A liderança indígena Valdelice Veron pede socorro. Porta-voz da Aty Guasu (Grande Assembleia dos Povos Guarani–Kaiowá), ela denuncia que pistoleiros, latifundiários e forças policiais em conluio têm assassinado indígenas sistematicamente na cidade de Amambai, região de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul (MS).
Três indígenas foram mortos entre maio e julho, e a população tem sofrido severas violações de direitos humanos – como estupros de adolescentes e intervenções policiais sem autorização judicial –, em que crianças, mulheres e idosos acabaram feridos por armas de fogo.
Valdelice afirma estar sendo perseguida por pistoleiros, que foram vistos – e fotografados – em tocaias nas imediações de sua casa nas últimas semanas. Diante dos indícios, ela acredita que pode ser morta a qualquer momento, a exemplo do que já ocorreu, em 2003, com o pai – o grande cacique Marco Veron –, e com os dois irmãos, jovens lideranças, em 2015 e 2016.
Na quarta-feira (27), ela recebeu uma mensagem de um número desconhecido no WhatsApp, dizendo que alguém iria metralhar a escola da aldeia. As aulas foram suspensas devido à ameaça, deixando cerca de dois mil alunos sem atividades. Denúncias foram encaminhadas para o Ministério Público Federal. “O Estado do Mato Grosso do Sul não quer a vida do povo guarani-kaiowá. Não quer que o nosso povo viva”, denuncia ela, que participou do IX Encontro Nacional dos Estudantes Indígenas (ENEI) na Unicamp. “Por isso, é genocídio”, argumenta.
“Estar aqui na Unicamp, aliás, pode ser a minha última aparição pública, porque não sei o que pode acontecer comigo quando eu voltar para lá”, disse no encontro em Campinas. “Estamos passando por tempos de massacre. Massacres da milícia institucionalizada”, afirma a liderança. “Massacre é quando a Tropa de Choque da PM e helicópteros atacam nossas aldeias. Aparecem sem liminar judicial de despejo”, explica.
Ela conta que, no dia 24 de junho, a Polícia Militar e pistoleiros recrutados pelos agressores realizaram uma operação policial sem mandato judicial em uma retomada de terra no município de Amambai, localizada na propriedade Borda da Mata, administrada pela VT Brasil, empresa cujo proprietário já respondeu a processos por desmatamento e formação de quadrilha.
O episódio ficou conhecido como “Massacre de Guapoy”, em referência ao território considerado sagrado pelos guarani-kaiowá, O incidente ocorreu cerca de um mês após o assassinato do jovem indígena Alex Lopes, de 18 anos, crime que motivou duas ações de retomada da terra ancestral por parte dos indígenas.
Na operação, havia 65 policiais armados, 16 viaturas e um helicóptero. Depois de bombas de gás e balas de borracha, vieram os tiros fatais que acertaram Vitor Fernandes, indígena de 42 anos. “O Vitor Fernandes era coxo. Ele não conseguiu correr. O helicóptero veio para cima. O primeiro tiro acertou na perna dele, o segundo, nas costas, e o terceiro, a cabeça. E derrubou ele, que morreu. O Vitor Fernandes não conseguiu correr,” lamenta.
Diversas pessoas ficaram feridas na ação. “Uma criança de 12 anos teve as vísceras abertas porque a bala do fuzil rasgou a barriga dela. Ainda assim, ele conseguiu sobreviver”, contou Valdelice. “A Natielle, uma menina indígena de 15 anos, levou um tiro na cabeça. Mas ela sobreviveu”, contou.
Alguns sequer buscaram atendimento no hospital, com medo de serem criminalizados. Dentre os feridos, estava a indígena Cecilia Aquino. Um relato anônimo de uma familiar, feito para a Aty Guasu, conta a sequência de violências sofridas por ela. Depois de ser levada ao hospital, diz o depoimento, Cecilia foi cercada por 10 policiais que a colocaram no camburão e a algemaram, alegando que ela precisava registrar boletim de ocorrência. Na delegacia, as duas famílias e lideranças que a acompanharam foram impedidas de ter contato com Cecília e de utilizar celular. “Depois voltaram, levaram Cecília para outro quarto, a algemaram, torturaram e a levaram embora no camburão. Depois tentaram me prender também [...]. Fomos torturados psicologicamente; eles chegavam a babar em cima da gente”.
O depoimento ainda aponta que elas foram encaminhadas a outra delegacia, onde a polícia as registrou, tirou suas fotos e as liberou a uma hora da madrugada. No entanto, depois que elas saíram, os policiais foram atrás. “Fomos seguidas por policiais e nos escondemos num milharal. Eu senti que era pra matar a gente. Então a gente foi se escondendo. Sempre que a gente via luzes, a gente se escondia; a gente sabia que era o carro da polícia que estava vindo atrás de nós. Corremos muito até chegar na aldeia”.
No mesmo dia, quatro indígenas foram detidos e relatam terem permanecido por três dias sendo hostilizados na delegacia. A polícia abriu inquérito, acusando-os de tentativa de homicídio de policiais. A Defensoria Pública Estadual interveio, pedindo a soltura por falta de elementos para a acusação, e eles foram liberados.
