Projeto autoritário mina a democracia por dentro das instituições, avalia Marcos Nobre

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Das “Jornadas de junho” de 2013 à ascensão de um projeto autoritário no Brasil, o cenário político brasileiro nos últimos dez anos é composto por uma sucessão de acontecimentos difíceis de desvelar. Marcos Nobre, presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, tem se dedicado a analisar e expor os fios desse emaranhado. Para ele, as manifestações de 2013 expressaram uma insatisfação com o sistema político que, ignorada, culminou na ascensão de um regime responsável por corroer a democracia por dentro das instituições.

“A decisão do sistema político foi a de colocar a cabeça embaixo da terra e esperar passar, em vez de aproveitar aquele momento para reformar a democracia brasileira”, avalia o professor, que no dia 13 de setembro vai falar sobre o tema do seu livro Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro, às 12h, na Adunicamp.

A erosão da democracia, diz Nobre, vem ocorrendo com a implantação de um projeto autoritário cuja primeira etapa é destrutiva, “período em que é minada a confiança nas instituições democráticas” e que ocorre, por exemplo, “atacando as urnas eletrônicas e questionando a isenção do Supremo Tribunal Federal”.

Para o professor, “já existem elementos ditatoriais e autoritários no Brasil, além do sequestro da agenda pública”. Um dos exemplos levantados por ele é o orçamento secreto. “O orçamento secreto em uma democracia é a definição de uma ditadura”, avalia. 

A necessidade de a direita democrática recuperar a hegemonia no campo das direitas e isolar a extrema-direita, o papel da Lava Jato na perda do controle da política pelo sistema político e os horizontes para a democracia brasileira, ameaçada por forças políticas que tratam qualquer adversário “como um inimigo a ser abatido”, também são temas abordados por Marcos Nobre nesta entrevista que inaugura a série Horizontes Contemporâneos.

O senhor aponta que há uma erosão da democracia que ocorre por dentro das instituições. Quais são as características desse processo?

Marcos Nobre – A ideia do fechamento do regime por dentro é uma característica dos projetos autoritários da década de 2010. A partir da vitória eleitoral, implanta-se, em etapas, um projeto autoritário. A primeira etapa é destrutiva. Em geral, corresponde ao primeiro mandato, período em que é minada a confiança nas instituições democráticas. No caso brasileiro, isso ocorreu atacando as urnas eletrônicas e questionando a isenção do Supremo Tribunal Federal. Minando a confiança na democracia e na ideia de que a democracia é um solo comum, prepara-se o segundo mandato.

Porque, quando se quer destruir a democracia, é preciso convencer as pessoas de que ela não é a melhor maneira de se viver junto. O interessante é que todos esses projetos autoritários são feitos em nome da liberdade e da democracia, ou seja, fazem o discurso da liberdade e da democracia para destruí-la. Num segundo momento, num segundo mandato, dá-se realmente o aparelhamento completo do Estado e das instituições.

O ciclo do golpe começa no primeiro mandato e termina no segundo. E como isso acontece? Ganhando a maioria na Suprema Corte, mudando as regras eleitorais para ter a maioria, restringindo o direito de voto e várias outras medidas, como a criação de uma polícia secreta. O governo Bolsonaro tem como objetivo fazer um controle federal e unificado das polícias estaduais. É um projeto feito em etapas, obscuro desde o início, que vai se desenvolvendo com o desenrolar dos eventos.

Bolsonaro não imaginava que ia ter uma pandemia, então teve que adaptar o seu projeto. E, ao mesmo tempo, foi olhando as experiências internacionais, vendo o que deu e o que não deu certo com Trump, nos Estados Unidos, com Viktor Orbán, na Hungria, com Narendra Modi, na Índia. Ele foi adaptando essas táticas ao contexto nacional.

 

Marcos Nobre, professor do IFCH e presidente do Cebrap: “A Lava Jato serviu de ponto de unificação para todas essas forças de direita e funcionou como um escudo institucional”
Marcos Nobre, professor do IFCH e presidente do Cebrap: “A Lava Jato serviu de ponto de unificação para todas essas forças de direita e funcionou como um escudo institucional”. Foto: Antonio Scarpinetti

Outra análise sua aponta que o sistema político perdeu o controle da política e a Lava Jato é um marco nesse processo. Qual foi o papel da operação?

Marcos Nobre – Essa é uma história muito longa, que vai de 2013 até agora, e que tem várias etapas. Em junho de 2013, ficou claro que havia uma insatisfação generalizada pela maneira como a política funcionava. Nas pesquisas feitas com as pessoas que foram às diferentes manifestações em junho de 2013, um dos elementos que chama atenção é que, em primeiro lugar, havia um desejo de mudança da forma de funcionar da política para 65% delas.

O desejo de mudança foi ignorado pelo sistema político, que disse: ‘É normal, a insatisfação passa e vamos aguardar, enfiar a cabeça na terra e esperar’. Mas o desejo não refluiu. E, quando há um desejo de mudança que não é aceito pelas instituições, quando as instituições não se abrem, essa energia social se torna antissistema. Não é antissistema de direita ou de esquerda, é antissistema.

