Covid-19: em que pé está?
A pandemia da Covid-19 provocou crises – sanitária, econômica e social - sem precedentes em todo o mundo e no Brasil. O enfrentamento dessas crises levou também a uma mobilização sem precedentes da ciência e de ações e redes de apoio, particularmente nas universidades públicas. O extraordinário engajamento da comunidade acadêmica resulta também em um impressionante volume de notícias, contribuindo involuntariamente para a infodemia: “um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual”, segundo folheto da Organização Mundial da Saúde. A infodemia torna difícil para o público acompanhar o desenvolvimento das pesquisas e seus resultados, das iniciativas de monitoramento da pandemia e dos projetos sociais para mitigar os efeitos da crise. Nesse contexto, torna-se insuficiente dar acesso a informações certas, no tempo certo e no formato certo, características essenciais preconizadas pelo portal da Unicamp. É preciso também fornecer ao público balanços periódicos de como caminham todos as ações e iniciativas noticiadas nos últimos três meses. Nesse sentido iniciamos a série “em que pé está ?” com uma matéria sobre os diferentes grupos dedicados à compreensão da pandemia através de modelos matemáticos, que em curto intervalo de tempo revelam-se importantes subsídios para tomadas de decisão e políticas públicas para enfrentar a Covid-19.
Da redação
Desvendar possíveis cenários da pandemia do novo coronavírus e informar tomadas de decisões são contribuições que as pesquisas baseadas em modelos matemáticos e epidemiológicos buscam trazer para o controle da Covid-19. Da análise sobre o panorama da reprodução da doença até o exame da intensidade do distanciamento social, pesquisadores driblam e calculam o atraso nos dados na tentativa de levantar informações importantes para a conformação de políticas públicas. São diversos grupos de pesquisa que atuam nesse sentido. Na Unicamp, os pesquisadores Flávia Maria Marquitti, Paulo Silva e José Geromel salientam como o campo de pesquisa vem ajudando a entender a pandemia.
Uma das contribuições destacadas pela bióloga e matemática aplicada Flávia Marquitti, pós-doutoranda no Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) e integrante do Observatório da Covid-19, que reúne pesquisadores em torno de estudos científicos a respeito da pandemia, são as análises de nowcasting. Ela destaca que essa abordagem não era comum no país, mas foi levantada pelo Observatório devido à problemática de atraso nos dados referentes à epidemia no Brasil. Através da abordagem, o grupo estima que, para cada morte notificada no país, existam até outras três aguardando registro. Isso ocorre porque a maioria do óbitos (61%) leva mais de dez dias para ser confirmado e notificado.
“A análise de nowcasting é muito importante. Nós a colocamos em pauta e outros grupos de pesquisa e alguns órgãos públicos começaram a olhar para isso porque existe uma importância muito grande no atraso de dados no Brasil. Às vezes o dado chega, mas até ser colocado na base demora, então é preciso considerar esse tempo para se fazer análises mais precisas sobre o estado da epidemia no país e nos estados. Essa análise teve como resultado discussões com tomadores de decisões”, explica Flávia, cuja experiência de atuação se dá na interface entre biologia e matemática.
A maior precisão obtida pela abordagem, além de melhorar a possibilidade de olhar para o cenário presente, e não de semanas passadas, levou, por exemplo, a uma parceria do Observatório com Secretaria de Saúde do município de São Paulo para o monitoramento da Covid-19 na capital paulista.
Tomadas de decisão e ciência
Entretanto, frisa a pesquisadora, nem sempre as tomadas de decisões são baseadas na ciência. Ela salienta, nesse sentido, que os estudos conduzidos pelo Observatório mostram que a epidemia de Covid-19 no Brasil ainda não está diminuindo. Por isso, as análises do grupo não indicam que esse seria o momento ideal para afrouxar as medidas de isolamento e distanciamento social.
