Em 2021, restam poucas dúvidas de que a tecnologia digital é a base sob a qual se estruturam a economia e a sociedade do século XXI. Nem sempre é possível se aproveitar o potencial das novas tecnologias sem alterar como se organizam as atividades econômicas. Quanto mais distinta a nova tecnologia das suas predecessoras, maior a possibilidade de que novas instituições tenham que ser criadas e de que antigas instituições tenham de ser remodeladas. É exatamente este processo que vimos se acelerar desde o início da crise global causada pelo Sars Cov-19. Sob o imperativo do isolamento social, aceleramos a transformação de empresas, governos e outras instituições. Nos habituamos a interagir via plataformas digitais e a consumir produtos e serviços inteiramente ou parcialmente digitalizados.
Quando a pandemia passar, nosso foco se voltará para outra crise que há tempos vem recebendo sinais de alerta de especialistas e estudiosos: a crise do clima e o imperativo da sustentabilidade. Tanto a crise de saúde pública quanto a crise ambiental constituem ameaças globais que exigem cooperação internacional. A tecnologia digital tem ajudado a nossa adaptação a uma economia de baixo contato, possibilitando assim a manutenção de algumas atividades sociais durante a pandemia. Será a tecnologia digital também aliada da sustentabilidade?
Esta questão começa a ser avaliada pela academia e esteve sob o holofote da mídia recentemente no caso “Musk e Bitcoins”, no qual o empreendedor norte-americano Elon Musk condenou a criptomoeda por práticas intensivas em energia utilizadas em seu processo de obtenção. Criptomoedas são apenas uma das muitas aplicações da tecnologia digital que compõem a economia das plataformas digitais. Um olhar mais detido sobre os pontos comuns à toda iniciativa econômica neste contexto pode jogar luz sobre esta questão de forma mais abrangente, ainda que inicial.
As plataformas digitais são a forma predominante de organização da atividade econômica no século XXI. Embora haja diversas definições, de maneira geral há um consenso de que plataformas digitais coordenam e intermediam transações, monetárias ou não, entre dois ou mais grupos via internet. O ambiente virtual propicia que essa intermediação mobilize ferramentas inteligentes, como algoritmos de recomendação, de busca ou de classificação. Assim, a intermediação é mais eficiente e reduz custos de transação. Como serviço fim, podemos afirmar que as plataformas digitais organizam mercados.
Há dois tipos principais de plataformas digitais: as transacionais e as inovativas. As transacionais se colocam como intermediários de transações online ou off-line. A Amazon intermedia vendedores e compradores, e se encarrega da logística de envio do material. A AirBnb intermedia hóspedes e anfitriões. Os aplicativos para deslocamentos tais como o Uber, 99 e Cabify, intermediam motoristas e usuário de transporte. As inovativas são plataformas digitais com uma base de softwares extensíveis. Isto significa que terceiras partes, como desenvolvedores independentes de aplicativos, criam um novo produto/serviço sobre a base tecnológica oferecida pela plataforma. Talvez o principal exemplo desta categoria sejam as lojas de aplicativos da Apple e da Google que, diferentemente das plataformas puramente transacionais, não tem uma proposta fixa de valor. A cada dia, o consumidor pode encontrar um novo produto/serviço que foi criado sobre a base tecnológica compartilhada pela plataforma com os criadores independentes.
Vamos olhar mais detidamente três tópicos que podem ser um desafio para as plataformas digitais em seu alinhamento com a sustentabilidade.
A ilusão da imaterialidade da nuvem
Plataformas, assim como toda a infraestrutura que compõem a economia digital, não “estão na nuvem”. A retórica da computação em nuvem foi desenvolvida intencionalmente para reforçar uma suposta natureza etérea e imaterial da economia digital. Ao contrário, há um grande investimento em infraestrutura física para viabilizar a economia das plataformas digitais. Os enormes datacenters, que armazenam e analisam bases de dados, são compostos por um amálgama de máquinas computacionais, cabeamentos, sistemas de resfriamento, etc. A infraestrutura de telecomunicações passa por cabos submarinos, satélites e torres. O usuário conecta-se via smartphones, que dependem da extração de minerais raros cujo impacto ambiental (e a exploração de trabalho sob condições precárias) é conhecido.
Destarte, é preciso que a economia de plataformas digitais reflita sobre sua cadeia produtiva, que se apoia em uma ampla infraestrutura de artefatos físicos. Com a chegada da tecnologia 5G, sensores povoarão inúmeros objetos, nas cidades e nos campos, formando a Internet-das-coisas. O consumo dos insights gerados por essa nova geração de pontos de dados será via plataformas digitais. Como conciliar o crescimento exponencial de dispositivos eletrônicos, em todo o seu ciclo de vida, com práticas que não prejudiquem o meio ambiente?
A energia é a nova moeda
Especialistas em agro economia alegam que “o Brasil não exporta soja, exporta água”. Esta expressão indica a alarmante intensidade do uso de água oculto no processo produtivo da soja. Pode-se fazer uma analogia com criptomoedas: não se especula com criptoativos, especula-se com energia. Criptomoedas alavancam tecnologias de criptografia e redes baseadas em blockchain para oferecer um meio de troca virtual. Algumas destas moedas virtuais, como a Bitcoin, se baseiam em processamento descentralizado do registro de suas transações. Isto significa que usuários podem colocar seu poder computacional à disposição da rede para verificar as transações feitas por terceiros. Como recompensa pelo seu “trabalho de máquina”, estes verificadores recebem Bitcoins. Esta é a essência da mineração de criptomoeda.
