De cada um de nós depende
que não tenha sido em vão.
Com sua morte, já fazem
parte da vida que um dia
vai florescer neste chão.
Sobrevivos. Mas não completamente.
Um pouco também morremos com eles.
Este é um trecho de um poema de Thiago de Mello, com o qual me despedi dos parceiros daqueles 10 dias na região do Vale do Javari, na Amazônia. São palavras de luto, mas que também trazem uma pulsão de vida e resistência. No início da noite de 15 de junho de 2022, que parou a cidade de Atalaia do Norte, era confirmado o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Enquanto colegas e indígenas vivenciavam a dor de sua perda, uma festa de policiais entrava madrugada adentro no pequeno município. É difícil compreender o que comemoravam, assim como é inaceitável a violência deliberada contra os povos originários do país.
Cerca de 40 dias depois, povos indígenas e ativistas do país inteiro ainda pedem socorro. Poucos dias após o assassinato de Bruno e Dom, indígenas Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul sofreram ataques enquanto retomavam sua terra originária. Duas pessoas foram assassinadas, dezenas ficaram feridas e ainda são ameaçadas, conforme denuncia a liderança Valdelice Veron Kaiowá. Yanomamis, violentados por garimpeiros e pela omissão do Estado, também relatam a desassistência em relação a direitos básicos. Sem medicamentos e com poucos profissionais de saúde, quadros de verminose e malária têm aumentado nas comunidades. Estes são alguns dos fatos que indicam a tentativa deliberada de extermínio dos povos originários do Brasil, que há 532 anos resistem a todo tipo de massacre – da arma de fogo à negligência.
Os últimos anos exigiram uma força de resistência ainda maior, que em alguns momentos é abalada frente à investida do governo e de um regime econômico predatório. Só em 2020, foram assassinados 182 indígenas. Crescem as ameaças e perseguições a ativistas de direitos humanos, a jornalistas e aos próprios servidores do Estado que buscam cumprir o seu papel de assegurar os direitos e a proteção ao meio ambiente. O governo federal aprofunda, dia a dia, o desmonte de órgãos ambientais e indígenas e busca concretizar a promessa da campanha presidencial de 2018: regredir ao Brasil de 40, 50 anos atrás – não por acaso, o período da ditadura militar, responsável pela morte de pelo menos 8,3 mil indígenas, segundo a Comissão Nacional da Verdade.
Sob o governo Bolsonaro, presenciamos um Ministro do Meio Ambiente sob a suspeita de ligação com a extração e o tráfico ilegal de madeira. A atividade, junto ao garimpo, à grilagem, à caça e pesca ilegal, expropria as terras indígenas e aniquila nossa própria esperança de vida. Passar a boiada, não demarcar um centímetro de terra indígena, dentre outras tantas declarações realizadas pelo alto escalão do Executivo, representam o aval e o incentivo para a intensificação de um genocídio. Nos últimos anos, só no Vale do Javari, o extermínio incluiu os assassinatos de Pian e Kora Kanamari, que atuavam na defesa do território, e do servidor da Funai Maxciel Santos. São crimes até hoje sem investigação adequada e sem responsabilização.
A lista de vítimas do genocídio é longa. Também no Amazonas, um massacre realizado pela Polícia Militar resultou em oito mortos no Rio Abacaxis em 2020. No Mato Grosso, quatro indígenas foram assassinados, também pela PM, enquanto caçavam. A violência também se expressa no saque e nas invasões às terras. Conforme documento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), durante o governo Bolsonaro aumentaram o número de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”. Foram 263 casos em 2020 e 256 em 2019, ano que registrou um aumento de 141% em relação a 2018.
Por meio de uma normativa, o Executivo também passou a permitir certificações e registros de fazendas dentro de Terras Indígenas (TIs) ainda não homologadas. Além de não ter homologado nenhuma TI nesses quase quatro anos, o governo certificou 239 mil hectares dentro das já demarcadas para o agronegócio, cujas atividades levam não só à expropriação do território, mas também à contaminação por agrotóxicos e à degradação ambiental.
Trata-se de uma política de morte, que tem como motor o ódio. Quando eu e Antonio Scarpinetti, meu colega, estávamos na região do Vale do Javari, alguns comentários nas redes sociais a respeito do nosso trabalho diziam: “Perda de tempo e mais gente pra polícia precisar ficar procurando por lá depois…”, “Ficam indo lá também que já vão virar comida de peixe no Rio”, “Vai para região de tráfico e etccc acaba morrendo (Quem Procura Acha)”. A construção de um inimigo a aniquilar é a receita dos regimes fascistas. Indígenas, negros, ativistas, jornalistas e a população LGBTQIA+ tornam-se alvos de uma combinação de neoliberalismo arcaico com a ideologia ultraconservadora que ascendeu no Planalto.
São inúmeros os retrocessos, e são urgentes as medidas para contê-los. O assassinato de Dom e Bruno e suas implicações deveriam marcar o momento de um “basta”. Embora três pessoas tenham sido indiciadas, as lideranças indígenas cobram o aprofundamento das investigações e relatam que ainda recebem ameaças. A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) segue denunciando as investidas de garimpeiros, por exemplo, a funcionários da Funai no rio Jandiatuba. A Univaja está sediada em Atalaia do Norte, local para onde voltariam Bruno e Dom após o trajeto no rio Itaquaí, onde foram mortos. A cidade tem o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Amazonas e sofre com a ausência de saneamento e com o desemprego - apenas 7% da população é ocupada, segundo o IBGE, e profissões extremamente precarizadas, como a de quebradores de pedra, acabam sendo a única opção para parte da população.
Os guardiões da Amazônia, dos biomas do Brasil, precisam de apoio. Se o Estado não cumpre seu papel e lava as mãos diante do assassinato dos servidores que tentam desempenhar seu trabalho mesmo em condições extremamente perigosas, o que fazer? Primeiro, como aponta o filósofo e ativista Ailton Krenak no sugestivo livro Ideias para adiar o fim do mundo, é preciso despertar: “[...] se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar nossa demanda”. Seguindo o raciocínio de Krenak, a humanidade necessita ser resgatada, mas uma humanidade que admita ser parte da natureza.
A imprensa e órgãos indigenistas e ambientalistas têm revelado os crimes e a intensificação de um grave panorama de violações, mas é preciso ampliar a pressão para que haja responsabilização pelos crimes cometidos pelo Estado e por grupos ilegais e para que empresas parem de comprar commodities e minérios oriundos da destruição das terras indígenas, como o fazem, por exemplo, as quatro empresas mais valiosas do mundo. A mobilização precisa ser constante. “Ainda é tempo”, como escreveu Thiago de Mello:
E é preciso fazer alguma coisa
para ajudar o homem.
Mas agora.
Cada vez mais sozinho e mais feroz,
a ternura extraviada de si mesma,
o homem está perdido em seu caminho.
É preciso fazer alguma coisa
para ajudá-lo. Ainda é tempo.
É tempo.
Apesar do próprio homem, ainda é tempo.
E, porque ainda é tempo, mais de 2 mil universitários indígenas se reúnem na Unicamp entre os dias 26 e 29 de julho para o IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI). Educação, sustentabilidade, arte e resistência estarão em pauta nos quatro dias de evento, que conta com a presença de lideranças indígenas. Serão dias de compartilhamento de experiências em que os temas mais importantes para os povos indígenas serão discutidos e levados ao público. A comissão de comunicação do encontro, à qual a Secretaria de Comunicação da Unicamp se soma, estará cobrindo a programação. Acompanhe nas mídias oficiais da Unicamp e nas mídias do ENEI.
Com esse texto, chega ao fim a série Oeste Sem Lei. Todas reportagens produzidas e o ensaio fotográfico podem ser acessados neste link.