Artigo foi publicado no Jornal Folha de São Paulo (21/10/2021), na coluna Opinião.
Fronteiras e barreiras, que nos encerram na segurança de um “território familiar", também podem se tornar prisões e muitas vezes são defendidas além da razão ou da necessidade. Exilados cruzam fronteiras, quebram barreiras de pensamento e de experiência.
Edward W. Said (ativista político e crítico literário palestino)
O que conecta Síria, Iraque, Afeganistão e Eritreia? O que une o menino sírio Aylan Kurdi, a menina salvadorenha Valéria Ramirez e o jovem Zaki Anwari, promessa do futebol juvenil afegão que despencou do trem de pouso de um avião da Força Aérea dos EUA? Esses cenários e seus personagens estão conectados pela necessidade de fuga. Estamos imersos numa crise humanitária sem precedentes e que vai deixar uma marca tenebrosa nesse, já demasiadamente longo, capítulo da nossa história. O recente agravamento da crise no Afeganistão potencializa ainda mais uma situação insustentável.
O refúgio contemporâneo exige iniciativas que estão para além dos Estados em âmbito nacional e supranacional e interpela a sociedade como um todo: o acolhimento e a proteção dos refugiados é, também, responsabilidade de diferentes esferas regionais e locais de exercício do poder e, sobretudo, da sociedade civil —organizações não governamentais, igrejas, associações, instituições de ensino em geral e universidades em particular. A ameaça a determinados institutos e áreas de pesquisa e docência não é dissimulada pelo novo governo afegão ainda em construção, particularmente responsável pela vulnerabilização das mulheres no interior da universidade.
É nesse sentido que se articula, no âmbito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um programa de "Refúgio Acadêmico", cujo propósito é favorecer o acolhimento humanitário de acadêmicos, particularmente acadêmicas afegãs, refugiadas ou apátridas, e seus familiares, face à situação de grave violação de direitos humanos em curso no Afeganistão. Nossa proposta consiste no acolhimento de membros da comunidade acadêmica, principalmente as mulheres, por meio da concessão de bolsas de mestrado, doutorado, pós-doutorado e de professor visitante. Promovemos uma petição no âmbito da Cátedra Sérgio Vieira de Mello da Unicamp/Acnur, solicitando a aprovação de corredores humanitários para cidadãos/as de origem afegã, que alcançou mais de 30 mil assinaturas.
Com o apoio da cátedra, da Diretoria de Direitos Humanos da Unicamp e do gabinete do reitor pudemos, em Brasília, instaurar diálogo com alguns ministérios e com a Capes. Essa articulação da universidade com o poder público se faz fundamental face à urgência dessa situação humanitária e da necessidade de uma somatória de ações e, porque não, de estratégias geopolíticas para viabilizarmos esse acolhimento.
O acolhimento de acadêmicos em situação de risco, parte da experiência histórica da Unicamp, é percebido como mais um mecanismo de construção de redes internacionais cruciais para a própria vida universitária para além de ampliar nossas fronteiras, especialmente as culturais, e nos conectar à melhor tradição de universidades democráticas que acolhem e protegem aqueles que estão sob ameaça.
A Unicamp, desde sua origem, está comprometida com valores que deveriam nos unir para a construção de um mundo mais justo: a defesa da ciência, o acolhimento e a celebração das diferenças, o combate às desigualdades e o desenvolvimento humano na sua forma mais completa.
Antonio José Meirelles
Reitor da Unicamp
Adriana Nunes Ferreira
Professora do IE/Unicamp e chefe de gabinete adjunta
Ana Carolina de Moura Delfim Maciel
Departamento de Multimeios/Unicamp e presidenta Cátedra Sérgio Vieira de Mello/Unicamp
Omar Ribeiro Thomaz
Departamento de Antropologia/Unicamp
Silvia Maria Santiago
Diretora da Diretoria Executiva de Direitos Humanos/ Unicamp
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