Oscar Freitas Neto
O mundo se viu de frente com uma parada do sistema econômico global, algo que parecia impossível e inegociável até semanas atrás. Em todo lugar, pessoas experimentam outras formas de socialização e trabalho; governos põem em prática políticas como a renda mínima emergencial que, em outro cenário, passariam por muita deliberação. O mundo se torna, pela necessidade, um grande laboratório de experiências. O certo é que a pandemia causará mudanças. Mas que mundo será este pós Covid-19? Seguíamos para um colapso ambiental, a retomada das atividades econômicas nos colocará no mesmo rumo?
Em seu artigo recente “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise” , o filósofo da ciência, Bruno Latour, da Sciences Po (França), diz que fica provado, com a pandemia, que é possível desacelerar o sistema econômico. E, dessa forma, perde força o argumento da impossibilidade deste freio que é sempre posto como contrário aos discursos de ecologistas que expõem a necessidade de alteração dos modos de vida.
Essa temporária interrupção da antiga normalidade dá a oportunidade para refletir sobre o mundo que queremos retomar. “Não só é possível, mas também necessário, por sobrevivência, imaginar outros futuros”, diz Marco Antônio Valentim, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), que também destaca a importância desse futuro não ser único. “A imaginação deve multiplicar os possíveis, ou será novamente cooptada pelos poderes patogênicos de que procura se desvencilhar”.
Na mesma linha, a doutora em Filosofia pela PUC-Rio, Alyne Costa, afirma que “ainda que a imaginação desempenhe um papel crucial, não basta imaginar, e seria ingênuo apostar nossas fichas numa tomada de consciência generalizada. Precisamos, mais do que nunca, de atenção e coragem para barrar os futuros prováveis e encorajar os desejáveis que, até pouco tempo atrás, pareciam impossíveis”.
O momento pode abrir espaço para o aprofundamento da remoção de proteções sociais e regulamentações que preservem o meio ambiente. “Temos visto clamores pela retomada imediata da produção e liberação da circulação, ainda que isso custe a vida de milhares ou milhões de pessoas, além de manobras para, usando a crise como pretexto, empresas se livrarem de regulação estatal e desfrutarem de ainda mais regalias”, aponta Alyne.
Nos Estados Unidos, por exemplo, grandes empresas de diversos setores se movimentam para conseguir junto ao congresso ajudas financeiras bilionárias. Enquanto o senado americano propunha, em pacote contra efeitos do coronavírus, mudanças tributárias que beneficiam em grande parte milionários. No Brasil, o ministro da economia, Paulo Guedes, reforçava, mesmo em meio a pandemia, a necessidade de reformas para a redução do tamanho do Estado.
Funcionários da Prefeitura de Belém realizam limpeza para combate ao novo coronavírus em locais de feiras livres – Foto: Sesam via Fotos Publicas
Negacionismo
O negacionismo da pandemia acontece de forma parecida com o da mudança do clima. É o que conclui Paul Krugman, em sua coluna de final de março no jornal estadunidense New York Times, ao encontrar semelhanças entre os discursos de Trump sobre a Mudança do Clima e a Covid-19. As afirmações de Trump de que é falso ou de menosprezo à gravidade do problema, de que fazer algo a respeito destruiria a economia e que a China é culpada, é comum para os dois temas.
Marco Antonio, por sua vez, não vê como separar as questões da mudança do clima e a pandemia, já que fatores antropogênicos são decisivos para a eclosão de epidemias. “Trata-se de um só e mesmo negacionismo”, afirma ele. A pandemia atual como outras zoonoses foram desencadeadas por desmatamento das florestas, tráfico de animais silvestres, agricultura intensiva e produção industrial de animais para consumo, resistência antimicrobiana devida ao abuso de antibióticos e as mudanças climáticas que podem agravar a disseminação de vetores e proliferação de doenças.
No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem constantemente subdimensionado o problema e contrariado as recomendações sanitárias da OMS (Organização Mundial da Saúde) e do próprio Ministério da Saúde, como forma de boicotar a política de isolamento e pressionar para a que a economia volte a funcionar normalmente.
Divulgadores de ciência que fizeram alertas sobre o novo coronavírus sofreram perseguição e cientistas da Fiocruz foram ameaçados depois que divulgaram resultados preliminares de pesquisa sobre a falta de efeitos benéficos da hidroxicloroquina, droga que tem sido promovida para o tratamento de pacientes da Covid-19, mesmo que ainda não haja evidências científicas suficientes para apoiar seu uso. Informações que não indiquem a retomada imediata estão sob ataque.
Gestos barreira
O desafio que é imposto pela mudança do clima demanda mais do que transformação do sistema produtivo. Segundo Bruno Latour, a própria ideia de produção deve ser contestada. “A injustiça não se limita apenas à redistribuição dos frutos do progresso, mas à própria maneira de fazer o planeta produzir frutos”, escreve em seu artigo.
Marco Antonio Valentim ainda lembra que a saúde humana depende imediatamente da saúde ambiental. “Sem recuperação intensiva dos ecossistemas e das espécies vivas, todo modo de produção, por mais revolucionário que seja, revela-se, no presente contexto, obsoleto e inócuo, senão ainda mais nocivo”, conclui.
Com essa parada forçada provocada pela pandemia, podemos refletir como criar “gestos barreira” contra elementos do modo de produção que não queremos que seja retomado. Um exercício para isso é realizar um inventário de quais atividades suspensas que percebemos dispensáveis e quais, por outro lado, queremos que sejam ampliadas. “Os gestos barreira não se resumem a meras palavras de ordem, mas demandam a identificação e seleção dos processos e atividades que, jazendo sob o efeito pretensamente indispensável e irreversível do capitalismo, podem e devem ser barrados”, explica Alyne Costa.
Na reflexão para a construção desse outro mundo, Marco Antonio elege como ponto essencial a solidariedade socioambiental. “Baseada na experiência consciente de que a vida de cada um depende diretamente da vida dos outros, tanto próximos quanto distantes, em sentido geográfico, cultural e biológico é o valor mais importante para nossa sobrevivência como espécie em meio às outras espécies vivas na Terra”.
Em tempos difíceis, as ações de solidariedade se multiplicam, voluntários angariam doações para os mais necessitados e criam redes para ajudar idosos. Contudo, Alyne ressalta que a solidariedade e empatia não devem se restringir às relações familiares e comunitárias, estendendo a outros povos, outras espécies e existentes. “Isso significaria, então, não voltar para um mundo que não existe mais, mas sim começar a fazer do mundo que habitamos um outro mundo possível”.