A ponderação leva em conta o chamado R efetivo (Rt), ou número efetivo de reprodução, que mede a capacidade de propagação do vírus, designando quantas pessoas em média são infectadas por um contagiado pela Covid-19. Se o Rt está acima de 1, quer dizer que a doença ainda está aumentando entre a população. Já abaixo de 1 indica uma diminuição da doença, e um número próximo a 1 mostra uma tendência à estabilidade. “É uma medida que a gente usa em biologia de populações para entender se a epidemia está em expansão ou não. Ele serve para tomar decisões a respeito da epidemia”, elucida Flávia.
No Brasil, o número de reprodução do vírus ainda está acima de 1, embora venha caindo gradualmente. “Então não seria o momento exato de ter relaxamento de medidas de distanciamento social”, avalia a pesquisadora, que no momento vem se dedicando aos diferentes métodos de cálculo de reprodução efetiva, incorporando também as análises de nowcasting para maior precisão. A bióloga também aponta para os perigos de medidas que se voltam para a remediação da doença, e não para a sua mitigação. “Estão olhando para ver quantos podem cuidar e não para prevenir que a doença se espalhe”, afirma.
Vidas salvas pelo isolamento
Os dados levantados pelo Observatório, que constam numa grande plataforma repleta de gráficos e análises comentadas, embasam também pesquisas feitas por outros cientistas. O professor do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) da Unicamp, Paulo Silva, por exemplo, levanta de lá os dados para o estudo chamado Vidas Salvas pelo Isolamento Social. Realizada em conjunto com a pesquisadora do IMECC Claudia Sagastizábal, a pesquisa estima, levando em consideração da taxa de transmissão do vírus (o Rt), quantas mortes são poupadas pela estratégia de isolamento social.
Até o dia 24 de junho, a estimativa é que a cada minuto, duas vidas sejam salvas pelas medidas de distanciamento social. No estado de São Paulo, só no dia 23 de junho, a pesquisa aponta 204 vidas poupadas, número que cresce ao longo dos dias até bater as 2.537 vidas em 5 de julho. No entanto, o professor pondera que, devido ao atraso dos dados, os números são ajustados diariamente e, pelo período de incubação da doença ser de até 14 dias, eles refletem o que aconteceu há até duas semanas.
Em relação à taxa de reprodução básica do vírus, que no Brasil está em 1.16, enquanto no início da pandemia era de 2.20, Paulo avalia que é uma boa notícia, pois indica uma tendência à estabilidade, mas traz algumas ponderações sobre o processo de relaxamento do isolamento. “Como existe um delay, fica agora a dúvida se a reabertura não vai mexer nisso, pois corremos esse risco. Normalmente os outros países não reabriram quando a doença se estabilizou, mas depois que havia decrescido fortemente a doença”, observa.
Essa também é a indicação da Organização Mundial da Saúde, que orienta reabertura somente com taxas de reprodução abaixo de 1, e de forma controlada, já que alguns países que iniciaram a reabertura com taxas abaixo de 1 voltaram a subir os índices após a flexibilização.
Estratégias além da quarentena
O Brasil hoje tem uma estimativa de quase 1 milhão de infectados, segundo o balanço do Ministério da Saúde de 18 de junho. Isso faz com que estratégias como o rastreamento da cadeia de transmissão seja muito difícil e, segundo o professor, humanamente impossível, até mesmo porque não existe uma testagem ampla no país. “Países que têm controlado a doença por períodos longos sem precisar de isolamento severo, como a China e a Coreia do Sul, têm feito esse processo de, toda vez que aparece um caso, saber tudo sobre aquele caso para pegar a cadeia de transmissão. E com isso eles conseguem manter por semanas a sociedade razoavelmente aberta sem um surto de casos. O número de casos é tão pequeno que é possível outras estratégias que não só a quarentena”.
Dessa forma, ele avalia que é preciso primeiro atingir o decrescimento da doença, para depois tomar medidas de afrouxamento do isolamento social. “Esse processo de rastreamento da cadeia de transmissão só é possível se você tem poucos doentes de partida. Se você tem muitos doentes é humanamente impossível fazer. No Brasil hoje em dia eu diria que isso é humanamente impossível de fazer. Se você tem muitos casos, a primeira coisa a fazer é a quarentena para diminuir o número, porque se não, não é possível trabalhar. E no Brasil o que se está fazendo é diminuir a quarentena sem diminuir o número de casos, e isso me parece muito perigoso”, afirma.
