As mulheres compõem cerca de 40% dos pesquisadores e 46% dos docentes de ensino superior no Brasil, segundo dados da Open Box da Ciência de 2020. As desigualdades de gênero, no entanto, afunilam a presença feminina nos postos acadêmicos de maior prestígio, em posições de liderança e em organizações de cunho científico. Na Academia Brasileira de Ciências (ABC), o problema da sub-representação feminina ainda é uma realidade, e como forma de iniciar uma reversão desse quadro, em 2019 a entidade começou a adotar medidas para ter maior paridade em seus quadros. Nas últimas eleições, em 2020, 43% dos membros titulares eleitos foram mulheres e, entre os afiliados, o percentual foi de 46,7%. Duas professoras da Unicamp estão entre os novos membros.
A professora Dessislava Hristova Kochloukova, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC), é uma das eleitas como membro titular, categoria com mandato vitalício e poder de voto. Já a professora Grace Silva Deaecto, docente da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM), foi eleita como membro afiliado, com mandato de cinco anos. Ambas atuam em áreas predominantemente ocupadas por homens e salientam a importância de medidas que incentivem a presença feminina na ciência e em órgãos de representação da comunidade científica. Para elas, ser membro da ABC, entidade que existe desde 1916 e discute políticas públicas para a ciência brasileira, é um importante reconhecimento.
“A diferença pode ser sentida muito cedo”
Dessislava Kochloukova, professora IMECC desde 2001, foi eleita como membro titular para a área de Ciências Matemáticas da ABC, da qual fazem parte 64 cientistas homens e 5 mulheres. Estar em espaços predominantemente ocupados por homens, para a professora, não é exceção, já que a área da matemática possui baixa presença de mulheres.
“Trabalhar num ambiente onde predominante tem mais presença masculina não é novidade para mim. O meu primeiro encontro com a disparidade de representação feminina na matemática começou bastante cedo, quando participei em 2 IMOs (olimpíadas internacionais de matemática) em Cuba, 1987, e Austrália, 1988, como representante de time búlgaro. Na época, a maioria dos times não tinha nenhuma menina participante e o time búlgaro era o único no mundo com duas meninas, e as duas ganhamos medalhas nas duas olimpíadas!”.
Natural da Bulgária, a professora realizou sua graduação e mestrado no país natal, especialização e doutorado o Reino Unido e pós-doutorado no Brasil, na Unicamp. Para Dessislava, a baixa representação feminina na área da matemática é um problema que atravessa os diversos países do mundo.
“A representação feminina na matemática é relativamente pequena, isso não é um fato isolado no Brasil, mas a realidade no mundo inteiro. A diferença pode ser sentida muito cedo, ainda na escola. Mas encorajar meninas a estudar mais matemática, especialmente por meio de competições como OBMEP [Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas] e OBM [Olimpíada Brasileira de Matemática], pode abrir mais caminhos para as meninas no Brasil”, avalia.
Ela comenta, no entanto, sobre os avanços recentes, como o reconhecimento de mulheres matemáticas em premiações internacionais: “É interessante observar que somente nesse mês de dezembro de 2020 duas brasileiras, professoras de matemática maravilhosas, ganharam prêmios internacionais: Helena Judith Nussenzveig Lopes (UFRJ) recebeu o prêmio TWAS e Carolina Araujo (IMPA) conquistou o Ramanujan Prize".
Sobre a sua eleição como membro titular da ABC, a docente também indica que faz parte de um importante reconhecimento. “Ser um membro da ABC é uma honra muito grande e um reconhecimento da minha pesquisa na área de álgebra”, diz.
“É preciso dar mais espaço para as mulheres”
Professora da Unicamp desde 2012, Grace Silva Deaecto atua na área de Análise e Controle de Sistemas Dinâmicos. Para ela, a eleição como membro afiliado da ABC, é um incentivo. “A Academia Brasileira de Ciências reúne os cientistas mais prestigiados e cujas pesquisas se destacam de forma importante no contexto mundial. Para uma jovem pesquisadora, como é o meu caso, fazer parte deste seleto grupo de pessoas é, sem dúvida, uma honra e um grande incentivo”, avalia.
Os esforços por maior paridade de gênero na ABC são vistos pela professora como forma de reconhecer que há uma menor valorização do trabalho das mulheres na sociedade e que elas desempenham múltiplos papeis. “A baixa representatividade feminina é reflexo de uma menor valorização do trabalho da mulher na sociedade. Assim como vem ocorrendo na Academia, é preciso dar maior espaço para as mulheres. Neste sentido, avalio o esforço da ABC por paridade de gênero bastante positivo”.
Ocupar um espaço na entidade, para a docente, traz também uma responsabilidade de atuar para que cada vez mais mulheres possam estar lá. “Aquelas que conseguem o espaço precisam ocupá-lo com responsabilidade e com a função de abrir caminho e condições para a valorização das demais. Só assim, no futuro, teremos uma participação igualitária, mais justa e coerente entre homens e mulheres. Esta coerência implica em levar em consideração que, além da ciência, nós mulheres dividimos nosso tempo desempenhando outros papéis importantes na vida, como por exemplo, o de ser mãe”, observa.
Outro ponto destacado por Grace diz respeito aos ganhos que a ciência tem com a diversidade. "Analisar um problema sob perspectivas diversas permite tratá-lo de forma mais ampla e realista o que, certamente, enriquece a qualidade da solução".
Um longo caminho rumo à pluralidade
Com a última eleição, a ABC terá 47 membros afiliados do sexo feminino e 102 membros afiliados do sexo masculino, representando um percentual feminino de 31,5%. Já entre membros titulares, a entidade terá 102 representantes do sexo feminino e 472 do sexo masculino, representando um total de 17,8% de mulheres.
Apesar dos números ainda expressarem uma grande diferença na representação de homens e mulheres - que não é exclusiva da ABC, mas se reflete, de forma geral, no topo da carreira científica - o cenário vem gradativamente mudando. Em 2007, por exemplo, as mulheres eram 10% dos membros titulares. Em 2017, passaram a ser 14% e, com as eleições de 2020, serão 17,8% - lembrando que os membros titulares têm cargo vitalício. A eleição paritária em 2019 e a eleição próxima à paridade em 2020, nesse sentido, partem do entendimento de que era preciso fazer algo para mudar o perfil da Academia, conforme assinala o vice-presidente da Regional de São Paulo da ABC, o professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp Oswaldo Luiz Alves.
“Nós percebemos que havia uma grande quantidade de mulheres que tinham posições importantes em diferentes laboratórios dentro do Brasil e vimos que estávamos com uma representação que não era verdadeira do que estava acontecendo na ciência brasileira, então a diretoria foi unânime nessa discussão”, observa.
A partir dessa preocupação, o professor comenta que a representação das mulheres passou a ser levada em conta em todas as atividades da ABC, com o foco sobretudo entre membros titulares, que são aqueles que elegem também os novos membros. “Nossa preocupação é aumentar essa representação em todas as categorias. Queremos aumentar bastante esse percentual na medida que a contribuição feminina para a ciência brasileira é extremamente importante e qualificada, de maneira que é muito importante que as mulheres estejam representadas na Academia”, afirma.
Membro da ABC desde 2001, o professor Oswaldo aponta a necessidade da pluralidade. Abrindo-se a essa visão, os titulares da Academia também elegeram em 2020 o primeiro indígena em sua história: Davi Kopenawa Yanomami. A sinalização da liderança Yanomami, eleito como membro colaborador, aponta o reconhecimento da comunidade científica a saberes que transcendem os títulos. Ratifica a postura da entidade em repensar a diversidade em seus quadros, abertura especialmente importante em um momento de crescentes questionamentos e ataques não só à ciência, mas aos direitos dos povos indígenas, de negros e das mulheres.
Em defesa da ciência
As professoras Dessislava e Grace serão empossadas no dia 1º de janeiro, junto aos demais membros eleitos. Ambas acreditam que a principal missão da ABC nesse período será relativa à defesa da ciência e do seu financiamento.
“Acredito que os próximos anos serão bastante difíceis para a ciência brasileira. Com todos os cortes de bolsas das agências de fomento, o objetivo será preservar o nível atual da ciência brasileira. A ciência no Brasil já estava sofrendo com os cortes das verbas antes da pandemia, mas nessa nova situação o cenário será bem mais complicado”, avalia Dessislava.
Em nível regional, a professora Grace destaca a atuação da ABC na defesa das universidades paulistas e da Fapesp e frisa a importância de atuar em torno da valorização das instituições ligadas à ciência. “Como membro afiliado pretendo aproveitar a interação com os demais membros da ABC, participar das suas atividades e atuar para a valorização da ciência brasileira, que passa por uma fase difícil e necessita de maior apoio político e financeiro”.
O vice-presidente da ABC da região de São Paulo, Oswaldo Alves, também pontua que a ABC vem fortalecendo a atuação no combate ao negacionismo e junto a comissões do Congresso Nacional para que o financiamento da ciência e tecnologia não sofram descontinuidades e cortes.