Ônibus lotados, aglomerações nas estações de metrô, trânsito intenso nas ruas das grandes cidades. A maior diferença que a pandemia do coronavírus trouxe ao cenário comum da mobilidade e dos transportes no país é que, agora, a recomendação é que tudo isso se repita com o uso de máscaras e álcool em gel. O setor, que já convive com sérias deficiências em infraestrutura e necessita de planejamentos que identifiquem as demandas e sejam adequados à realidade de diferentes regiões, neste contexto precisa rever a maior parte de seus paradigmas, buscando maior segurança sanitária, enquanto corre para resolver problemas que se arrastam por anos.
Segundo Felippe Benavente Canteras e Vitor Eduardo Molina Junior, coordenadores do curso de Engenharia de Transportes da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp, em Limeira, os maiores desafios para o profissional da área estão justamente em inovar no setor enquanto encontra soluções para problemas antigos. Eles também analisam o impacto de fenômenos recentes, como os do transporte sob demanda, e comentam as vantagens que os estudantes encontram no curso oferecido pela Unicamp, iniciado em 2019.
Ônibus ou bicicleta?
A situação provocada nos transportes públicos pela pandemia configura uma espécie de ciclo vicioso. Por conta do isolamento social, menos pessoas saem de casa, o que faz a oferta de transporte ser reduzida. Com isso, quem depende de metrô ou ônibus continua a enfrentar aglomerações ao mesmo tempo em que as empresas de transporte público vêem suas receitas caírem de forma drástica, o que dificulta investimentos e inovações necessárias. Dados apontados pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), desde o início da pandemia no país a diminuição no número de passageiros nas grandes cidades chegou a 80% e a redução na oferta dos serviços atingiu 53%. A entidade calcula que as perdas provocadas pela pandemia podem chegar a cerca de R$ 9 bilhões até o fim de 2020.
Quem mais tem a perder são os moradores de áreas periféricas. Além de contarem com menos acesso a serviços de saúde, acabam se expondo por mais tempo aglomerados em ônibus e vagões em seus deslocamentos. Estudos realizados na capital paulista mostram que o risco de morte pela Covid-19 em bairros da periferia é até dez vezes maior que em bairros nobres. "As maiores taxas de contaminação e mortes estão justamente nas regiões periféricas. Além de diversos fatores sociais envolvidos, como a carência de sistemas de saúde adequados e a maior dificuldade de manter o distanciamento social, geralmente a população periférica é aquela que precisa usar o transporte público por maiores distâncias. Então o transporte público pode estar diretamente relacionado às maiores taxas de contaminação. E é um problema seríssimo e o setor vai ter que se adaptar de forma rápida", analisa Felippe Canteras, coordenador do curso.
O professor comenta que a lotação dos transportes públicos é um fator que passa a ser determinante na qualidade dos serviços prestados. Prevenir as aglomerações deixa de ser apenas uma questão de conforto e se torna uma demanda de saúde. "A gente precisa ampliar o transporte público, ele é sim uma das soluções para a mobilidade. A grande questão agora é como deixá-lo seguro, como não aglomerar, como não provocar uma 'estação da Sé às 18h'", avalia.
Apesar de as adaptações no setor serem necessárias durante a pandemia, a mobilidade pós-covid também promete mudanças significativas. "Será que o home office não será expandido? Se ele for expandido, tornar-se uma tendência, poderá ocorrer uma diminuição da quantidade de pessoas que precisarão usar o transporte coletivo? Vão ser necessários estudos depois da pandemia para ver como será o comportamento da sociedade, até para se pensar em alternativas" questiona Vitor Molina, coordenador associado do curso. Nesse sentido, os professores acreditam que o segredo de uma mobilidade mais eficiente no futuro estará na capacidade de combinar diversas formas de transporte, que sejam adequadas a diferentes contextos. "O grande X da questão para resolver o problema no pós-pandemia, além de ampliar e modernizar, é integrar e diversificar as formas de oferecimento de transporte. Essa é a principal revolução", comenta Felippe.
Uma das novidades surgidas nos últimos anos que são apontadas pelos docentes como responsáveis por uma revolução na mobilidade das grandes cidades são as alternativas de transporte sob demanda, não apenas carros de aplicativos, mas também empresas que alugam bicicletas e patinetes. Segundo os professores, parte dos deslocamentos realizados nas cidades são de pequenas distâncias, o que pode ser favorecido com opções que dispensam gastos de operação, não promovem aglomerações e podem ter uma mudança cultural entre os mais jovens como aliada.
"O jovens com 18, 20 anos hoje, poucos têm o interesse em adquirir o bem, em ter um carro, por exemplo. O que interessa ao jovem hoje é ter o serviço de transporte. Eu acredito muito que essa é uma mudança que veio para ficar", afirma Felippe Canteras. No entanto, ele pondera que essas iniciativas não são a solução imediata para os problemas de mobilidade das grandes cidades se não forem combinadas com estudos que mostrem quais opções são mais vantajosas em cada ambiente e com investimentos em infraestrutura: "É muito legal ter uma bicicleta na porta da sua casa e você poder ir de bicicleta até o trabalho. Mas será que esse trajeto é adaptado para ser feito de bicicleta?".