“O problema da doença é que existe uma inércia, você não mede o que vai acontecer amanhã, você mede o que aconteceu há uma semana, uma semana e meia atrás. Se você decidir pisar no freio, é como pisar no freio de um navio ou de um trem, existe uma inércia e ele vai seguir andando por um tempo. Você tem que ter cuidado e calcular que dê tempo de frear antes de bater”, diz o professor, fazendo uma analogia evidenciando que, pela característica de incubação da Covid-19, é preciso saber que estratégias de contenção da epidemia podem demorar a surtir efeito.
Por isso, ele indica que os protocolos adotados pelas autoridades públicas deveriam confiar mais nos modelos. “Eles dizem o que pode acontecer”, afirma.
Ponderações e aprimoramento dos modelos
Assim como Flávia e Paulo, o professor Jose Claudio Geromel, da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Unicamp (FEEC), avalia que os modelos fornecem informações importantes para avaliar políticas públicas de combate à epidemia. “Permitem, por exemplo, calcular a chamada taxa básica de reprodução (R0) e colocar em evidência se o isolamento social adotado está sendo efetivo, no sentido de diminuir o número de novos infectados e, por conseguinte, o número de óbitos”, observa.
Entretanto, para tomar os modelos matemáticos no entendimento da pandemia e na tomada de decisões por autoridades, são necessárias ponderações. A primeira ponderação que Geromel traz é que modelos matemáticos introduzem simplificações da realidade e, por isso, precisam ser observados a partir dessa compreensão. “Mas, ao serem adotados com cuidado e cautela, são essenciais para subsidiar a tomada de decisão de forma mais precisa e segura”, afirma.
Outro ponto levantado pelo pesquisador relaciona-se à impossibilidade de projeções a longo prazo, já que o comportamento da doença e das pessoas, em relação ao uso de máscaras e ao isolamento, por exemplo, impactam diariamente sobre os parâmetros adotados. “Como os seus parâmetros podem variar durante a evolução da epidemia, ao serem determinados a partir de um conjunto de dados disponíveis em um momento, podem deixar de bem representar a realidade mais à frente. Desta forma, previsões de longo prazo são evitadas, pois estão sujeitas a imprecisões que, em geral, são expressivas”.
Em conjunto com os pós-graduandos da FEEC Jorge A. Costa Jr. e Amanda C. Martinez, o professor propôs uma nova variante para o modelo clássico que leva em conta os indivíduos saudáveis (S), infectados (I) e recuperados/removidos (R), denominado modelo SIR, o qual é bastante difundido na análise de cenários relacionados à Covid-19. Essa nova variante, observa, foi obtida a partir de uma formulação alternativa que descreve os encontros aleatórios entre indivíduos das classes S e I.
“O modelo proposto tem boa aderência à realidade, mas sofre das mesmas limitações de qualquer modelo da classe SIR. Ao nosso ver, isso coloca em evidência que é preciso desenvolver modelos computacionais mais precisos (com representação evento-a-evento) que possam ter maior grau de previsão”, elucida.
Assim, Geromel indica que são imperativos alguns aprimoramentos. “É necessário determinar o impacto epidemiológico associado a cada indivíduo de uma população tão grande como a nossa, se deslocando em uma imensa área territorial, com densidade populacional muito heterogênea. Esse é um desafio científico que devemos enfrentar, no futuro próximo, para entender como melhor proceder no enfrentamento de epidemias”.
“A única arma que temos atualmente para combater esta epidemia é o distanciamento social”, lembra o professor, que reafirma as medidas individuais como fundamentais para o controle da doença. “Esta fase vai passar, mas todos devemos contribuir para que ela passe mais rápido. Lavar as mãos, manter distância, evitar aglomerações e só sair de casa se for absolutamente necessário, são contribuições fundamentais de cada um ao bem-estar de todos”, orienta