O problema da mineração de criptomoedas é seu alto consumo energético. O crescimento do valor dos criptoativos em mercados financeiros incentivou a formação de verdadeiras “fazendas de mineração” (mining farms). Empresas como a Genesis Mining investem em armazéns abarrotados de unidades de processamento trabalhando 24/7, em uma nova corrida do ouro que obtém criptomoedas como retorno de seu gasto energético. Uma vez que a matriz energética global ainda é altamente dependente de fontes não-renováveis este altíssimo consumo significa mais emissões de poluentes na atmosfera. De acordo com estudo publicado na Nature, somente na China, o consumo energético da mineração de Bitcoin projetado para 2024 é da ordem de 297 TwH, o que equivale a aproximadamente 130 milhões de toneladas métricas de carbono. Isto seria equivalente ao total de emissões da República Tcheca e do Catar somados.
Efeitos rebote
Dos três tópicos, o efeito rebote é o mais difícil de ser mensurado. Ele diz respeito a um paradoxo percebido pelo economista William Stanley Jevons (1835 – 1882) em 1865 com relação ao aumento da eficiência do uso do carvão nos fornos ingleses. A aplicação de novas técnicas permitiu a obtenção do mesmo poder energético com menos carvão. No entanto, o que ocorreu foi uma surpreendente intensificação no uso do carvão. Sua produtividade ampliada incentivou a expansão da demanda, com diversificação do seu uso e aplicações, o que pode ter superado/anulado sua maior eficiência em termos de emissões poluentes.
Plataformas digitais de mobilidade urbana alegam benefícios às cidades, ao viabilizar uma menor necessidade da aquisição de veículos e maior eficiência no uso dos mesmos. No entanto, em que medida isto de fato contribui com o meio ambiente urbano? Ao orquestrar este mercado de motoristas e passageiros, as plataformas fazem com que o preço de um serviço de mobilidade diminua (para o consumidor) e uma nova fonte de renda surja (para o motorista) onde antes havia apenas capital ocioso. Embora estes dois efeitos sejam louváveis, onde entra o meio ambiente nesta equação? O preço mais acessível pode fazer com que a demanda aumente: a Uber já foi acusada de desviar passageiros que utilizariam o transporte público (de menor impacto ambiental) para sua frota. O novo fluxo de renda pode gerar uma demanda adicional por mais veículos, o que transparece na própria política da Uber de facilitar a aquisição e o financiamento de veículos. Finalmente, a maior eficiência do capital, neste caso do veículo que antes estava parado, significa que ele agora circula mais, com efeitos desconhecidos sobre o tráfego e a emissão de poluentes no contexto urbano. Em conjunto, estes efeitos podem sobrepor-se ao suposto benefício ambiental gerado pelo desincentivo ao consumo de novos veículos por parte da população.
Discussão
Plataformas digitais em si são mecanismos fantásticos que podem colaborar para atividades sustentáveis. Um exemplo é a brasileira Cataki, que coordena catadores de material reciclável com organizações que buscam realizar o descarte correto. Na Europa, investigações iniciais encontraram plataformas bem-sucedidas em otimizar o sistema de produção e circulação de alimentos, combatendo o desperdício. Um estudo recente aponta para a proliferação de plataformas digitais de energia, que atuam conectando produtores independentes de energia renovável e consumidores.(Kloppenburg, Koepelo, 2019. Digital platforms and the future of energy provisioning: Promises and perils for the next phase of the energy transition). No entanto, como os três pontos apresentados exemplificam, a orientação das plataformas digitais se dá contingencialmente, e pode ser que em outros casos suas atividades acelerem a deterioração do meio ambiente.
Em retrospectiva, tornar-se um intermediário como as plataformas se tornaram de fato parece ser o modelo mais adequado a uma rede aberta como a Internet. Na década de 1990, a AOL parecia ser o modelo de empresa da internet. No entanto, seus “jardins fechados” derreteram assim que internautas encontraram outra forma de acessar a rede. Quando seu conteúdo se tornou seu único diferencial, cobrar por uma gota disponível em um oceano tornou-se inviável.
A história da AOL ilustra como o processo de definição de um modelo organizacional leva tempo. Empreendedores apostam em diversos modelos e o mercado seleciona os mais adequados. Esta adequação passa por crivos tais como a tecnologia disponível, a estrutura da demanda, entre outros aspectos econômicos. Infelizmente, o aspecto ecológico em geral não toma parte nesse mecanismo de seleção. Talvez isto comece a mudar com a conscientização de que a luta contra a mudança climática é inadiável e o ESG (Environmental, Social and Governance) se torne o paradigma de investimento corporativo no século XXI. No entanto, esta será uma adição tardia ao modelo das plataformas que emergiu pela seleção tradicional de mercado, na qual o meio ambiente é apenas uma “externalidade”.
Decorre daí que a difusão das plataformas digitais pode ser uma aliada ao desenvolvimento sustentável se for acompanhada de outras iniciativas, como a descarbonização da matriz energética. Ademais, é preciso que as plataformas passem por um escrutínio específico que avalie, em cada caso, sua adequação com relação à sustentabilidade.
Observação: Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Unicamp.
*** Por Victo Silva, doutorando na Unicamp em Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências, com o desenvolvimento de tese sobre Plataformas Digitais e Flávia Consoni, professora junto ao Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências.