Há 100 anos, no dia 19 de setembro de 1921, nascia no Recife Paulo Freire. Patrono da Educação Brasileira, ele é um dos intelectuais mais reconhecidos no mundo. Educador, filósofo, responsável por um consagrado método de alfabetização de adultos e engajado na construção de uma sociedade mais justa, Paulo Freire produziu obras que transcendem sua área e impactam diversos campos do conhecimento. Concebendo a educação como “prática da liberdade”, como escreveu em A pedagogia do Oprimido, destacou a importância de um conhecimento produzido em conjunto, em uma relação dialógica. Como afirmou, não existe conhecimento que é mais e conhecimento que é menos.A trajetória de Paulo Freire é um caminho de múltiplas vivências, e seu trabalho acompanha, desde o início, uma reflexão sobre o contexto social e político. Formou-se em Direito na década de 1940, mas logo começou a lecionar língua portuguesa em escolas de segundo grau. Nos anos 1960, tornou-se professor na antiga Universidade Federal do Recife (hoje Universidade Federal do Pernambuco), onde foi diretor do Departamento de Extensões Culturais. Iniciou ali as experiências de alfabetização de adultos, embrião do chamado Método Paulo Freire. O projeto chamou a atenção de governos locais e também do governo João Goulart, que o convidou para elaborar o Plano Nacional de Alfabetização.
Em 1964, com o golpe militar, Freire entrou na mira da ditadura. Foi levado a inquérito diversas vezes, acusado de subversão e mantido preso por 72 dias. Liberado, mas com o passaporte apreendido, pede asilo político. Entre 1964 e 1980 passou pela Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça e alguns países africanos. Trabalhou com alfabetização junto a camponeses, deu aula na Universidade de Harvard, atuou junto ao Conselho Mundial de Igrejas, assessorou governos de países africanos e foi ativo contra o regime do apartheid na África do Sul.
“Em todas essas experiências, ele se vincula a formas de existência mais solidárias, emancipatórias e menos consumistas, menos competitivas, menos capitalistas. Acho que essa é a sua mensagem, desde a Pedagogia do Oprimido até a Pedagogia da Indignação”, avalia a docente da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, Debora Mazza, que foi sua aluna no período em que Freire foi professor na mesma Faculdade.
Freire ingressou na Unicamp em 1981, logo após seu retorno do exílio, e aqui permaneceu até 1991. Em suas aulas, lembra Debora, o professor reunia diversos grupos acadêmicos e membros de movimentos sociais, que enchiam o auditório. “Nas aulas ele exercitava, com leveza, o que chamava de círculo de cultura, ou seja, a convicção de que todos ali tinham algo a aprender e algo a ensinar”, lembra a professora.
Para Debora, a notoriedade da obra de Paulo Freire deve ser entendida em um contexto de efervescência social e disputa por projetos de sociedade. Questionando as relações assimétricas e hierárquicas entre alunos e professores, defendendo a consciência política como parte de uma educação emancipadora, Paulo Freire segue aclamado e atacado. No momento atual, frisa a professora, marcado por ódio de classe e intensa polarização política, é importante lembrar sua mensagem: o que nos enriquece é a convivência entre desiguais e diferentes.
Em oposição à ideia de uma educação para poucos, defendida, por exemplo, pelo atual Ministro da Educação, Paulo Freire indicou a necessidade de uma educação pública que acolha a todos e que se fortaleça com a diversidade. “Paulo entendia que quanto mais a universidade se abrisse para a diversidade dos grupos sociais que compõem o povo brasileiro, mais ela se potenciaria, em contraste com certa visão liberal, elitista e meritocrática que a vê como restrita aos melhores”, aponta Debora.
Assista ao Repórter Unicamp sobre tradução para o inglês de vídeo raro do programa "Encontro com Freire", produzido pela TV Unicamp:
Para entender mais sobre a obra, as vivências e as contribuições de Paulo Freire, entrevistamos a professora Debora Mazza. Confira abaixo:
A obra e o trabalho de Paulo Freire atravessam não só o campo da educação, mas diversas outras áreas do conhecimento. Que características do seu legado o fizeram ter tanto impacto e o tornaram mundialmente reconhecido? Como sua produção e suas ações acompanham o contexto histórico em que se situam?
Paulo Freire começou a atuar no campo da educação nas décadas de 1950 e 1960. Foram décadas importantes no cenário nacional, latino-americano e internacional. Vivia-se o período pós-Guerra, que dividiu o mundo em dois grandes blocos, o bloco oriental, vinculado a um projeto socialista, e o bloco ocidental, alinhado à hegemonia norte-americana, em um modelo capitalista. Nesse momento, as grandes potências disputavam projetos de reconstrução nacional segundo diferentes concepções das relações entre Estado, sociedade e mercado. A Aliança para o Progresso, por exemplo, drenava investimentos de grandes agências internacionais, como a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), com a finalidade de investir no Brasil e demais países da América Latina visando o alinhamento a um projeto capitalista. Eles tinham que investir em projetos de combate à pobreza e à desigualdade e desenvolver tanto a economia quanto a sociedade.
É no cenário da Guerra Fria, entre as décadas de 1950 e 1960, que Paulo faz seus primeiros ensaios de alfabetização de adultos com os círculos de cultura em Recife. A experiência, conhecida como método de alfabetização de adultos Paulo Freire, chamou a atenção de líderes regionais, nacionais e norte-americanos, que entendiam que ser possível investir no progresso econômico tendo mais da metade da população ignorando as técnicas rudimentares da leitura, da escrita e das quatro operações. É nesse cenário, em que a educação é percebida como uma esfera relevante, que Paulo Freire e seu trabalho ganham destaque, primeiro regionalmente, depois nacionalmente, quando foi convidado para elaborar o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos no governo João Goulart, e depois internacionalmente, no exílio.
Outras experiências importantes ocorreram de modo concomitante, como a Revolução Cubana, os movimentos de libertação nacional das ex-colônias, as revoltas estudantis de 1968... As ideias de Paulo Freire e seu trabalho alcançam visibilidade internacional na resistência à guerra, ao capital, e em defesa dos oprimidos.
É em tal contexto que surge sua obra, laureada por alguns, perseguida por outros, e apropriada por várias áreas do conhecimento e da intervenção social. Ela é utilizada por economistas, sociólogos, antropólogos, jornalistas, filósofos, teólogos, pelo serviço social, por movimentos sociais e partidos políticos, pelos sindicatos, e pelo direito de rua, além das áreas da educação escolar não escolar. Sem entender esse cenário de efervescência, de disputas narrativas e de projetos políticos, não se entende a visibilidade, a notoriedade e as críticas que Paulo recebeu e ainda recebe de setores ultraconservadores e ultraliberais.
Você era aluna quando Paulo Freire foi professor na Unicamp, no pós-exílio. Como as ideias dele eram recebidas na academia e como impactaram o campo da educação? Se possível, conte um pouco da sua experiência como aluna.
A Pedagogia do Oprimido é sistematizada no exílio chileno, em 1968, momento em que a universidade no Brasil e no mundo se apresentava como uma instituição hierárquica e elitizada. A obra de Paulo Freire começa quebrando essa assimetria e defendendo a relação entre professores e alunos como uma relação entre humanidades emancipadas, recusando assimetrias de classe, de mérito e poder, e privilegiando a maior ou menor proximidade com os conhecimentos em pauta. Isso causou um tumulto, particularmente com a leitura europeia da obra, mas não só. Desde o princípio, as ideias de Paulo Freire são polêmicas. Era uma pessoa respeitosa, carismática e acolhedora nas relações pessoais, mas suas posições abalavam as hierarquias meritocráticas e a visão liberal de poder, assentadas em uma visão autoritária e patriarcal, e na desigualdade entre grupos e classes, valores que reinavam na década de 1960.
Ele foi professor da Faculdade de Educação da Unicamp de 1981 a 1991. Suas aulas eram ministradas em uma grande sala, em frente da reitoria, que ficava abarrotada. Elas contavam com pessoas de diferentes origens - estudantes de graduação e pós-graduação que o liam e adotavam suas ideias, pesquisadores que tentavam seguir sua filosofia de trabalho junto às comunidades em que atuavam. Havia ainda os críticos que vinham identificar inconsistências nas proposições de Paulo. Grupos dissidentes vinham disputar a narrativa política, além de grupos religiosos ou daqueles vinculados aos movimentos sociais, aos sindicatos, aos partidos políticos, à educação popular, grupos que buscavam uma relação direta com um autor que conheciam somente pela leitura.
Nessas ocasiões, ele mantinha uma posição de escuta e se empenhava em não confundir as críticas às suas ideias com críticas à sua pessoa. Entendia que elas faziam parte de uma disputa narrativa travada no campo pedagógico. Era uma disputa política, não uma ofensa à pessoa. Ali ele exercitava, com leveza, o que chamava de círculo de cultura, isto é, a ideia de que todos ali tinham algo a aprender e a ensinar, e que a responsabilidade do professor seria apenas buscar uma aproximação maior, um certo domínio do assunto abordado. Mas professor e aluno sempre teriam algo a ensinar e a aprender, pois somos todos humanidades inacabadas. Assim, a aproximação maior do professor com o assunto, o tema, o conteúdo trabalhado, não lhe confere o direito de submeter ou envergonhar o aluno no processo de ensino. A diferença entre esses dois lugares sociais está na aproximação temporária e circunstancial. Paulo Freire não era um populista que defendia que o professor não precisa se preparar e ensinar, ou que o aluno não precisa estudar e aprender. Ele partia de uma visão do ser humano como ser em processo de construção, como potência e não ausência. Nesse sentido, a relação professor e aluno é dialógica, um convite ao debate, um exercício de aproximação e distanciamento acerca de um tema, assunto, conteúdo ou currículo.
Para ele, a universidade era parte da sociedade, uma parte privilegiada mas não isolada. A universidade não está separada da sociedade e, no caso do Brasil, ela seria parte de uma sociedade desigual, excludente e violenta. Ela é entendida por alguns como um espaço exclusivo, de poucos. Paulo entendia que quanto mais a universidade se abrisse para a diversidade dos grupos sociais que compõem o povo brasileiro, mais ela se potenciaria e se fortaleceria, diferente de uma certa visão liberal, elitista e meritocrática, que a vê reservada aos melhores, aos mais esforçados, aos mais disciplinados. Como se as condições concretas de existência fossem as mesmas para todos.
Muitos defendem um ensino superior para poucos, como o Ministro da Educação, Milton Ribeiro. Isso é radicalmente contrário ao pensamento dialógico, democrático e includente de Paulo Freire. Sua perspectiva era de uma universidade que é parte da sociedade, e que pode se democratizar, incluir e trazer para o debate acadêmico as diferentes manifestações culturais dos diferentes grupos que a compõem. Ele se dedicou bastante à extensão universitária, desde quando foi professor da Universidade Federal do Recife, onde era responsável pelo Serviço de Extensão. Foi então que ensaiou as primeiras experiências do método de alfabetização de adultos, primeiro no Recife, depois em Angicos, no Rio Grande do Norte, e logo em Brasília, com o Plano Nacional de Educação, antes de ter seu trabalho abortado pelo golpe de 1964.
Dentre as formulações da educação libertadora, da pedagogia do oprimido, e também no âmbito de uma epistemologia política, uma das concepções de Paulo Freire é de que não existe um conhecimento superior a outro. O que podemos aprender na universidade e na educação em geral com essa concepção?