Cargas: diversificar modalidades pode ser a melhor solução
Se os efeitos da pandemia são mais evidentes na mobilidade urbana, para os transportes de cargas eles se apresentam nas consequências da crise econômica provocada pelo coronavírus. Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Transportes (CNT), 74,6% das transportadoras do país tiveram suas demandas de trabalho reduzidas, sendo que 57,2% dizem que elas reduziram muito. Essa dificuldade se soma à realidade já problemática do setor, que vem desde questões infraestruturais até a dinâmica de exploração dos modais: de toda a malha rodoviária existente no país, apenas 12,4% é pavimentada.
"Tudo isso mostra o quanto o setor é precário no Brasil, o quanto é preciso expandir e o quanto isso se torna um gargalo, uma vez que ele é fundamental para escoar a produção nacional. Todo o PIB, todo o crescimento econômico, está relacionado com o desenvolvimento do setor de transportes", analisa o coordenador do curso. A prova disso está no passado recente do país. Em 2018, os cerca de 10 dias de duração da greve dos caminhoneiros foi responsável pela queda de 10,9% na atividade industrial no mês de maio e reduziu a expectativa de crescimento do PIB daquele ano de 2,5% para 1,6%, sendo que no consolidado a queda foi ainda maior, reduzindo o crescimento do PIB de 2018 a 1,1%.
Engana-se quem aponta como solução imediata e única para o setor o aumento do investimento em ferrovias. Ainda que sejam uma ótima opção, devido aos custos e o tempo necessário para a ampliação de infraestrutura, os professores defendem ser necessários estudos a respeito da realidade das diferentes regiões do país, de forma a conhecer o que já existe de infraestrutura nesses locais e quais tipos de modais seriam mais eficientes em cada situação. "Dependendo da realidade, em um local vai ser muito mais importante investir na ampliação de ferrovias, que podem ser vitais para o desenvolvimento econômico da região, enquanto em outras regiões, onde já existe uma estrutura rodoviária estabelecida, talvez a prioridade seja a manutenção desses sistemas rodoviários. Também não podemos esquecer o potencial para transporte hidroviário em outras regiões do país.", explica Felippe.
Entretanto, o profissional de Engenharia de Transportes deve ter a consciência de que projetar o futuro da área deve ser um trabalho acompanhado pela resolução das deficiências já existentes. "A gente tem que pensar em como corrigir essa infraestrutura atual e como a gente pode trabalhar para modificá-la e melhorá-la. A gente precisa sonhar, mas também temos que ver quais problemas precisamos resolver para deixar uma base pronta para construir algo diferente", pondera Vitor.
Curso jovem e interdisciplinar
Iniciado em 2019, o curso de Engenharia de Transportes da Unicamp tem a grande vantagem de permitir que seja incentivada a interdisciplinaridade. "Nós temos uma grande vantagem porque na FT temos cursos muito importantes para o desenvolvimento da engenharia de transportes, que é caso do cursos de Engenharia Ambiental, de Telecomunicações e também curso de Sistemas de Informação. Então temos um tripé na Unicamp que nos auxilia muito a dar essa interdisciplinaridade para o nosso curso", explica o coordenador do curso.
Isso permite que a formação dos estudantes adapte-se às tendências do setor e mostre a eles portas que podem ser abertas a partir de trabalhos em conjunto com outras áreas. "O transporte sob demanda abre um leque muito amplo para o engenheiro de transporte e outros profissionais porque esse arranjo que permite alugar uma bicicleta ou um patinete é feito por aplicativo. Então você precisa trabalhar associado a outros profissionais, o que estimula o trabalho em equipe e o empreendedorismo", pontua Vitor Molina.
Com foco nos transportes terrestres, o curso oferece disciplinas que enfatizam a infraestrutura e o planejamento ao longo de 11 semestres e prepara os jovens profissionais a atuar no setor público e privado, desde órgãos governamentais e agências reguladoras, passando por concessionárias de rodovias e ferrovias, até a empresas inovadoras e startups, como é o caso do transporte sob demanda. Os professores avaliam que este início de curso tem sido proveitoso para já inserir os estudantes no universo profissional.
"O que a gente tentou trazer nesse primeiro ano do curso é justamente a realidade do mercado e das atuações que o aluno pode ter depois de formado. Nos dois primeiros anos, os alunos acabam tendo maior contato com disciplinas básicas e intensificam as disciplinas específicas depois desse período. Então, alguns alunos já procuraram os professores para desenvolver projetos de Iniciação Científica. Existe uma mobilização da coordenação para estimular nossos alunos", relata o coordenador associado.
Para Felippe Canteras, o grande objetivo que vem sendo construído é o de formar profissionais prontos para atuar em diferentes contextos. Como os próprios docentes mostram, o setor é essencial para o crescimento do país e, com ou sem pandemia, a inovação será necessária. "Parece que nosso engenheiro de transportes vai ser o engenheiro do milagre (risos), é claro que não. Mas ele estará capacitado para trabalhar em equipes multidisciplinares. Nosso engenheiro tem que ter a capacidade de trabalhar com um engenheiro ambiental, civil, com arquitetos, planejadores urbanos. São multifunções para que a gente consiga, de fato, acelerar o conceito de cidades inteligentes, que é tão falado e tão pouco visto na prática. O engenheiro de transportes é então um dos pilares das cidades inteligentes", finaliza.