Desigualdade social influencia previsões sobre o avanço do novo coronavírus no Brasil

Fatores como densidade demográfica e condições precárias de higiene e habitação demandam a elaboração de novos modelos preditivos, feitos especificamente para cenários brasileiros.

Laura Segovia Tercic 
Mariana Hafiz 
Tainá Scartezini

Não há, até o momento, nenhum modelo epidemiológico que antecipe como o novo coronavírus Sars-Cov-2, causador da Covid-19, se espalha nas favelas. Por serem realizados principalmente em instituições de pesquisa europeias, estudos como o da Imperial College of London (Reino Unido), publicado em março e amplamente referenciado, não consideram alguns parâmetros de desigualdade necessários para prever como a doença se comporta em países como o Brasil, onde a disparidade entre classes é marcante.

Estudos brasileiros mostram que além da subnotificação - evento em que o número real de casos de uma enfermidade é maior do que constam em registros oficiais - fatores como densidade demográfica, condições de higiene e habitação, distribuição desigual de leitos de UTI por região e entre sistemas público e privado de saúde, são variáveis importantes no modo como o vírus se espalha em uma comunidade e, portanto, influenciam os modelos preditivos.

Luciana Travassos, arquiteta urbanista e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), realizou um mapeamento das áreas mais vulneráveis à Covid-19 na cidade de São Paulo e divulgado em live no canal do Youtube do MacroAmb - Governança Ambiental da Macrometrópole. No contrafluxo dos dados agregados, o mapeamento de Travassos é uma tentativa de desagregar informações já disponíveis. Mas ela aponta que a tarefa não é simples: “os dados específicos da Covid-19 estão sendo disponibilizados por região do município, o que também dificulta a análise espacial de sua incidência e, portanto, sua correlação com dados socioeconômicos mais precisos”, afirma.

Historicamente, o acesso aos equipamentos e instalações de saúde no Brasil são desiguais entre as regiões e as camadas sociais. Por exemplo, de acordo com dados da Agência Nacional de Saúde Complementar, mais de três quartos dos brasileiros não têm plano de saúde. Apesar disso, 17,9 mil dos 40,6 mil leitos de UTI disponíveis no país, ou seja, menos da metade, estão no SUS, segundo levantamento do jornal O Estado de S.Paulo no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES), do portal Datasus, e divulgados em reportagem de Fabiana Cambrioli. No caso da cidade de São Paulo, a Rede Nossa São Paulo, a partir de dados de fevereiro de 2020 do Datasus, mostra que “apenas três subprefeituras (Sé, Pinheiros e Vila Mariana) – localizadas nas regiões mais ricas e centrais – concentram mais de 60% dos leitos em UTI do SUS no município. Enquanto isso, 20% da população (2,3 milhões de pessoas) vivem em [regiões de] sete subprefeituras – localizadas nas periferias do município – em que não há um leito sequer”.

Marcelo Soares, jornalista de dados e fundador da consultoria Lagom Data, que disponibiliza em seu site mapas com visualização de dados da Covid-19 por município, explica que a subnotificação no país dificulta o desenvolvimento de simulações. "A subnotificação é tão grande que, ainda que a estratégia de distanciamento social reduza a quantidade de contágios, a aplicação de mais testes sempre vai detectar um aumento de casos", diz. Para o jornalista, é positivo que mais dados entrem no radar, mas esse cenário torna arriscado falar sobre futuro e demanda cuidado dos especialistas porque podem levar a conclusões antecipadas de término do distanciamento. “Estamos todos preocupados com o avanço da doença, mas às vezes mesmo institutos de pesquisa sérios podem cantar vitória antes do tempo", ressalta.

Para o Observatório Covid-19Br, iniciativa independente e colaborativa entre cientistas brasileiros de diversas universidades que acompanha os avanços da pandemia no país, a subnotificação é diferente do atraso de notificação, que é quando há demora na divulgação de casos testados. O atraso pode ocorrer por demora na realização do teste ou na divulgação do resultado. Segundo o pesquisador Roberto Kraenkel, um dos coordenadores do Observatório, “a questão da subnotificação pode ser tratada de forma simples, supondo-se que os casos notificados são uma parcela fixa dos totais”. Mas isso gera maiores incertezas nos dados. Para melhor precisão seria necessário melhorar a qualidade dos dados que entram nos cálculos.

Na elaboração de seu mapeamento, Luciana Travassos utilizou dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE e da identificação de favelas realizada pela prefeitura de São Paulo em 2015. Para definir as áreas, a pesquisadora considerou as seguintes variáveis: densidade demográfica (pessoas por hectare), congestionamento familiar (maior presença de domicílios com mais de seis moradores) e número de pessoas com mais de 60 anos em áreas precárias. Ela explica quenaquele momento, a densidade e a presença desse grupo de risco eram as formas mais rápidas de obter informação, mas, para uma análise mais aprofundada, novos indicadores devem ser necessários, especialmente relacionados à comorbidade”.

De modo semelhante, porém com mais tempo de estudo, os pesquisadores Marcelo Batista Nery, Altay Alves Lino de Souza e Sérgio Adorno publicaram artigo na revista Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), em dezembro do ano passado, que apresenta a metodologia desenvolvida pelos pesquisadores do Programa USP Cidades Globais na construção de um novo modelo capaz de entender os padrões urbanos da cidade de São Paulo. A pesquisa encontrou padrões distintos das divisões político-administrativas utilizadas pela prefeitura na elaboração de políticas públicas, o que denota “uma desconexão entre a gestão pública e a estrutura da cidade”, argumentam. O estudo também aponta que “as condições sanitárias da cidade de São Paulo ainda são um importante elemento de desigualdade intraurbana” e que as condições de alfabetização e renda do(a) chefe de família, além das condições habitacionais, são “componentes essenciais da desigualdade no espaço urbano paulistano”.

A curva de óbitos diários por Covid-19 no Brasil voltou a crescer sem declínio após leve queda no número de óbitos que indicava controle da doença após implementação da quarentena e medidas de isolamento. No último dia 06, o Brasil já atingiu novo recorde de 615 mortes diárias pela doença (dados do Ministério da Saúde) e, com o colapso do sistema de saúde no país, áreas mais vulneráveis com maior congestionamento domiciliar e falta de acesso a água e hospitais serão as maiores prejudicadas.

Incluir indicadores de desigualdade em modelos preditivos permite melhor planejamento para contenção da pandemia, pois, possibilita a criação de políticas públicas e medidas de contenção adequadas às demandas específicas de diferentes comunidades

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004