O ano de 2022 marca a celebração dos 70 anos de vida e das cinco décadas de carreira do multiartista pernambucano Antonio Nóbrega. Ele chega à Unicamp em março para uma programação de seis meses no Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente, sob a coordenação do Instituto de Estudos Avançados (IdEA). Mestre da dança, da música, do teatro e da poesia, Nóbrega volta à Universidade – onde atuou como professor no Instituto de Artes – incumbido da missão de ampliar o holofote sobre a cultura popular brasileira na contemporaneidade.
Brasisbrasil é o título do livro que está escrevendo, fruto de décadas de pesquisas, e onde questiona a suposta diversidade cultural que mantém o país unido em sua heterogeneidade. “Nós nos deixamos levar por uma espécie de inconsciência conceitual em relação à cultura brasileira. Nos regozijamos muitas vezes em afirmar que o Brasil é um país com diversidade cultural. Há diversidade, mas, ao mesmo tempo, temos uma unidade cultural popular. Carimbó, tambor de crioula, batuque paulista e coco de roda são tão diversos quanto homogêneos. Precisamos entender por que isso é assim. É o que pretendo mostrar nesses encontros.”
A residência artística será composta por uma série de 12 reuniões presenciais e quinzenais, intitulada Brasisbrasil – ciclo de encontros com Antonio Nóbrega, a ser iniciada em 15 de março, no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Haverá uma parte prática, com oito oficinas de dança, poesia, música e teatro na sede do IdEA, e também encontros virtuais. Dois deles serão feitos diretamente de Portugal, onde estará em maio para pesquisas sobre a cultural popular lusitana e sua relação com o Brasil.
Nóbrega se disse empolgado com a residência e falou para o Portal da Unicamp sobre como ela despertou a vontade de compartilhar os resultados de suas pesquisas. “Estou muito altruísta, além de animado, para esse evento”, explicou Nóbrega. “Esse altruísmo vem dos meus 70 anos e dos 50 de carreira, mas vem também de uma coincidência, que é a elaboração de um livro. É um longo ensaio sobre o mundo cultural popular, especificamente sobre as manifestações cênicas, que pretendo lançar neste ano”. A experiência na Unicamp será, para ele, o momento ideal para apresentar os tópicos mais importantes do livro.
Entre 1985 e 1991, Nóbrega foi professor de danças regionais brasileiras no Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. O trabalho docente ocupava um tempo precioso para o desenvolvimento de sua carreira artística, motivo pelo qual abandonou a atividade acadêmica. Nesse período viu-se motivado a “gramaticalizar”, como define, o universo das danças brasileiras, mas sentia que isso demandaria um intenso trabalho de pesquisa nas ruas, terreiros e rodas de dança. Retomar esse projeto no ano em que completa 70 anos e em que volta à Unicamp é, em suas palavras, uma empreitada “muito alvissareira”. “Saí da Universidade com uma tarefa, com uma busca, e hoje chego com a resposta.”
Contribuições da academia
Uma das formas de se superar as limitações impostas pela cultura de massa para a disseminação da cultura popular, de acordo com Nóbrega, seria por meio do fomento à codificação de seu universo simbólico, lúdico e sensorial. Para ele, a universidade brasileira poderia se colocar na vanguarda desse papel, incorporando, por exemplo, as poéticas populares e a literatura de cordel nos currículos. “Uma instituição comprometida com a cultura, não só do Brasil, mas com a cultura brasileira, e faço uma distinção entre ambas, deveria dedicar um espaço maior à apreensão, ao estudo, à pesquisa e à investigação do mundo cultural popular.”
Para Nóbrega, não existe cultura popular no Brasil que não seja afro-brasileira, mas a cultura escravagista, que por séculos foi hegemônica, somada à amplificação da cultura de massa, prejudica a compreensão da riqueza que aportou no país com os africanos.
“Muito da desordem brasileira vem do escravagismo, da forma como formamos esse país, da maneira abjeta com que foram tratados os escravizados e, pior, quando houve a abolição, como eles foram largados, dejetados, nas ruas brasileiras”, afirmou. “O povo negro e mestiço tem uma história cultural muito rica que precisamos entender. Acho que a cultura de massa, globalizada, coloca uma névoa no sentido de atrapalhar. A proximidade excessiva com a cultura americana traz, às vezes, esse embaçamento.” No ensaio que prepara, Nóbrega dará destaque ao elemento catalizador representado pela presença africana no Brasil, e especialmente à cultura banto, vinda com escravizados provenientes das regiões do Congo e de Angola.
A vinda do artista pernambucano ocorre após um ano de atividades suspensas do Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente, em decorrência do agravamento da pandemia da Covid-19. O coordenador do IdEA, Christiano Lyra, destacou a importância de contar com uma grande figura das artes brasileiras, com múltiplos talentos, para o retorno das atividades presenciais na Universidade. “Temos muita expectativa com essa participação do Nóbrega, é uma motivação para esse renascimento, e tem tudo para ser uma interação muito rica.”
Os eventos são gratuitos e abertos à comunidade da Unicamp, e também ao público externo interessado em arte e cultura popular brasileira. A programação inclui uma interação com professores e pesquisadores em discussões teóricas no modelo remoto. As inscrições para Brasisbrasil – ciclo de encontros com Antonio Nóbrega já estão abertas, e os candidatos interessados em participar da seleção para as oficinas poderão também se inscrever no site do IdEA.
“Há uma série de circunstâncias muito felizes neste ano, 200 anos da Independência, 100 anos da Semana de Arte Moderna. Nóbrega, como intérprete de um campo tão vasto de manifestações populares brasileiras, traz a referência de que somos um povo, temos muito em comum”, resumiu o coordenador do IdEA.
Lyra, que é professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC), enalteceu o papel desempenhado por Antonio Nóbrega no Movimento Armorial, liderado pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna (1927-2014) no começo dos anos 1970, e sua trajetória nos últimos 50 anos, com espetáculos premiados e apresentações no Brasil e no exterior.
Imersão nas manifestações populares
Nascido em Recife, em 1952, Nóbrega começou a se envolver com as artes aprendendo o violino, o que o levou à Orquestra de Câmara da Paraíba e à Orquestra Sinfônica do Recife no final dos anos 1960. Em 1971, Suassuna o convidou a integrar o Quinteto Armorial, precursor na criação de uma música de câmara brasileira de raízes populares. O grupo, que lançou quatro discos entre 1974 e 1980, estreou nos palcos em 1972, marcando o início da carreira de Nóbrega. Antes de se tornar um armorial de rabeca na mão, curiosamente, Nóbrega desconhecia a exuberância da cultura popular que o circundava em Pernambuco, dedicando-se a uma formação clássica.
“Ariano achava que havia uma movimentação já muito descaracterizadora da cultura brasileira. Ele defendia uma forma de apresentarmos a cultura brasileira por meio da assimilação do que chamo de mundo cultural popular ou cultura popular. No caso da música, seria nos dedicarmos à escuta das bandas de pífano, aos toques de viola, aos cantos populares, aos cantadores do cavalo-marinho, às rezadeiras etc. Ele se perguntava sobre como poderíamos recriar isso, ampliar, criar mais significados”, recordou Nóbrega.
Na carta de recomendação que escreveu para a contratação de Nóbrega na Unicamp, em 1985, Ariano Suassuna elencava suas qualidades e sugeria que a Universidade teria muito a ganhar com a presença do jovem professor em seu corpo docente. “Na qualidade de ator-dançarino, de músico e de mímico, não conheço, no Brasil, ninguém mais completo do que Antonio Carlos Nóbrega de Almeida. Poderá haver quem o seja tanto: mais, não.”
Suassuna e suas contribuições para a cultura brasileira no Movimento Armorial, o imaginário musical popular brasileiro, o passo sincopado da dança, a poesia nas manifestações cênicas populares, Mário de Andrade e a Semana de 1922, as novas epistemologias culturais brasileiras, os diálogos e desencontros entre duas correntes de cultura que frequentam o Brasil são alguns dos temas que estarão presentes neste semestre de atividades de Antonio Nóbrega na Unicamp.
Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente com Antonio Nóbrega
Brasisbrasil – ciclo de encontros com Antonio Nóbrega
Datas: 15/03, 29/03, 12/04, 26/04, 31/05, 14/06, 28/06, 12/07, 26/07, 09/08, 23/08 e 06/09.
Horário: 10h às 12h
Local: Auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp
Endereço: Rua Albert Sabin, s/nº, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, Campinas
Realização: Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp
Oficinas com Antonio Nóbrega
Datas: 12/04 e 26/04 (Poesia); 31/05 e 14/06 (Dança); 28/06 e 12/07 (Teatro); e 26/07 e 09/08 (Música)
Horário: 14h30 às 16h30
Local: Instituto de Estudos Avançados (IdEA)
Endereço: Avenida Oswaldo Cruz, 301, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”, Campinas
Realização: Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Unicamp
Acesse aos formulários de inscrições das oficinas:
Poesia rimada popular brasileira
Uma linguagem brasileira de dança
Matrizes populares para um teatro brasileiro
O imaginário musical popular brasileiro