A cada três dias, a comerciante Cirlene Maia percorre 30 quilômetros até o município de Benjamin Constant e avança até o Peru para comprar gasolina, que revende em garrafas pet (popularmente conhecidas como "cocão") aos moradores de Atalaia do Norte, cidade localizada no extremo oeste do Estado do Amazonas. No município, faltam políticas públicas e serviços básicos, em parte supridos pelos próprios moradores. A cidade, segundo representantes políticos e lideranças indígenas, pode enfrentar um colapso social.
Acima, repórteres no porto de Atalaia do Norte; abaixo, vista parcial da região central da cidade: atenção da mídia mudou rotina dos habitantes, que sofrem com a ausência do poder público (Fotos: Antonio Scarpinetti)
Em seus relatos, a população local oscila entre apontar a aparente tranquilidade do pequeno município e indicar as mazelas da região. A fragilidade de políticas públicas para a população indígena, que quase dobrou nos últimos anos, é um dos problemas mais graves. Além disso, não há saneamento no município, que depende de Manaus para o abastecimento de suprimentos básicos. Os moradores observam com estranheza as atenções da imprensa nacional e internacional ao seu cotidiano.
É dessa cidade que partem as embarcações para a Terra Indígena Vale do Javari. Por anos, o indigenista Bruno Pereira alternou sua residência entre Atalaia do Norte e Belém (PA), onde mora sua mulher. Para Atalaia do Norte, voltaria com o jornalista inglês Dom Phillips. Ambos foram assassinados no dia 5 de junho. Os corpos, que foram encontrados no dia 15, começam a ser periciados hoje (17) em Brasília.
Às margens do rio Javari, Atalaia do Norte tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Estado do Amazonas e o terceiro pior do Brasil. O cálculo do IDH leva em conta a renda per capita e índices de educação e saúde. “Para nós que nascemos e moramos aqui, é ruim ir a conferências e ouvir que nosso município é o pior para se viver. Temos tranquilidade aqui, podemos dormir com as janelas abertas, mas há mazelas”, aponta o vereador Marcos Alves Filho.
Segundo ele, são inegáveis os problemas da cidade. “Somos carentes de políticas públicas para tudo. Estamos na fronteira. Vivemos na Amazônia, que é rica, mas temos um povo pobre pedindo esmola do governo”.
A geração de renda é o problema mais urgente, avalia. “O índice de desemprego aqui é alto, assim como no Estado como um todo. O governo, federal ou estadual, é muito ausente. O governo municipal, que é o ente mais pobre, não consegue conduzir as políticas públicas necessárias para essa região de fronteira”.
O setor primário, segundo o vereador, tem potencial, mas está desassistido. O péssimo estado das estradas, essenciais para o escoamento de produção, é uma das principais reclamações dos pequenos produtores de banana e açaí.
Prefeitura e comércio são as fontes de emprego
Atualmente, as principais fontes de emprego são a Prefeitura Municipal de Atalaia e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), mas os moradores criticam as indicações políticas para os cargos. Além do serviço nos órgãos públicos, as demais atividades de trabalho majoritariamente são no comércio, especialmente o informal.
Próximo ao porto, há um movimento intenso de comerciantes que compram e revendem alimentos. Barcos com produtos perecíveis – hortaliças, frutas e verduras – abastecem as feiras e pequenos armazéns.
Peruano de Iquitos, Kayan Caballero, de 33 anos, chegou a Atalaia do Norte há dez anos e é um dos comerciantes do mercado municipal. Ele compra frutas e verduras do município vizinho, Benjamin Constant, e produtos não perecíveis das embarcações que chegam de Manaus a cada 15 dias. “Vem de tudo: arroz, açúcar, feijão. O que mais sai na feira são frutas, cebola, batata, tomate. Vim pra cá porque lá [no Peru] eu trabalhava na mesma atividade, mas o ponto não era meu”, conta.
Moradora da comunidade ribeirinha de Jaburu, a cerca de seis horas de barco de Atalaia, Álida Freitas, de 50 anos, monta diariamente sua banca em frente ao mercado. Com o marido, vende hortaliças e frutas locais, que compra de embarcações no porto. “O barco traz macaxeira, verdura, pimentão, maxixe, tudinho. Compramos e vendemos aqui”, diz.
O barco chega aos domingos. Álida conta que o movimento de clientes é instável. “Tem dias que vendemos, tem dias que fica parado. É nosso único trabalho, se não vendemos, não temos o que comer”.
O casal de feirantes veio para a cidade para propiciar estudo aos filhos. Nas comunidades ribeirinhas e nas aldeias indígenas, a educação vai até o sexto ano do Ensino Fundamental. “Viemos para cá porque eles terminaram o estudo lá e precisavam estudar mais. Foi difícil vir, porque lá já tínhamos casa. Tivemos que vender umas coisas”. Uma pequena pausa no relato das dificuldades surge quando, com um sorriso no rosto, ela conta que a filha mais velha está cursando Nutrição.
O crescimento da população indígena
A realidade de Álida é também a dos povos indígenas, cuja população cresceu em Atalaia do Norte nos últimos anos. “Estamos com muitos indígenas na cidade. Em 2020 eram 1.200, hoje são 2.300. Em oficinas jurídicas, tentamos fazer com que conheçam seus direitos na questão social e na educação. São cinco povos indígenas, e o município não está preparado para atender a todos em todos os aspectos, por exemplo na questão da educação bilíngue. Muitos vêm das aldeias em busca de educação”, afirma Almério Wadick, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Cesar Mayuruna é um dos dois vereadores indígenas da Câmara Municipal de Atalaia do Norte. Ele reclama mais atenção à educação nas aldeias, que visita com frequência, e onde a estrutura é precária, faltando até material didático. “Nossa luta é por educação de qualidade. O Estado não prioriza a construção de escolas nas aldeias. O município oferece até o sexto ano, mas e a continuidade? O aluno não consegue terminar na aldeia e migra para cá. E aqui é difícil, não tem apoio financeiro, alimentação. Se tivesse Ensino Médio nas aldeias, ele viria só para tentar o vestibular. Nosso sonho é ter enfermeiros, técnicos, dentistas, advogados e geógrafos indígenas. A gente tem essa esperança”.
Mayuruna é um dos dois vereadores indígenas na Câmara. A representação dos povos originários já foi maior. No mandato passado, a bancada indígena era composta de oito vereadores. Para o vereador, é fundamental recuperar essa presença.
“Nós, indígenas, sabemos de nossas dificuldades. Lutamos por legítimos representantes dos povos indígenas - marubos, kanamari, matis, mayurunas, korubo. Futuramente, teremos um prefeito indígena. Tenho orgulho de ser da bancada indígena. Sou um vereador pela causa indígena”.
Atualmente, Mayuruna organiza um curso de formação de motoristas fluviais para indígenas, em parceria com a Marinha. Eles têm como meio de transporte o barco, mas são autuados com frequência por falta de habilitação. A atividade também poderá possibilitar uma fonte de renda a eles. Serão formadas cerca de 200 pessoas.
Ambulante sana a falta de combustível
Em Atalaia do Norte, existe apenas uma agência bancária, e a rede de internet é precária. A cobertura 4G funciona - com lentidão - por meio de uma única operadora. Enviar um áudio no Whatsapp pode ser uma tarefa de alguns minutos. O problema escancara a desigualdade da cobertura da rede móvel no país e indica o prejuízo sofrido pelas crianças atalaienses com o ensino remoto.
Outro problema é a ausência de postos de combustível. Há cerca de oito anos, Cirlene Maia é uma das responsáveis por sanar essa demanda. “A gente pega a estrada até Benjamin Constant, chega lá, pega a embarcação e vai pro Peru pegar a gasolina. A gente vende bastante gasolina aqui, a garrafa pet sai a R$15 reais”, diz ela, que sustenta os três filhos com a atividade.
Para ir e voltar do Peru, ela gasta em torno de R$170. A lata de gasolina com 20 litros custa R$125. O movimento na pequena banca, localizada na entrada da cidade, é intenso. A população usa massivamente motocicletas, o veículo com o melhor custo-benefício.
Esperança de receber atenção do Poder Público
Nos relatos da população, destaca-se o estranhamento diante do movimento incomum de agentes da imprensa e policiais, que lotaram os poucos hotéis e restaurantes da cidade. As entrevistas geram alguns desconfortos, mas, com isso, eles esperam cobrar o Poder Público.
“Se morar no Brasil não é para iniciantes, imagina morar na fronteira”, reflete o vereador Marcos. Ele espera que o momento sirva para chamar a atenção do governo federal, que, segundo ele, está ausente na região de fronteira, o que acaba se refletindo em problemas para a cidade. "Quando o Estado não está presente, o poder paralelo impera. Se o Estado não está, vira uma terra sem lei”, conclui.