A primeira pesquisadora surda de pós-doutorado da Unicamp, Patrícia Luiza Rezende-Curione apresentou, nesta segunda-feira (23/5), os resultados de sua pesquisa, realizada na Faculdade de Educação (FE). A apresentação foi feita em Libras e transmitida pelo canal da FE no YouTube com tradução para o Português pela Central de Intérpretes e Tradutores de Libras (Tils) da Unicamp. Com o título “Epistemicídio nas políticas públicas em educação de surdos”, o estudo levantou dados da participação de pesquisadores e ativistas surdos na elaboração de políticas educacionais para a própria comunidade. Patrícia mostra que pessoas surdas têm dificuldade em protagonizar a criação de políticas, e sua produção científica sobre a educação para surdos ainda encontra resistências. Em oposição ao ensino especial em escolas comuns, ela defende o ensino bilíngue em Libras e Português realizado em escolas de surdos.
“No Brasil, temos pluralidade na educação. Há a educação indígena, quilombola, rural. Por que não pode haver educação de surdos? Não precisamos de uma educação especial, mas de uma educação com bases linguísticas”, argumenta. As escolas para surdos, onde se realiza o ensino bilíngue, são espaços em que os alunos, inseridos em uma cultura própria pautada por uma língua em comum, podem se comunicar sem barreiras linguísticas. Por isso, colocá-los em classes convencionais os privaria da oportunidade de conviver com seus semelhantes. “Muitos mestres e doutores surdos já demonstraram a importância de estar em comunidade linguística”, afirma.
Patrícia apoia-se no conceito de epistemicídio, criado pelo sociólogo português Boaventura de Sousa Santos e recuperado no contexto brasileiro por autoras como Sueli Carneiro e Djamila Ribeiro. Ele faz referência ao apagamento das contribuições dos grupos minoritários, como negros, indígenas e pessoas com deficiência, na construção de conhecimentos. Assim, a educação bilíngue para surdos caminha em passos lentos no país.
“Lutamos contra imposições de políticas educacionais que partem de um imperativo de acesso a todos sem que as diferenças linguísticas e culturais sejam consideradas”, pontua. Em sua análise, Patrícia recuperou o histórico da participação de surdos na elaboração de políticas educacionais, desde a realização do Congresso Latino-Americano de Educação Bilíngue para Surdos (1999), quando foi elaborado o documento “A educação que nós, surdos, queremos”, até a inclusão do tema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), com a aprovação da Lei 14.191/2021.
Ela analisou documentos oficiais do Ministério da Educação (MEC) e do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), notas técnicas e atas de audiências públicas, discursos de membros do legislativo, projetos de leis, emendas e manifestações de apoio e de contrariedade a iniciativas em prol do ensino bilíngue. Também fez o levantamento de números que mostram as limitações de acesso dos estudantes surdos à educação. Seus dados mostram que a idade média de ingresso dos alunos surdos no Ensino Fundamental é de 12 anos, no Ensino Médio, de 19 anos, e no Ensino Superior, de 31 anos.
Na Educação de Jovens e Adultos (EJA), a pesquisadora identificou crescimento na matrícula de surdos. Entre 2007 e 2020, a porcentagem de matrículas de alunos ouvintes caiu de 9,5% para 6,3%. Já entre estudantes surdos, o percentual subiu de 11,7% para cerca de 39%. “Por que existem tantos surdos no EJA? Por que eles não estudaram nas séries correspondentes a suas idades? As políticas educacionais inclusivas não estão funcionando para surdos”.
Pesquisadora e ativista
Natural de Caeté (MG), Patrícia ficou surda em consequência de uma meningite na infância. Crescendo em uma família ouvinte, desenvolveu-se bilíngue, dominando Libras e Português. No entanto, viveu a imposição da oralidade em seu processo escolar e só conseguiu conviver sem barreiras com outras pessoas surdas aos 20 anos. “Fui vítima desse epistemicídio na minha infância. A convivência com a comunidade surda foi o catalisador do meu desenvolvimento”, relata a pesquisadora, que pensa na realidade das crianças surdas do presente ao desenvolver suas pesquisas.
Hoje, ela acumula 25 anos de experiência na área, tendo atuado em escolas da rede pública, na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais e na Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS). Atualmente, é professora do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e ativista pela educação bilíngue para surdos. “Em minha pesquisa está meu lugar de fala como surda, professora, pesquisadora e ativista. Não há como separar uma da outra, todas são partes de mim”.
A Unicamp foi escolhida para seu estágio de pós-doutorado por ser uma referência na área. A pesquisa foi supervisionada pela professora Regina Maria de Souza, que participou da apresentação como mediadora. A docente avalia a experiência de supervisão como bastante enriquecedora. "É um desafio para uma pessoa nascida ouvinte acompanhar o percurso de uma líder renomada e experiente, e que colaborou com importantes vitórias junto à FENEIS. A pesquisa deve conversar com a realidade. Agradeço à Patrícia por me lembrar que não posso apenas fazer teoria, mas que devo acompanhar essa comunidade e seus apelos”, reflete.