Nos dias subsequentes, a violência não cessou. “Agora, faz sete dias, armaram outra emboscada, na mesma cidade de Amambai, e mataram Márcio Moreira. Hoje (dia 28) é o velório dele. Hoje está sendo celebrado o ritual fúnebre em sua homenagem. Nós estamos de luto, na luta pela vida”, diz. “Eles mataram cruelmente o Márcio. Chamaram ele pra cidade para construir um muro e, quando Marcio chegou, já tinha pistoleiro lá esperando. Mataram ele”, revela.
Segundo a líder indígena, as operações policiais ocorrem sem qualquer tipo de ordem judicial. “Não havia ordem judicial. O Ministério Público Federal de Naviraí, o MPF de Ponta Porã e o MP de Dourados têm nos acompanhado. Inclusive, eles até perguntam como pode haver uma ação assim, tão horrível de arbitrariedade por parte da polícia, por parte do governo do Estado, enviando tropa de choque junto com helicóptero e ainda querendo criminalizar os indígenas falando que usamos armamento pesado?”
“Nós não temos nem comida pra comer. Nós vivemos em barracos! Como vamos ter armamentos? Falaram que o Vitor Fernandes, que morreu com tiros nas costas e na cabeça, tentou derrubar o helicóptero. É uma mentira! Tentam criminalizar os indígenas de todas as formas. Como a gente vai ter armamento pesado se não tem nem alimento pra comer?”
Ela conta, ainda, que as mulheres denunciam, mas não são ouvidas pelas autoridades. “A gente não consegue fazer um boletim de ocorrência quando ocorrem esses massacres. E o que dizer da violência no corpo das mulheres? São marcas que não cicatrizam; não vão sarar no corpo de nossas meninas o que os pistoleiros deixam. Como a gente vai fazer boletim de ocorrência desses malditos estupradores policiais?”, questiona.
A liderança diz que não consegue ser ouvida pelas autoridades brasileiras e, por conta disso, decidiu recorrer a cortes internacionais. “Estamos buscando a Corte Penal Internacional, porque não estamos vendo socorro aqui no Brasil por parte dos nossos governantes”, diz ela. “Pelo contrário, eles pregam o extermínio. Eles querem o genocídio em vez de abrir um diálogo com a gente. A nossa luta é pela terra original”, adverte.
A VT Brasil, no dia 4 de julho, realizou um pedido de reintegração de posse da área, mas o juiz responsável pela decisão indeferiu o pedido. Os indígenas permaneceram na retomada.
Genocídio
Valdelice participou, no IX ENEI, de uma mesa que debateu o genocídio dos povos indígenas no Brasil junto ao professor Edson Kayapó e ao advogado Álvaro Gonzaga. Para Gonzaga, um dos responsáveis pelo relatório enviado à Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid que apontou a omissão do governo federal na proteção dos povos, os ataques aos indígenas podem ser tipificados como genocídio. “Havia uma população de 5 milhões e meio de indígenas quando Pindorama [palavra indígena para se referir ao Brasil] foi invadida. Essa população foi reduzida a meio milhão. [...] existem estratégias e estruturas organizadas para aniquilar os povos originários no Brasil”, disse.
O advogado citou o Estatuto de Roma do Tribunal Pena Internacional, adotado no Brasil, que define genocídio como qualquer um dos atos praticados com intenção de “destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”, dentre eles, homicídio de membros de um grupo e a sujeição de um grupo a condições de vida com vistas a provocar sua destruição e transferência. “Em relação aos homicídios de membros de um grupo, nós acabamos de ver o que vem ocorrendo com os guarani-kaiowá [...] e quando armas miram as crianças guarani-kaiowá nas suas escolas, isso é mais uma estratégia genocida”, assinalou.
Durante a atividade, Valdelice chamou todos os estudantes guarani-kaiowá presentes no evento para prestar uma homenagem aos parentes assassinados e pedir justiça. “Esses jovens que estão aqui em pé hoje e eu, enquanto porta-voz, podemos não estar semana que vem. Vocês podem estar ouvindo aqui a última vez a minha fala. A gente não sabe se vai sobreviver na semana que vem, no mês que vem. A gente não sabe se vai amanhecer no estado do Mato Grosso do Sul”. Ela reivindicou: “Parem de matar os guarani-kaiowá!”
Reservas
Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e doutoranda em Antropologia Social na Universidade de Brasília (UnB), Valdelice está no centro de uma guerra que se prolonga desde meados do século passado, quando os guarani-kaiowá foram retirados de suas terras e confinados a oito reservas definidas pelo governo federal, por meio do então Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão que se transformou, posteriormente, na Fundação Nacional do Índio (Funai).
Desde então, os guarani-kaiowá tentam voltar à terra original que, segundo ela, é diferente de reserva indígena. “O governo tirou o povo da nossa terra original e mandou para a reserva com o intuito de catequisar, pacificar, entre aspas, e ensinar que o índio deixasse de ser indígena”, diz Valdelice. “Na terra nós temos a história, temos a memória coletiva. Para nós, é o sagrado”, argumenta.
Atualmente, há cerca de 120 mil indígenas Guarani-Kaiowá. Além das reservas, muitos deles moram, hoje, em uma das 69 áreas indígenas chamadas de Retomadas, que estão nos fundos das “propriedades”. É nesses lugares onde os conflitos são mais violentos.
Nos últimos 20 anos, houve 17 assassinatos de guaranis-kaiowá, segundo levantamento do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Dentre eles, o cacique Marco Veron, sequestrado, torturado e morto.
“As últimas palavras do Marco foram ‘Terra, vida, justiça e demarcação’”, reivindicação que Valdelice repete em todos os lugares por onde passa.
Ela ainda testemunhou o assassinato dos irmãos e conta que o avô também foi morto em consequência dos conflitos pela terra. Ela tinha seis anos quando presenciou a morte pela primeira vez, de uma amiga que foi atropelada por pistoleiros. “Tenho marca de tiro na minha perna e no meu corpo, e essa semana as ameaças contra mim se intensificaram”, revela.
“Os pistoleiros correram atrás de mim com uma caminhonete branca e foram até a aldeia. Eles ficaram de tocaia na frente da minha casa pra tentar atirar em mim. Tenho a foto da caminhonete com o número da placa. Mandei pro MPF,” conta.
A filha
Kellen Vilharva é filha de Valdelice. E, a exemplo da mãe, está trilhando uma trajetória acadêmica. Bióloga de formação, ela pesquisa plantas medicinais e é doutoranda em Clínica Médica na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
Saiu da comunidade para estudar e cumprir uma missão: trabalhar para levar melhores condições de vida ao povo Guarani-Kaiowá. “O meu papel aqui (na cidade) é dar visibilidade ao meu povo. Mostrar que nós estamos morrendo. Estamos sem socorro, sem ajuda”, diz ela. “É como se fôssemos esquecidos. Muitas vezes a mídia está aí mostrando a guerra na Europa e no mundo, e a gente está em guerra aqui, em nosso país, e não se fala disso”, argumenta.
Ela conta que vive com uma sensação permanente de aflição, preocupada com o que pode acontecer com a mãe e seus parentes indígenas. “Toda vez que falo do meu povo, eu choro, porque estou longe, e a gente fica preocupada com minha mãe, com as crianças, com os jovens da aldeia”, diz. “As pessoas não têm ideia de como é dormir embaixo de uma lona; chegar lá e não ter comida. A gente corre risco. Nossos carros são marcados. Chegamos na cidade de Amambai com a polícia atrás; saímos da cidade e já havia polícia seguindo a gente. No outro dia, a mesma coisa”, relata.
Segundo Kellen, seu papel como doutoranda é elaborar projetos e mobilizar a comunidade, com o objetivo de proporcionar um mínimo de dignidade para essas pessoas que estão esquecidas nas Retomadas.
Estudante na área da medicina, Kellen avalia que toda essa violência tem reflexos na saúde do seu povo. A degradação ambiental causada pelo monocultivo e o uso intensivo de agrotóxicos interferem na escassez e na contaminação das plantas sagradas e da água. As ameaças constantes também estão ligadas ao alto número de suicídios. “É um caminho muito difícil vir para longe do meu território, mas tenho o apoio da minha mãe e da minha avó. Eu cresci nessas áreas de Retomadas e sei que a dor é coletiva. A dor que eles sentem lá, eu sinto aqui, mas sinto que estou no caminho certo”, conclui a indígena doutoranda.
Justiça
A Polícia Federal, o Ministério Público Federal e o Ministério Público do Estado do Mato Grosso foram contatados para entrevistas sobre o caso dos conflitos na região de Amambai. À reportagem, a PF afirmou que “está acompanhando de perto as ocorrências nas áreas indígenas do Estado e atuará sempre que houver necessidade de intervenção, sob, é claro, a égide da atribuição constitucional”.
O MPF diz que “acompanha a situação relacionada aos recentes conflitos em Amambai desde o início. No entanto, o procedimento está cadastrado sob sigilo, o que impossibilita a disponibilização de qualquer informação relacionada ao tema”. Valdelice Veron foi ouvida sobre os conflitos no órgão no dia 1º de julho. O MP-MS, até o fechamento da reportagem, não havia se manifestado.
A organização dos guarani-kaiowá exige respostas urgentes. “A Assembleia Geral do Povo Kaiowá Guarani - ATY GUASU, cobra dos governantes que a justiça seja feita, que medidas sejam tomadas, que esse genocídio para com os povos originários acabe, que o direito à vida seja respeitado, que a demarcação seja realizada e que haja diálogo e respeito entre os povos. A comunidade indígena encontra-se revoltada com os acontecimentos e, mais uma vez, espera por justiça”.
Assista também ao episódio do podcast Analisa com Valdelice Veron e Kellen Vilharva: