Paralisação da demarcação de terras indígenas, restrição orçamentária, perseguição a servidores e militarização compõem a realidade da Fundação Nacional do Índio (Funai). Segundo servidores, o órgão tornou-se uma “fundação anti-indígena”, em que vigoram constrangimentos das chefias nomeadas pelo governo Bolsonaro àqueles que buscam cumprir o papel de proteção e promoção dos direitos indígenas.
“A gente vê um esforço deliberado de desproteção dos direitos indígenas, especialmente o direito à terra”, diz um servidor da Funai, sob condição de anonimato.
Ele integra a organização Indigenistas Associados, responsável por elaborar um dossiê, em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O documento detalha o desmantelamento da política indigenista e o assédio institucional realizado pelo governo. “A Funai é um caso gritante da prática de destruição de políticas que foi desencadeada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019-2022”, aponta.
Uma das formas de dificultar o trabalho dos indigenistas, conforme o documento, foi a instituição de uma regra para a solicitação de viagens, que precisam ser requisitadas com 15 dias de antecedência. Na prática, a norma inviabiliza a atuação da Funai em situações de emergência. O pagamento de diárias também foi cortado, fazendo com que servidores tenham que pagar do próprio bolso para realizar o trabalho.
A indicação de pessoas sem experiência de atuação na política indigenista para cargos de chefia, segundo o servidor da Funai, soma-se à situação crítica da Fundação. “As chefias são trazidas justamente para controlar os servidores mais dedicados à defesa dos direitos indígenas para que não façam esse tipo de trabalho e para que sejam vigiados do ponto de vista ideológico”, aponta.
“Os funcionários são perseguidos, constrangidos e estão desanimados, com pouco estímulo e com muita dificuldade de vislumbrar um sentido para sua atuação dentro do órgão em que escolheram trabalhar”, diz ele.
Os povos indígenas, prossegue o servidor da Funai, estão há mais de 500 anos resistindo, mas há uma grave ameaça em decorrência da política anti-indigenista. “Nós estamos aliados a eles, tentando também resistir. Para o futuro, tenho certeza que conseguiremos reverter esse momento de grave ameaça às bases e fundamentos institucionais da política indigenista brasileira”, afirma.
O atual presidente da Funai, delegado Marcelo Xavier, foi nomeado pela presidência em 2019, contando com apoio da bancada ruralista. Militares também estão ocupando postos-chave da Fundação. No entanto, cerca de 60% dos cargos de chefia estão vagos, e o número de servidores permanentes da Fundação é o menor desde 2008.
A exoneração do presidente do órgão e o aprofundamento das investigações sobre o assassinato de Bruno Pereira, ex-servidor da Funai, e do jornalista inglês Dom Phillips, foram pauta da mobilização dos servidores, que realizaram greve no último dia 23. Marcelo Xavier foi responsável pela exoneração de Bruno, logo após o servidor liderar uma operação de combate ao garimpo na Terra Indígena do Vale do Javari.
Governo promove interesses de terceiros
A promessa de “nem um centímetro a mais para terras indígenas”, realizada por Bolsonaro durante a campanha à presidência, em 2018, foi concretizada, na avaliação do servidor. Por outro lado, diz, “há um esforço de abertura das terras indígenas a interesses de terceiros para exploração econômica. O que deveria ser a promoção dos interesses indígenas acaba sendo a promoção dos interesses daqueles que disputam a posse da terra com os indígenas”.
Presidente da Funai de 2012 a 2013, a antropóloga e professora da Unicamp Marta Azevedo avalia que a situação da Fundação integra uma política de desmantelamento dos órgãos de proteção ambiental e dos direitos indígenas. “Isso faz parte de todo esse movimento de tirar [poder] dos órgãos federais que têm capilaridade no Brasil todo, como o Incra, a Funai, o Ibama, o ICMBio”.
Avaliando as condições da Coordenação Regional da Funai de Atalaia, que conta com 12 servidores para o monitoramento da área de 8,5 milhões de metros quadrados, e o fechamento do escritório do Ibama da região, ocorrido em 2017, a antropóloga indica que as ações anularam a presença do Estado no território. “Nós temos obrigação moral, civil e humana de denunciar, de nos aproximar, de nos solidarizar, de veicular toda essa situação que está ocorrendo”, diz.
Territórios indígenas ameaçados
Kuni Matis é uma das 500 pessoas de sua etnia. Os matis atualmente estão divididos entre a Terra Indígena Vale do Javari e a cidade de Atalaia do Norte, para onde se deslocam a fim de dar continuidade ao estudo dos jovens. A população Matis foi reduzida drasticamente após o primeiro contato com a sociedade não indígena, a partir do final dos anos 1970. Em 1981, eram apenas 87, em decorrência de epidemias levadas pelos brancos.
Ex-servidor da Funai, Kuni vê com preocupação a deterioração do órgão. “A base funcionava quando comecei a trabalhar. Contava com policiais e fazíamos fiscalização e monitoramento para os índios isolados. Trabalhei na frente de proteção da base Ituí durante cinco anos [2002 a 2007]. Hoje está piorando, enfraquecendo e sem recursos. Essa é a realidade da Funai. É a nossa dificuldade e o nosso problema”.
A organização do movimento indígena busca realizar o monitoramento por conta própria, em razão da inação do Estado. “Já fiz muito trabalho na base com a Funai. Hoje faço acompanhamento com o movimento indígena, com colegas, com meus parentes”, conta. São diversos os enfrentamentos na tentativa de preservar o território. Segundo Kuni, há uma escalada de invasões ao Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira atuava no combate às atividades ilegais junto aos indígenas.