Nas últimas semanas, se alguns Estados, como é o exemplo de São Paulo, estão vivendo uma ligeira desaceleração no número de casos e óbitos devido à pandemia, em termos nacionais as perdas de vidas ainda estão altas. Na figura de linguagem usada pelo médico Edison Bueno, do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, é como se o país estivesse sendo atingido por vários terremotos ao mesmo tempo. Eles, infelizmente, também são seletivos em relação às vítimas, porque as mortes são maiores entre os mais idosos, na análise do especialista.
No caso específico da cidade de Campinas, onde os dados também mostram uma desaceleração, as mortes continuam. Segundo os números oficiais da prefeitura, a cidade está próxima dos mil óbitos. “O Brasil é do tamanho de um continente. Se compararmos com a Europa, onde os países nem sempre seguiram os mesmos caminhos, aqui ocorreu o mesmo no nível dos Estados. A resultante de tudo isso é esse platô alto de casos novos, apesar de uma discreta diminuição que estamos vendo nas últimas semanas”, afirma Bueno.
“O problema é que muitas pessoas, e aqui não é o caso de julgar ninguém, já decretaram o fim social da epidemia, vamos dizer assim. Talvez, um desdobramento disso é que sairemos da pandemia para uma endemia.” O que significa, segundo Bueno, que os casos de Covid-19 vão continuar ocorrendo em maior ou menor nível em certas cidades ou estados até a chegada da vacina.
“No Brasil é difícil ver o que deveria ser o ideal. O bloqueio de novos casos por meio da identificação dos contatos que eles tiveram e também o isolamento com rastreamento. Essas medidas são as mais eficientes para se coibir novas infecções. Os países que conseguiram usar essas estratégias de forma eficiente tiveram bons resultados.”
Um dos pontos que mais prejudicou a abordagem na pandemia no Brasil, avalia o especialista em proteção à saúde da Unicamp, foi a falta de uma maior integração entre governo federal, estadual e municipal. “Sem coerência a população também fica confusa. Isso prejudicou muito a abordagem aqui. Isso faz diferença. Todo mundo já conhece alguém que teve, que foi internada ou até que morreu. Mesmo assim, as pessoas estão assumindo riscos.”
Essas ações ocorrem, segundo Bueno, por vários motivos. “Existe desde a imaturidade daqueles que querem desafiar o risco e demonstrar coragem. Até aqueles que negam o problema, inclusive por medo de morrer. A psicanálise explica bem isso. É algo natural que ocorre com o ser humano.” Um dos grandes problemas, afirma o médico, é que ao se tomar atitudes de risco em relação à pandemia, as consequências deixam de ser individuais e passam a ser coletivas. “Acaba faltando até uma certa noção de solidariedade. Não adianta depois colocar a culpa no doente. Ou então, no futuro, falar que não sabia. É muito importante conversar com as pessoas sobre isso. Atitudes incoerentes por quem deveria também dar o exemplo agrava muito a situação. É preciso abrir mão de certos costumes”, atesta.
Quando afirma que é preciso conversar e expor o problema de forma global, tanto no Brasil quanto no exterior, Bueno está se referindo, também, à necessidade de se enfrentar a radicalização presente na sociedade. “Precisamos argumentar mais, precisamos de pontos de vista que se completam em vez da negação do conhecimento científico. Estamos vendo vários tipos de negacionismo expressos em teorias conspiratórias que são criadas, na negação da existência do vírus e assim por diante. Com isso, gasta-se muito tempo com vídeos, com as redes sociais e com coisas que desviam a atenção das pessoas.”
Questão ética
Com os esgarçamentos das relações sociais, argumenta Bueno, a falta de reflexão coletiva e de atitudes solidárias passam a fazer parte do dia a dia das pessoas. “Ética não existe nos livros, mas sim na prática. Deve haver mais cuidado com a família, com a comunidade e com o país.”
Um dos grandes debates nacionais desde o início da pandemia é um exemplo claro, segundo o professor da Unicamp, de como as visões antagônicas devem ser vistas sob outra ótica. “A questão de se preocupar mais com a saúde das finanças do que com a saúde das pessoas não deve ser vista como excludente. Um Estado que não cuida de todos tende a ficar muito mais suscetível a cuidar só de alguns setores, como do lucro e da riqueza”, afirma Bueno. Para quem um dos legados da pandemia será a discussão de como o país precisa financiar melhor o seu sistema de saúde.
Se de um lado a flexibilização está levando muitas pessoas às ruas novamente, de outro ainda muitos, por medo ou solidariedade, continuam respeitando o distanciamento social e usando todas as estratégias de proteção, como lavagem das mãos, máscaras e evitando aglomerações. Atitudes que ajudam na redução dos índices de transmissão, mas que não são suficientes, segundo Bueno, para se ter uma visão otimista da realidade, ao menos no curto prazo.
“Ainda não dá para ver a luz no fim do túnel. A gente vê um grande nevoeiro, cinzento. O que significa que as pessoas vão continuar morrendo, infelizmente. Vamos ver ainda essas várias epidemias dentro do Brasil. E a resultante será ainda esse platô elevado”, avalia o sanitarista.