Paulo foi influenciado por diferentes escolas de pensamento. Em suas obras ecoam o existencialismo de Jean Paul Sartre, o humanismo de Erich Fromm, a teoria crítica de Herbert Marcuse, o cristianismo de Candido Mendes, o desenvolvimentismo de Álvaro Vieira Pinto, a fenomenologia cientifica de Edmund Husserl, etc. Ele lida com o devir, com a aposta na mudança e transfere um léxico religioso para o mundo pedagógico: anunciar, profetizar, esperançar. Existe um Paulo estruturalista que dialoga com o Iseb, o Cepal, as ciências sociais brasileiras, um Paulo marxista que leu Kosik, Marx, Hegel, Engels... Em toda essa confluência de linhagens é possível identificar uma valorização da potência, da experiência, da relação entre humanidade e realidade produzindo um conhecimento que é endereçado, localizado, eivado das condições concretas de existência dos seres sociais. O trabalho de reflexão é um esforço de imersão na realidade tendo em vista a tomada de consciência para depois emergir prenhe de projetos de transformação de uma realidade que oprime, explora, impede o devir.
É preciso superar as situações de assujeitamento e expropriação e, através da conscientização, agir sobre o real para transformá-lo, criando mundos que acolham a todos. Esse modo de pensar e agir atravessa todo o trabalho de Paulo Freire, desde seu primeiro texto sistemático, Educação e Atualidade Brasileira, do fim dos anos 1950, até seus últimos escritos. Obras como Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia da Indignação, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperança investem continuamente em uma perspectiva dialógica e em um chamamento à potência do encontro, da convivência entre diferentes e desiguais. No atual momento, de polarização política, ódio de classe, violência de grupos que se armam contra a presença do povo no orçamento do Estado, cabe lembrar que, para ele, é justamente a convivência entre desiguais e diferentes que nos enriquece, é isso que nos torna potentes.
Em um dos seus trabalhos, você aborda a trajetória de Freire durante o período de exílio, de 1964 a 1980. Como foi esse percurso e como essa experiência impactou o seu pensamento e trabalho?
Quando ocorreu o golpe militar, Paulo Freire estava em Brasília, elaborando o Plano Nacional de Alfabetização de Adultos junto com Paulo de Tarso. O desafio era expandir para o território nacional as experiências de erradicação do analfabetismo realizadas no Recife, em Angicos e em outros municípios do Rio Grande do Norte. Era experiência dos Círculos de Cultura, uma educação voltada para as classes populares, os oprimidos, com o objetivo de promover a capacidade de ler criticamente o real e, a partir dessa atitude política, aprender a ler e escrever em uma perspectiva não limitada ao domínio de técnicas motoras. Por meio de um processo cultural de assunção de classe, promovia-se uma leitura crítica da realidade, que antecede e informa a leitura da palavra. Uma educação que levasse à conscientização das condições de existência e que se apropriasse da leitura, da escrita e dos rudimentos do cálculo como processos de emancipação.
Ele trabalhava no Ministério da Educação quando foi indiciado pelos militares. Depois de levado a inquérito mais de uma vez, decidiu pedir asilo político. Em 1964 vai à Bolívia com o propósito de trabalhar no governo de Victor Estenssoro, mas um golpe o obriga a fugir para o Chile. Chega nesses países como exilado, pois seu passaporte havia sido apreendido pelos militares. No Chile, de 1964 a 1969, trabalha para o Instituto de Reforma Agrária com alfabetização de adultos camponeses assentados. O Chile vivia uma experiência de democracia cristã, no governo de Eduardo Frei. Em 1969, a interferência norte-americana, através de golpes militares, lá chega também. Paulo e família mudam-se para os Estados Unidos, onde atuará como professor convidado na Universidade de Harvard. Em 1970 transfere-se para Genebra, a convite do Conselho Mundial de Igrejas, em uma assessoria educacional. De 1970 a 1980 assessorou vários países africanos que haviam conquistado a independência e atuou contra o regime do apartheid