Líder indígena responsabiliza governo por invasões e assassinatos

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As investigações acerca dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, as ameaças aos povos indígenas e o papel às avessas exercido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) são analisados, em entrevista ao Portal da Unicamp, por Kora Kanamary, membro da Associação dos Kanamarys do Vale do Javari (Akavaja), cuja sede fica em Atalaia do Norte, cidade do oeste amazonense. 

“A gente não tem segurança”, denuncia a liderança. Kora teme pela vida de parentes depois que policiais, Forças Armadas e imprensa deixarem a região.

Desde o desaparecimento do indigenista e do jornalista inglês, no dia 5 de junho, integrantes da Akamaja e de outras associações da União dos Povos do Vale do Javari (Univaja) protagonizaram as buscas. 

A mobilização forçou a vinda de equipes policiais e das Forças Armadas. Ademais, os indígenas foram fundamentais para desvendar elementos chave nas buscas, como encontrar os pertences pessoais dos desaparecidos e a embarcação de Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, que confessou participação no crime. 

O último passo da investigação foi a prisão, no sábado (18), de Jeferson da Silva Lima, terceiro suspeito de envolvimento nas mortes de Bruno e de Dom, cujos corpos foram identificados por peritos da Polícia Federal (PF). Ambos foram executados a tiros. 

 "O Javari é um rio sem lei", afirma Kora, que clama para que o Estado faça seu papel. “É preciso fortalecer as bases da Funai, garantindo a proteção de servidores e de indígenas”. 

A liderança denuncia que as invasões à Terra Indígena (TI) do Vale do Javari se intensificaram a partir do governo Bolsonaro. 

Na avaliação de Kora, cortes no orçamento e perseguições a servidores, entre os quais Bruno, são a marca da Funai de hoje. “Ela [os dirigentes do órgão] fala a mesma língua do governo federal, que é a do ódio ao povo brasileiro, principalmente aos povos indígenas, que são assassinados todos os dias”.

Kora critica também a nota da PF apontando que não há mandantes do duplo homicídio, repudia a tentativa da Funai de criminalizar a Univaja e fala sobre a resistência dos povos do Javari na defesa do território. Leia abaixo a íntegra da entrevista. 

 

Portal da Unicamp - Depois da confirmação dos assassinatos, o que vocês esperam da investigação e da situação dos povos indígenas do Javari?

Kora Kanamary – Estamos muito preocupados com toda essa situação. Ficaremos sozinhos novamente. Como será a nossa segurança depois que as autoridades deixarem a região? 

Até agora, apenas fizeram as buscas e prenderam os responsáveis. Em nenhum momento as autoridades fortaleceram a segurança, incluindo a dos servidores da Funai nas quatro bases de proteção territorial, que são Curuçá, Quixito, Ituí e Jandiatuba. 

Eu sinto vergonha de toda essa situação. Vai ficar nisso? Defendemos a floresta - que é importante por causa do aquecimento global -, e não recebemos um olhar, principalmente para a Terra Indígena do Vale do Javari, que é tão especial. 

Não há outra terra indígena com tantos povos autônomos da floresta, os “isolados”, como os brancos chamam. A terra precisa ser protegida pelas forças policiais. As bases precisam ter autonomia para a defesa dos povos indígenas.

audiodescrição: imagem colorida, O líder indígena Kura Kanamary durante a entrevista.(Foto: Antonio Scarpinetti)
O líder indígena Kora Kanamary durante a entrevista: “O Javari virou um rio sem lei” (Foto: Antonio Scarpinetti)

A Justiça determinou que a Funai retire a nota que ataca a Univaja e que garanta a segurança dos servidores e povos do Javari. Como vocês avaliam a atuação do órgão hoje?

Kora Kanamary – Como a Funai pode fazer uma coisa desta, denunciando e criminalizando uma organização indígena, a única que tem defendido o território e o que é garantido por lei? O governo federal é culpado pelo que vem ocorrendo com alguns servidores da Funai. 

