Vítima de epidemias levadas pelos brancos, a etnia matis chegou a ser reduzida a menos da metade na década de 1970. Naquele período, uma política desastrosa de contato levada a cabo pelo governo militar causou a morte de dezenas de matis, que não passavam de 86 indivíduos em 1983. Originária do Vale do Javari, na Amazônia brasileira, a etnia foi recuperando ao longo das últimas décadas a sua população, atualmente estimada em 500 pessoas. A busca por educação levou mais da metade dos matis à cidade de Atalaia do Norte (AM) e também trouxe um deles à Unicamp. Na Universidade, onde ingressou pelo Vestibular Indígena, Binin Ngapeth Matis busca incrementar os seus conhecimentos e contribuir com sua etnia.
O estudante prestou o Vestibular Indígena em 2020 e ingressou no curso de Geografia. “Eu decidi dar continuidade a meus estudos para aperfeiçoar os conhecimentos na vida pessoal e profissional, para levar para minha comunidade e trabalhar com meu povo dentro da aldeia”, conta.
Para conseguir estudar, Binin enfrentou muitas dificuldades. “Eu nasci na comunidade Aurélio, no rio Ituí, Terra Indígena Vale do Javari. A minha vida sempre foi boa até os meus 12 anos de idade. Ficar perto da família era seguro”. As adversidades começaram quando foi para a cidade de Atalaia do Norte (AM) a fim de continuar a formação. “Na cidade, eu passei muitas dificuldades para falar a língua portuguesa, para me adaptar. Faltavam alimentos e às vezes os meus pais tinham que me mandar farinha e carne salgada. Passei fome enquanto estava estudando na cidade”.
Durante o ensino médio, Binin foi aprovado em uma seleção de estágio da Fundação Nacional do Índio (Funai) e conciliava os estudos ao trabalho. Depois, atuou como professor na escola municipal na aldeia Tawaya. Quando soube do vestibular indígena da Unicamp, que aplica provas em Tabatinga, cidade próxima a Atalaia do Norte, ele decidiu tentar. “Sobre meus planos, se conseguir terminar a graduação, vou tentar fazer pós-graduação ou outro curso. Também tenho o sonho de cursar Serviço Social e Letras. Tenho muitos anos para decidir o que eu quero fazer”.
Entre o território indígena e a cidade
A realidade de Binin Matis é similar à de dezenas de jovens que vão a Atalaia do Norte em busca de estudo. Nas aldeias, o ensino vai até o sexto ano do ensino fundamental. A cidade amazonense está localizada no extremo oeste do Brasil e registra um aumento expressivo da população indígena nos últimos anos. A maior parte delas estabelece um deslocamento rotineiro entre cidade e aldeias.
Pela fragilidade das políticas públicas para os indígenas, muitas famílias chegam ao município sem ter onde morar. Dezenas de pessoas acabam morando no cais, dormindo nas pequenas embarcações com as quais chegam ao local.
Essa já foi a realidade de Kunin Matis, parente de Binin e uma das 300 pessoas da etnia que vivem na cidade. Ele conta que a etnia aos poucos foi se organizando na construção de casas, geralmente feitas de madeira, que hoje abrigam as famílias matis da cidade. Mesmo para os que não têm habitação, a solidariedade entre as famílias permite que sejam recebidos nas casas dos parentes.
“Eu não tinha casa, não, a maioria não tinha casa. Antes era assim: ficava na beira do rio, jogado, como você vê os outros parentes, ou em barracas. Hoje quem vem da aldeia fica em casa, e depois pode retornar para a aldeia. Assim o povo matis está hoje em dia no município de Atalaia do Norte”, conta Kunin, que tem parte da família na cidade e parte na aldeia, onde estão dois de seus filhos, de 6 e 10 anos. Por isso, passa um período em cada local. Entretanto, devido ao preço da gasolina, não tem ido tanto à terra indígena como gostaria.
“Hoje estão muito caras as coisas, como a gasolina. Antes a gente conseguia comprar, voltar para a aldeia, mas hoje em dia é muito caro, por isso hoje estamos aqui, demorando, mas a minha preferência é voltar para a aldeia. É muito difícil para mim: família está na aldeia, família está na cidade. Estamos divididos”.
Para ele, é importante estar na cidade para dar estudo aos filhos, mas é na aldeia onde queria estar. “Por que eu vim pra cá da cidade? Meu filhos começaram a estudar aqui. A gente queria trocar conhecimento, da realidade do branco e da nossa. Mas eu não tenho vontade de morar na cidade, é difícil para nós, tem que ter dinheiro. Quando eu fico na aldeia eu caço, pesco, faço roça, a gente se mantém. Essa é minha intenção: ficar lá”.
Na aldeia Kunin já atuou como servidor da Funai, agente de saúde e hoje trabalha na Secretaria de Atenção Indígena em Atalaia do Norte. Na terra indígena, aponta, faltam profissionais para dar suporte às demandas básicas da população, como saúde e educação. Por isso, há a compreensão de que os matis precisam buscar formação, a fim de atuar nas aldeias para sanar os problemas.
“O que precisamos muito é educação, saúde, tem que ter embarcação, equipes de permanência na aldeia, como enfermeiros e médicos. Na educação precisamos urgente de mais professores fixos do Estado, ter escola do Estado dentro da aldeia. Isso para que os parentes não precisem descer para a cidade, porque aqui tem que ter dinheiro para ficar”, observa.
Presença na cidade potencializa ação política
Professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), o antropólogo Rodrigo Reis coordenou um recenseamento demográfico em 2018 sobre a presença indígena na em Atalaia do Norte. No trabalho, realizado junto a organizações indígenas, à Universidade Estadual do Amazonas e à SEMAI, foi corroborado que a educação escolar é o principal fator da mobilidade indígena e uma das principais demandas das mobilizações das etnias.
Mas a presença na cidade, segundo o professor, não deve ser vista como um afastamento das aldeias, visão presente em discursos anti-indígenas. “Não devemos pensar que estar na cidade é uma negação da Terra Indígena. Há uma relação de continuidade entre cidades e aldeias que fazem parte de diferentes fatores, como a educação e a possibilidade de emprego. Além disso, a presença na cidade potencializa a atuação das lideranças indígenas junto aos órgãos de poder”, aponta.
O fortalecimento da organização política dos indígenas nas cidades, reflete Rodrigo, traz também benefícios para os parentes que permanecem nas aldeias. “Há redes relacionadas à saúde e alimentação que mantêm estreitos os vínculos entre os que permanecem morando nas aldeias e os que estão nas cidades. Por isso, estar na cidade não deve ser pensado como uma saída da aldeia. Esse é um discurso fácil que é contrário à presença indígena em qualquer lugar”, diz.
O recenseamento coordenado pelo professor aponta diversos aspectos do perfil sociodemográfico dos indígenas em Atalaia do Norte, como condições de moradia e acesso a bens e serviços e segurança alimentar. Acesse o estudo aqui.