na África do Sul. Em 1980, com a abertura política e a recuperação do passaporte, volta finalmente ao Brasil, vivendo em São Paulo até 1997, quando veio a falecer. O que se pode dizer sobre essa andarilhagem dele pelo mundo? Sem dúvida, isso o coloca como um exilado político do governo militar brasileiro. Ele já havia saído de Pernambuco, circulado no nordeste e no cenário nacional com o Plano Nacional de Alfabetização, agora sai do provincialismo brasileiro e mergulha nesse oceano da América Latina, onde entra em contato com suas muitas linguagens e etnias, com a pobreza, a miséria e os simbolismos desses povos e de suas organizações pré-capitalistas, ainda presentes nesse universo de muita desigualdade e exploração. Em todas essas experiências, ele se identifica com formas de existência mais solidárias e emancipatórias, e menos consumistas, menos competitivas. Acho que essa é sua mensagem, desde a Pedagogia do Oprimido até Pedagogia da Indignação, livro lançado post mortem a partir de manuscritos organizados por sua esposa. Ele se torna cidadão do mundo e sua obra não cabe nas fronteiras de um país. É difícil vincular a Pedagogia do Oprimido apenas às suas experiências no nordeste. Ela também se vincula às experiências no Chile, na Bolívia, às revoltas universitárias de 1968. Pedagogia do Oprimido é dedicado a esses grupos e é profundamente marcado pelas condições da periferia. Há ali um pensamento arguto sobre os oprimidos, os que vivem na periferia do sistema, mesmo no primeiro mundo. Nos Estados Unidos, descobriu algo importante sobre o chamado terceiro mundo, categoria então usada - hoje falamos em países desenvolvidos, subdesenvolvidos e em processo de desenvolvimento. Ele diz: ‘quando fui para Harvard descobri que existia o terceiro mundo no primeiro mundo'. Percebeu que as condições de vida de vários grupos sociais, dos negros americanos, dos migrantes laborais, eram idênticas às dos grupos marginalizados da América Latina.
Sua obra abrange temáticas cosmopolitas. Os contextos se multiplicam, são muitos territórios produzindo exclusões e desigualdades. Essa é a grande denúncia que existe em sua obra e por isso ela alcança uma visibilidade nacional e internacional.
Liberdade e emancipação marcam as concepções de educação de Paulo Freire, assim como a politização, a problematização e o diálogo. Que lições podemos tirar do pensamento de Freire para o contexto atual, de ódio ou apatia em relação à política, e constrangimentos à educação e à pesquisa?
Os constrangimentos, na verdade, não visam à educação e à pesquisa. Ele visam somente à educação pública e à pesquisa feita em instituições e agências públicas. Não vemos constrangimentos à Mackenzie, de onde vem o atual ministro, ou ao Instituto Unibanco, à Fundação Itaú. Eles visam à educação pública e aos pesquisadores que são servidores públicos. O que está em disputa é a retirada do orçamento do Estado de serviços públicos que são direitos do cidadão. O projeto em curso não é só do governo Bolsonaro, ele já vinha sendo lentamente implementado e diz respeito à entrada do mercado em todas as esferas da vida social, à privatização de serviços que compõem uma sociedade moderna e avançada. A visão de Paulo Freire era de resistência, assumindo que há esferas da vida que não são mercadorias, pois remetem ao bem comum, e são extensivas a todos independente da fortuna, da herança, do mérito ou da capacidade de inserção no mercado.
Temos que entender que as disputas atuais, esse ódio que se constrói contra bens, equipamentos e serviços públicos, é um ódio que não tem como objetivo os valores familiares ou religiosos, a solidariedade, a humanidade, a caridade, o amor ao próximo. É uma ideologia que esconde suas reais intenções, que são transformar os direitos do cidadão em bens de mercado. Por isso visam apenas à educação, à pesquisa e à saúde que participam do orçamento do Estado, e políticas sociais com a finalidade de construir o bem comum, aquele bem-estar que deve ser estendido a todos.
Paulo Freire também teve uma percepção sobre a importância da extensão e da comunicação. Que horizontes ele apontou nesse sentido?