O Bruno é o maior exemplo. Ele respondia a processos administrativos por estar promovendo - e fazer - o que era legal. Ele defendeu a Amazônia com unhas e dentes. A gente fica muito triste e com vergonha da Funai que temos hoje. 

A Funai não representa, hoje, os povos indígenas. Não reconhecemos essa que está aí. É um órgão criado para defender os direitos dos povos indígenas, para dar atenção aos povos indígenas. Não é o que vemos hoje. 

A Funai é filha e fala a mesma língua do governo federal, que é a do ódio ao povo brasileiro, principalmente aos povos indígenas, que são assassinados todos os dias.  

Nós, povos do Vale do Javari, ficamos revoltados pelo que a Funai está fazendo com a gente e com o movimento indígena.

Qual tem sido o papel do órgão?

Kora Kanamary – É um papel ao contrário. Eu sempre digo que, depois da luta pela demarcação, a terra ficou desprotegida. De norte a sul, são altos os índices de invasões. São garimpeiros, fazendeiros, madeireiros, traficantes, caçadores, pescadores, missionários. Quem vai aguentar tudo isso? 

A aldeia Jarinal é a mais atingida. Os garimpeiros estão todos os dias aliciando os parentes. E lá tem povo de contato recente. Já fizemos várias denúncias ao Ministério Público Federal (MPF). E o que o Estado faz? Nada. O que o Estado espera para agir? 

É preciso um fato como o que aconteceu com o nosso parente Bruno para fazer um barulho? E depois? Sumir de novo? Quem fica protegendo a terra, neste momento e nas futuras gerações, somos e vamos ser sempre nós, povos indígenas. Vamos lutar até o fim.

audiodescrição: imagem colorida, nomes dos associados e ao lado cartaz de Luto com imagem de Bruno e Dom afixado na fachada da sede da União do Povos do Vale do Javari.(Foto: Antonio Scarpinetti)
Cartaz afixado na fachada da sede da União dos Povos do Vale do Javari: assassinatos de Bruno e Dom causaram comoção entre os indígenas (Foto: Antonio Scarpinetti)

Você acredita que o governo tem incentivado esses grupos ilegais? No momento, como estão as ameaças aos povos indígenas? 

Kora Kanamary – Eu, Kora, como liderança do meu povo, digo que estou sempre preparado para morrer. Quando meus velhos, os pajés, disseram que eu ia ser um guerreiro, falaram: “tu vai lutar por nós lá fora e nós vamos fazer a pajelança pra ti”. Virei um soldado para lutar aqui fora. Um soldado não desiste da luta. 

Minha missão é reivindicar os direitos garantidos por lei. Ninguém está pedindo favor, o Estado tem que fazer o seu papel. 

Os invasores ganharam muita força desde a entrada de Bolsonaro na Presidência. Suas falas e seu pensamento fortaleceram os agressores. Aumentou o número de invasões nas terras indígenas. 

Antes tinha invasão, mas a Funai estava lá, contava com algum recurso. Havia fiscalização da PF e do Exército. Quando entrou, Bolsonaro cortou todo orçamento. A Funai está doente. Há uma base presente, mas não faz proteção.

Nossa luta é para assegurar a vida dos parentes isolados que estão na floresta. Precisamos de paz. Tempos atrás, um parente chamado Kora Kanamari foi assassinado a facadas no alto do Taquari. 

Recentemente, o parente Pian Kanamari foi morto a facadas por proteger a sua terra. Um marubo, protegendo a terra no Ituí, levou tiros. Ele tem chumbo no peito. 

Houve o assassinato do Maxciel [Pereira dos Santos, funcionário da Funai morto em 2019], a base é constantemente invadida e atacada. Agora, essas mortes cruéis do nosso parente Bruno e do Dom. 

Quando começou essa escalada de violência?

Kora Kanamary – Nos últimos 10 anos, o rio Javari se tornou perigoso. É difícil de viver. É difícil de falar, mas temos falado. Eu moro na aldeia São Luís, fronteira com Peru. A região é muito perigosa. 

O Javari é um rio sem lei. É muito perigoso, comandado pelos narcotraficantes com armas potentes. 

Eu falo isso porque a gente vive ali, na beira do rio. A gente fecha os olhos e ouvidos, para viver melhor, porque você não pode falar. Eles estão dominando o território. 

Como vocês avaliam a nota da Polícia Federal, apontando, já no início da investigação, que não há mandante no caso dos assassinatos de Bruno e Dom?

Kora Kanamary – Quem assegura que esses assassinatos não tiveram mandante? Eu fico até sem palavras. É uma área perigosa, agora conhecida mundialmente por ganhar a atenção da mídia. 

Uma área que se tornou um dos maiores centros de comercialização de drogas. Essa é a nossa região. É falta de respeito encerrar [as investigações] e dizer que não tem mais coisa por trás.

audiodescrição: imagem colorida, manifestação de indígenas em Atalaia do Norte. (foto: Antonio Scarpinetti)
Manifestação de indígenas, no dia 13 de junho, em Atalaia do Norte: terras dos povos originários da região são alvo de invasores (foto: Antonio Scarpinetti)

Que providências os povos indígenas esperam e com que tipo de apoio contam para uma proteção mais adequada?

Kora Kanamary – Esperamos que o Estado garanta a força policial e reestruture as bases da Funai com recursos, com pessoal e com segurança. O presidente do órgão e o presidente da República desmontaram essas bases.

Queremos que o Estado garanta a sua presença, com policiais e o Exército para proteger esse território e a segurança do pessoal, porque não vai parar por aqui, vai continuar. 

Outra coisa que peço é que essa investigação não fique com a Polícia Civil. Que a PF assuma o caso e o transfira para outra delegacia, aqui não há nenhuma segurança. Eu faço esse apelo. 

A maioria da população diz que Atalaia do Norte é tranquila e pacata. Como vocês veem isso?

Kora Kanamary – No município de Atalaia do Norte, em 1996, quando teve a demarcação da terra, o próprio prefeito [Rosário] Galate falava que “índio bom era índio morto”. Ele dizia isso em público, na frente do Ministério Público. 

E quantos ataques aconteceram na base do Ituí... A gente morava aqui, numa Casa do Índio. Na época, a Funai era responsável pela saúde indígena, eram muitos pacientes. O prefeito acionou todo mundo para invadir a sede da Funai e tocar fogo. Não existe este negócio de município tranquilo.

Eu cresci aqui, vim para cá aos dez anos, fui mandado pelos parentes com a missão de falar português e defender os direitos dos indígenas. Eu conheço toda a situação. 

Ninguém conversa mais conosco, todo mundo nos olha como se fôssemos culpados. E aqui não tem ninguém culpado, ninguém aqui invade a terra dos outros. 

O que nós queremos é que nosso direito seja protegido, que nossos direitos de ir e vir e a liberdade de falar sejam garantidos, porque essa é a lei. 

O município hoje tem outro olhar para a gente, do tipo “esses índios só atrapalham”. Os culpados são eles. Não temos segurança. 

Essa minha missão é muito grande. Eu e o Beto Marubo [liderança indígena local] fazemos essa discussão sobre a proteção dos índios isolados em nível nacional e internacional. Não é fácil, é uma luta constante. A nossa denúncia é constante. O MPF e a PF sabem de tudo. 

O Bruno [Pereira] entregou tudo na mão deles, de fotos a provas. Quando saiu a lista dos ameaçados, nós denunciamos. Perguntamos: “doutora, você está vendo o que pode acontecer amanhã?”. 

A Justiça está muito atrasada nessa questão, veja o que ocorreu. Agora, temos que lutar para que as pessoas não entrem no nosso território para fazer bagunça. Sempre defenderemos a nossa terra. 

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Audiodescrição: imagem colorida, O líder indígena Kora Kanamary falando ao microfone com arco e flecha na outra mão e ao fundo um homem acompanhando com filmadora. (Foto: Antonio Scarpinetti)

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004