Em nota, médicos e docentes da FCM criticam portaria que modifica procedimentos para aborto legal em vítimas de estupro

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No dia 28 de agosto, em edição do Diário Oficial da União (número 166), foi publicada a Portaria GM/MS nº 2.282, que “Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. A publicação modificou o leque de documentos e procedimentos necessários para que mulheres vítimas de estupro tenham acesso à interrupção legal da gravidez em serviços do SUS, revogando a Portaria MS nº 1.508/2005, que vigorava até então.

Assinado pelo general Eduardo Pazuello, dirigente interino do Ministério da Saúde desde a exoneração do médico oncologista Nelson Teich, em 16 de maio, o novo documento tem sido duramente criticado por diferentes entidades de classe e por legisladores. Logo no dia 28 de agosto, dez deputadas federais apresentaram o Projeto de Decreto Legislativo nº 381/2020, que visa a sustar a nova Portaria, ou seja, suspendê-la. A proposta, agora, precisa ser pautada pelo presidente da Câmara, para que entre em votação.

Paralelamente, na quarta-feira, 2 de setembro, PT, PSOL, PSB, PcdoB e PDT protocolaram no Supremo Tribunal Federal um pedido de liminar visando a suspender os efeitos da nova Portaria, considerada inconstitucional e ilegal. Movida pelo mesmo entendimento, há, ainda, uma petição da Defensoria Pública do Estado de São Paulo contra a União, objetivando à declaração de ilegalidade do documento (Ação Civil Pública nº 5017239-42.2020.4.03.6100).

Em Nota Técnica publicada pelo Conselho de Defensores Públicos Gerais, CONCEGE, lê-se a seguinte conclusão:

“Diante do exposto, tem-se que a Portaria 2.282 de 27 de agosto de 2020 é inconvencional, inconstitucional e ilegal, pois não observa o respeito à autonomia, autodeterminação, intimidade, confidenciabilidade, consentimento prévio e livre, bem como fere liberdade reprodutiva e atendimento humanizado, princípios basilares do SUS, e constitui um retrocesso aos direitos humanos e da política pública de enfrentamento a violência sexual de menina, adolescentes e mulheres que no atual contexto da saúde pública brasileira ainda se sujeitam a entraves de toda ordem para o exercício de seu direito a interrupção legal de gravidez em caso de violência sexual. Por todos esses motivos, e por trazer torturas, constrangimentos e práticas degradantes para o exercício pleno do direito, concluímos pela inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade da Portaria do Ministério da Saúde de nº 2282 (27 de agosto de 2020), e, consequentemente, pela sua não aplicabilidade diante da nulidade absoluta, recomendando a sua imediata revogação”.

O debate em torno da nova Portaria é oportuno para que se lance luz sobre os dramas historicamente já enfrentados pelas mulheres vítimas de estupro quando buscam por serviços de interrupção legal da gravidez no Brasil. Um amplo conjunto de estudos tem mostrado que, em muitos desses serviços, impera um regime de constante suspeita quanto à veracidade da narrativa da mulher sobre a violência sexual: sua palavra não é suficiente para o acesso ao procedimento, sendo-lhe necessário provar-se vítima da agressão e apresentar traços subjetivos que a caracterizem como tal. A exigência de documentos não requeridos por lei (como boletins de ocorrência, autorização judicial e exame de corpo de delito) também é comum, estratégia clara de se obstar o acesso ao procedimento.

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Fernanda Surita, Arlete Fernandes e Denis Barbosa Cacique: posição contrária a qualquer ação que dificulte o alcance de direitos

Em claro descumprimento do Código de Ética Médica (2018) e da Lei Federal nº 12.845/2013, que regulamentou o atendimento obrigatório e integral a pessoas em situação de violência sexual, muitos serviços de saúde simplesmente negam o atendimento a mulheres que solicitam o abortamento legal. Foi o que ocorreu, por exemplo, no emblemático caso da menina de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada pelo tio, no Espírito Santo. Frente à recusa da equipe médica do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivi), em Vitória, a menina teve de viajar até Pernambuco para realizar a interrupção, que, cumpre ressaltar, lhe era de pleno direito. É imperativo que se apurem os reais motivos pelos quais o procedimento foi negado à menina em Vitória. E será necessário investigar os fatos que, em última instância, obrigaram a garota a esconder-se no porta-malas de um veículo para que pudesse ser acolhida num hospital de Recife, a quase dois mil quilômetros longe de casa, onde o procedimento finalmente foi realizado.

Com suas eventuais falhas e acertos, fato é que existem poucos serviços como o do Pavivi no Brasil. De acordo com dados do Ministério da Saúde levantados pela organização internacional de direitos humanos Artigo 19, apenas 42 hospitais públicos realizam o aborto legal no Brasil – os dados estão disponíveis no portal. Isso, num país com 5.570 municípios e quase 54 mil estupros contra mulheres todos os anos. Nesse universo desolador, a cada hora que passa, uma menina de até 13 anos de idade é estuprada no Brasil (Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2019). Se engravidarem como resultado da violência sofrida e decidirem pelo abortamento, encontrarão em todo o país, apenas 42 serviços públicos de saúde que realizam o abortamento legal. Na improvável hipótese de conseguirem alcançar um desses serviços, talvez ainda precisem passar pelo mesmo drama vivenciado pela menina de Vitória.

Nesse quadro, não há motivos para crer que a nova portaria do Ministério da Saúde produzirá qualquer avanço em relação ao acesso à saúde pelas mulheres brasileiras, direito enfaticamente anunciado pela Constituição Nacional. Muito pelo contrário. Em relação à Portaria MS nº 1.508/2005, ora revogada, o novo documento introduz - dentre outros elementos passiveis de críticas tanto éticas como legais - a obrigatoriedade de que os profissionais da saúde notifiquem a autoridade policial quando do atendimento de mulheres que engravidaram em decorrência de uma violência sexual. A orientação implica em clara violação do Código de Ética Médica no que tange o princípio fundamental (e as regras dele derivadas, vide Capítulo IX) de se guardar “sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”. Ora, a lei, nesse caso, prevê pena de “detenção de três meses a um ano, ou multa (...)” para aqueles que revelarem “sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem” (Art. 154 do Código Penal), dentre outras censuras. E, sim, a notificação do estupro, quando realizada sem o consentimento da vítima, tem elevado potencial de produzir novos danos sobre a mulher, uma vez que, em quase 80% dos casos, o agressor é uma pessoa próxima à vítima, não raramente, um familiar com o qual ela divide o mesmo teto (Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2019).

Frente ao exposto, nós, profissionais do Programa de Atenção Especial da Unicamp e o Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da mesma Universidade nos colocamos ao lado dos que prezam a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, tão arduamente conquistados e mote de luta de tantos até hoje no Brasil. Nossa posição é frontalmente contrária a qualquer ação que dificulte o alcance desses direitos. Não deixaremos de atender às mulheres que nos procuram com o mesmo cuidado, com o mesmo humanismo e com as garantias previstas em lei no nosso país.

Assinam o artigo, os professores: 

Arlete Fernandes (responsável pelo Atendimento Especial do Caism/Unicamp)

Fernanda Surita (chefe do Departamento de Tocoginecologia Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp)

Denis Barbosa Cacique (professor Voluntário da Disciplina de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp)

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"Não deixaremos de atender às mulheres que nos procuram com o mesmo cuidado, com o mesmo humanismo e com as garantias previstas em lei no nosso país"

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004