Essa é uma questão muito importante. Um livro escrito no exílio, Comunicação e Extensão, costuma ser apropriado pelos profissionais da comunicação e do direito de rua. Ali ele diz: o ato de estabelecer contatos é um ato que mesmo os animais fazem - quando passeamos com o cachorro, por exemplo. São esses contatos que a universidade chama de extensão: você vai até um grupo social, deposita ali um monte de conhecimento produzido na universidade e volta sem estabelecer um diálogo, uma abertura para as partes envolvidas O livro foi escrito quando ele trabalhava com os camponeses no Chile. Ele visitava esses camponeses acampados em territórios que estavam sendo transferidos para eles, tendo em vista a promoção de uma agricultura familiar, sustentável, comunitária. Ali, leitura e escrita não se limitavam a uma técnica, mas eram entendidas como atos cognitivos, experiências grupais que implicavam a tomada de consciência coletiva. Elas implicavam uma intervenção do real e o empoderamento desses grupos. Ele vai dizer, assim, que uma coisa é estabelecer contatos, outra é ter de fato uma comunicação diferente da “extensão bancária” - aquela em que você vai e deposita algo no outro, como se o outro fosse só ausência e débito e eu fosse só plenitude e crédito. É uma visão singular de extensão, de comunicação, que ultrapassa o mero contato com o diferente, e se torna um diálogo entre diferentes e entre iguais.
Como Paulo Freire enxergava a conexão entre educação e política?
O que é a expressão política? Política vem de polis, remetendo à construção da cidade. E o que é a cidade? É o território em que diferentes e desiguais vivem e convivem. Paulo Freire diz que não existe educador que eduque sem tomar partido. E aqui não me refiro a partido no sentido da legenda. Sempre que desenvolvemos um tema, um conteúdo, um currículo, está implicado um projeto de construção do Estado e da sociedade. E que sociedade queremos? Uma sociedade em que as condições de dignidade sejam atendidas, com o bem-estar social extensivo a todos. É uma questão político-pedagógica. Por isso o movimento “Escola sem Partido” ataca tanto a figura de Paulo Freire, propondo recorrentemente projetos que retiram dele o título de Patrono da Educação Brasileira. Paulo Freire falou aqueles absurdos que lhe atribuem? Não. Mas ele tem uma visão de educação que é de construção do bem comum. Quais são os grupos que atacam Paulo Freire? Os mesmos que defendem a Escola Sem Partido, que defendem que os valores da família devem se sobrepor aos valores republicanos, a uma escola laica para as diferentes classes sociais. O homeschooling ataca Paulo Freire porque defende o isolamento das crianças no ambiente da família, para que não entrem em contato com os mais pobres. Enfim, são grupos excludentes e elitistas que atacam uma educação pública em que o oprimido seja acolhido, independentemente do seu mérito e poder econômico. Tal concepção de educação como direito e bem comum é insuportável para esses grupos, que querem transformar todas as esferas da vida em mercadorias. O homeschooling contraria o projeto republicano. Não estou falando de comunismo e socialismo, mas do projeto que está na nossa constituição, de construção de uma esfera pública, admitindo que algumas áreas da vida social são essenciais para que tenhamos progresso econômico com desenvolvimento social. É uma ideia antiga, na verdade liberal, de que não existe progresso econômico sem desenvolvimento social. Mas dentro do pensamento liberal há quem entenda que devem ser transformadas em mercadoria todas as esferas da vida social, particularmente quando o sistema vive crises no seu modo de produção e enfrenta a necessidade de regulação. É nesse sistema que vivemos, e é dentro dele que precisamos pensar as disputas narrativas e de projetos de sociedade: Muitos dos direitos alcançados no capitalismo central não são aferidos nos capitalismos periféricos. Precisamos fazer essa leitura para dialogar na construção de uma sociedade republicana, que respeite cidadãos e garanta a todos um espaço na sociedade. Não existe progresso sem inclusão social, não existe progresso econômico sem a inserção de todos na ordem social. É essa a ordem que temos. Como faremos para torná-la mais includente?
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