslocado para as cidades onde iriam estudar, foram afetados pela portaria. A visão geral sobre os efeitos dos cortes é ainda difícil de dimensionar, mas diversas instituições de ensino vêm divulgando os impactos da decisão, como a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Federal do Paraná (UFPR), que anunciaram a perda de até 600 bolsas.
Na Unicamp, conforme a Pró-Reitoria de Pós-graduação (PRPG), 155 bolsas foram suprimidas. Os valores destes auxílios são de R$1,5 mil para mestrado e R$2,2 para doutorado e não têm reajuste há cinco anos.
Diversos programas foram afetados. No Instituto de Economia (IE) da Unicamp, por exemplo, o mestrado em Desenvolvimento Econômico (DE) perdeu todas as suas bolsas Capes, passando de sete para zero. Já no doutorado do mesmo programa, a redução foi de oito para duas bolsas.
“O resultado no IE foi avassalador. Teoricamente, pela nova portaria da Capes, os maiores cursos ganhariam mais bolsas. Mas no nosso caso, o DE, que é maior, perdeu todas as suas bolsas de mestrado. É uma perda lastimável. Primeiro porque os cotistas teriam preferência no recebimento dessas bolsas, agora não deve alcançar nem para eles. Segundo porque desestruturou nosso programa de doutorado”, lamenta a doutoranda em DE Aline Miglioli.
Para a estudante, mudanças da distribuição das bolsas deveriam ser pensadas em conjunto com os diretores do órgão. “Resolver por meio de uma portaria é totalmente autoritário”, pontua. Além disso, ela ressalta que já havia ocorrido uma mudança no dia 3 de março e a nova alteração foi decidida às pressas. “Uma portaria que foi feita em 15 dias, depois dos processos seletivos já terem sido feitos, depois dos alunos já terem se transferido para cá, é um absurdo”.
A falta de transparência nos desdobramentos da medida também é levantada por Aline.“A gente não consegue medir, por exemplo, como está a distribuição das bolsas nos cursos de Economia no país, o que seria uma informação relevante. Se tirou esse tanto de bolsa aqui, isso garante que outros cursos estão recebendo as bolsas? Não existe transparência nesse governo”.
A restrição que o corte impõe à promoção de uma pluralidade dentro da academia, ainda, é lembrada pela estudante como mais uma consequência dos cortes. “Eu suponho que houve um corte gigantesco de bolsas e isso é um crime contra a ciência brasileira, um crime contra o povo brasileiro. Pessoalmente estou completamente desolada porque conheço a história das pessoas que contavam com essas bolsas e que vão acabar sendo tiradas da ciência brasileira. Eu considero anti-medidas. É uma destruição da educação brasileira pública. Fico triste e revoltada com a situação e desejo que tenhamos muita energia para lutar”.
Cortes em cima de cortes
A Associação de Pós-graduandos (APG) da Unicamp lembra que os cortes nas bolsas de pós-graduação são frequentes desde o ano passado. Em 2019, conforme levantamento do jornal Folha de São Paulo, 7.591 bolsas da Capes foram suprimidas. “O objetivo é claro: deteriorar o sistema de pós-graduação brasileiro”, avalia a coordenadora da APG, Bruna Garcia. “Primeiro, na alegação de manter os programas de excelência, cortaram as bolsas dos programas com notas 3, 4 e 5, que na maioria dos casos, possuem notas mais baixas por serem programas novos, muitos em universidades recém-criadas, e não por serem cursos de má qualidade”, relembra.
Depois, através das novas diretrizes, até mesmo os programas considerados de excelência foram afetados, como no caso do programa de Engenharia Elétrica da Unicamp, que perdeu 21 bolsas de doutorado e 19 de mestrado. “A Unicamp é uma universidade que recebe gente do Brasil inteiro, o que implica na vinda de muitos estudantes de outros estados e regiões Brasil afora que não têm condições de se manter em uma cidade extremamente cara como Campinas sem o suporte da bolsa”.
Para os pós-graduandos, as consequências são a impossibilidade de dedicar-se exclusivamente à pesquisa, ou mesmo o abandono da carreira acadêmica, já que é difícil conciliar os horários entre disciplinas, pesquisa e emprego. “A bolsa é o nosso salário, de um trabalho que já é extremamente precarizado e sub remunerado no Brasil. Dessa forma, o principal impacto é na nossa fonte de renda, lembrando que para receber a bolsa, precisamos ter dedicação exclusiva, ou seja, não podemos ter outro tipo de trabalho formal”, explica Bruna, que é mestranda em Demografia e recebe bolsa Capes.
A coordenadora da APG compartilha que foi a primeira da família a ingressar e a concluir o ensino superior, e que os mecanismos assistenciais e de permanência foram determinantes nessa trajetória. “Só estou aqui hoje porque sou bolsista Capes. Do contrário, jamais teria condições de me manter em uma cidade cara como Campinas. A educação sempre teve um papel importantíssimo na minha vida, pois eu sabia que só através dela eu conseguiria mudar as condições de vida da minha família”. São histórias como a de Bruna que acabam sendo ameaçadas pelo desinvestimento em ciência e educação.
Comunidade acadêmica mobiliza-se
Apontando os problemas da portaria nº 34, a Unicamp enviou ofício à Capes detalhando as consequências da decisão e disponibilizando-se a estudar um modelo que considere as especificidades, necessidades e adequação do fomento ao Sistema Nacional de Pós-graduação. “É evidente que essa redução impacta negativamente o planejamento estratégico dos programas”, disse a pró-reitora de Pós-Graduação, Nancy Lopes Garcia, em comunicado divulgado à sociedade.
A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e as Sociedades Científicas Afiliadas também enviaram carta ao presidente da Capes em que pedem a revogação da Portaria 34 e assinalam que a medida foi tomada sem diálogo prévio com a comunidade científica. Já a APG, em conjunto com a Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) e outras entidades científicas, criou um abaixo-assinado, que será apresentado à Câmara e ao Senado e até momento consta com mais de 160 mil assinaturas.
Diante da mobilização, o Ministério Público Federal (MPF) abriu investigação sobre a portaria 34, recomendando sua revogação ou suspensão. A Capes tem até 19h do dia 31 de março para responder e explicar as razões e os estudos que embasaram a medida.