O governo federal está em guerra contra os seus biomas. Essa é a avaliação do historiador e professor da Unicamp Luiz Marques. Para ele, essa guerra ameaça a existência da humanidade. “A situação no Brasil é a pior possível”, avalia. Assassinato de lideranças indígenas e de ativistas ambientais integram a política de morte que está em curso. Para reverter a iminente inabitabilidade do planeta, é preciso aprender como os povos originários se relacionam com a natureza.
“O Brasil tem promovido, a partir de Bolsonaro, uma política de guerra contra a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta. Essa guerra está em curso e desperta muito menos atenção que a guerra da Ucrânia. É uma guerra ameaçadora do ponto de vida da sociedade, da biosfera e da continuidade do planeta”, diz Marques, autor do livro Capitalismo e Colapso, vencedor do Prêmio Jabuti de Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática de 2016.
Segundo o professor, essa guerra tem quatro motivos: a extração de madeira para comercialização, a substituição da floresta por pastagens para o agronegócio, as atividades de mineração e o tráfico de animais silvestres. “Para a conseguir esses objetivos, o governo transformou a Amazônia em um império do agronegócio, uma terra de ninguém, um território em que o crime organizado invade terras de indígenas, ribeirinhos, quilombolas e outros grupos que dependem da floresta para a sua cultura e para os seus modos de vida”.
Luiz Marques critica a visão de que esses projetos sejam necessários ao desenvolvimento. “Essa palavra 'desenvolvimento' nunca foi tão mal empregada. Os municípios que mais concentram cabeças de gado na Amazônia são os mais pobres do ponto de vista humano, os que têm maior número de casos de trabalho análogo à escravidão”.
A Amazônia está emitindo mais gases de efeito estufa do que absorvendo
À medida que avançam o extrativismo e o agronegócio, intensifica-se a degradação da Amazônia, que está perdendo seu papel na manutenção do clima global. Oito dos dez municípios que mais emitem gases de efeito estufa estão na região. “Emitem mais do que a Holanda, por exemplo. A Amazônia é responsável por 5,5% do PIB do Brasil e por mais de 50% das emissões. A política do Brasil é calamitosa no que se refere às emissões e às mudanças climáticas na região”, analisa.
A floresta, chama atenção, está emitindo mais gases do que absorvendo. Dentre os motivos, estão o desmatamento e as queimadas. Os dados a esse respeito foram mapeados em estudo coordenado por Luciana Gatti, pesquisadora do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Eles mostram que a floresta emitiu um bilhão de toneladas de dióxido de carbono [Co2] por ano devido às queimadas e conseguiu absorver apenas 18% dessa quantidade.
“A floresta está perdendo sua qualidade natural Quando emite mais CO2 [dióxido de carbono] do que absorve, isso significa que as árvores estão em um processo de aceleração da sua mortalidade e que estamos no limiar da destruição da Amazônia, mesmo que não derrubemos mais uma única árvore. Ela morre por ela mesma, transita para outro estado de equilíbrio. Isso tornaria inviável a cultura agrícola, mesmo a da soja. Aqueles que promovem a destruição estão cavando a própria cova. Isso é resultado de uma mentalidade em que a ganância prevalece sobre a razão”, analisa Marques.
Política de morte
Além da emergência climática, que ameaça a todos, cresce a violência contra aqueles que se opõem às atividades degradadoras e denunciam a violação de direitos humanos e do direito coletivo a um meio ambiente equilibrado. Conforme documento da Pastoral da Terra, a Amazônia brasileira concentrou 80% dos 35 assassinatos referentes a conflitos no campo em 2021. “Eles são causados diretamente pela política de extermínio dos povos e dos que tentam reagir a isso”, avalia Luiz Marques. E o número de mortes pode ser maior, pois há dificuldades de registro.
Em 2020, de acordo com a organização Global Witness, 165 pessoas foram assassinadas na Amazônia latino-americana. A região concentra três quartos dos assassinatos decorrentes da defesa da terra e da floresta no mundo todo. O recente assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips insere-se nesse contexto e chamam atenção para a urgência da proteção aos direitos humanos.
São eventos que fazem parte daquilo que Marques chama de “política de morte”, em alusão ao conceito de "necropolítica", proposto pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. O termo refere-se às mortes causadas pelos Estados em nome de uma ordem que reproduz o extermínio de determinados grupos. “O que está acontecendo no Brasil é uma catástrofe. É o crime organizado como política de governo”, diz Marques.
Os governos anteriores, avalia, negligenciaram o meio ambiente e as populações originárias e tradicionais, porém não no nível do atual. “Com Bolsonaro, não é uma negligência, a destruição é o foco central da política. Ela não acontece apesar do governante, mas por causa do governante. O Brasil passou a adotar uma política da morte, e o próprio Bolsonaro o diz. O que mais me aflige é que a sociedade não está reagindo à altura”.
Para evitar a morte do planeta, é preciso olhar para os povos indígenas
Conforme Luiz Marques, é inegável que a civilização ocidental, globalizada e capitalista, trouxe uma série de benefícios para a humanidade. “Mas esses benefícios foram obtidos a preços cada vez maiores, às custas da diversidade cultural, da biodiversidade, do sistema climático e das condições de habitabilidade do planeta”, diz.
A degradação é apontada por pesquisadores e organizações da sociedade civil desde os anos 1990. “Precisamos entender que esse modo de organização social não funciona. Ele é suicida, ecocida e biocida. Outros povos que não participaram desse processo têm muito a nos ensinar. Eles têm uma experiência de organização social que precisamos conhecer, pois são organizações que permitem a permanência da espécie no planeta”, avalia o professor.
Organizar-se e reagir à destruição da Amazônia e de outros biomas brasileiros é urgente, segundo ele. “Precisamos trabalhar para que essas atrocidades, incluindo os assassinatos, pelas quais o Bolsonaro é o principal responsável, não sejam manchete de jornal apenas por alguns dias. Precisamos reagir de maneira organizada”.
Para o professor, parceiros internacionais podem contribuir, por exemplo, boicotando as commodities brasileiras produzidas às custas do meio ambiente e da violência contra os indígenas, mas a maior responsabilidade é brasileira. “O mundo pode ajudar, mas a sociedade brasileira organizada precisa agir. Não podemos delegar a responsabilidade”.
Manoel Chorimpa, do povo Marubo do Vale do Javari (AM), é uma das lideranças que vêm atuando nesse sentido. Esperar nunca foi uma opção para os povos do Javari, que sofrem constantes ameaças e invasões.
Chorimpa integra a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). A organização existe há 15 anos e atua na defesa dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, em uma área onde a presença do Estado é insuficiente, resultando em constantes invasões por pescadores e caçadores ilegais, madeireiros, garimpeiros e grupos do narcotráfico. A Univaja denunciou o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips e tem cobrado o aprofundamento das investigações, bem como a proteção do território indígena.
“É difícil para quem não é indígena entender nossa relação com o território. O território indígena é um universo à parte, porque ali existem vidas que são importantes para a sobrevivência do planeta”, diz.
A natureza, para o seu povo, é parte de um ser supremo e deve ser preservada. “Nós, povos indígenas, somos responsáveis pela proteção das fontes de água, pelas árvores que ainda estão de pé, pelo equilíbrio do ecossistema. Deixar de dar importância a isso é um caminho para o colapso social”.