Só que a mudança precisa de uma direção, precisa ter um objetivo, além de metas e uma certa organização. Como o governo federal naquele momento era dirigido pelo PT [Partido dos Trabalhadores] e a presidente Dilma Rousseff foi reeleita em 2014, essa energia social foi aos poucos sendo canalizada pela direita. Mas não a direita tradicional do sistema político; era uma direita que, justamente por ser antissistema, tinha se formado já ao longo dos anos 2000. Não era uma direita que se identificava com uma direita do sistema político. Você tinha um amplo espectro de direita, como as novas direitas, antissistema, direita tradicional na rua, e extrema-direita.

No livro Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro, eu tento contar a história de como esse amplo espectro de posições dentro do campo da direita foi sendo hegemonizado pela extrema-direita. Foi um processo cheio de conflitos internos ao campo. A Lava Jato serviu de ponto de unificação para todas essas forças de direita e funcionou como um escudo institucional.

Em 2013, o sistema político perdeu o controle da política. Tanto que, no segundo semestre de 2013, estava todo mundo atordoado, sem saber o que fazer. Em 2014, quando houve as eleições, se pensou que tudo tinha voltado para o lugar, mas não tinha. E, junto com isso, veio uma crise econômica brutal. Houve uma crise de representação junto com uma crise econômica fortíssima. Quando houve essa conjunção, a Lava Jato ganhou força porque ela vampirizou a energia que estava solta na rua. Ela passou a aglutinar essa energia antissistema. E o sistema político, no fundo, perdeu o controle da política e não conseguiu mais operar da maneira como fazia anteriormente.

De 2015 a 2018, há um cabo de guerra entre o sistema político que perdeu o controle da política e uma oposição extra-institucional que estava nas ruas – e tinha como escudo a Lava Jato – que impede o sistema político de retomar o controle da política, mantém um sistema político emparedado e, ao mesmo tempo, não toma para si o poder, não se institucionaliza. Essa é a maneira pela qual tento explicar o período de 2015 a 2018. E, também, pensando na Lava Jato como escudo institucional, por que o Judiciário não tinha como fazer uma reforma política, que é o que as pessoas estavam pedindo, mas, ao mesmo tempo, a operação Lava Jato estava prometendo que ia fazer a reforma política que os políticos não faziam. Ela vendeu uma ilusão e, ao mesmo tempo, as pessoas não tinham outro caminho para expressar sua insatisfação. Ela virou escudo dessas forças antissistema para impedir que o sistema político retomasse o controle da política.

Isso muda com a eleição de Bolsonaro, porque ele toma atitudes e ações que favorecem o sistema político nos seus interesses – esse é um dos aspectos da aliança de Bolsonaro com o sistema político. O primeiro desses interesses era acabar com a Lava Jato, que foi o que ele fez. Bolsonaro foi a pessoa certa na hora certa, do ponto de vista do sistema político, para liquidar a operação Lava Jato e fazer com que o sistema político retomasse o controle da política, que foi o que aconteceu durante o seu governo e de uma maneira muito particular.

Houve um acordo de Bolsonaro com parte do Congresso para dividir o orçamento público. Isso também interessava ao sistema político e permitiu ao governo Bolsonaro duas coisas muito importantes. A primeira foi não ser objeto de impeachment ou de CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito]. A segunda foi poder continuar atacando o sistema, continuar sendo um presidente antissistema. Tudo isso parece meio paradoxal, mas é o paradoxo em que a gente está.

audiodescrição: fotografia colorida do professor Marcos Nobre
Para Nobre, a energia antissistema de 2013 deveria ter provocado reformas na democracia brasileira. Foto: Antoninho Perri

Voltando a junho de 2013, que rumos o senhor acha que poderiam ser tomados para canalizar essa energia antissistema?

Marcos Nobre – O sistema político podia ter se reformado. Em 2017, no auge da crise da perda de controle da política pelo sistema político, o sistema percebeu que tinha que fazer alguma coisa e fez uma reforma mínima, mas absolutamente fundamental, que foi proibir coligações em eleições proporcionais e exigir uma cláusula de desempenho crescente por parte dos partidos nas eleições até 2030. Isso é o mínimo. Há muitas outras coisas que poderiam ter sido feitas, como instituir a necessidade de prévias para escolher candidaturas em todos os níveis – de vereador a deputados e presidente. Poderia ter limitado a reeleição para cargos proporcionais, ter um certo número de mandatos.

Poderíamos ter implantado medidas de transparência dos gastos partidários mais rígidas do que as que temos hoje. São muitas as medidas que poderiam e deveriam ter sido tomadas e nós não fizemos isso. A decisão do sistema político foi a de colocar a cabeça embaixo da terra e esperar passar, em vez de aproveitar aquele momento para reformar a democracia brasileira. Podia não ser o sistema político inteiro, mas uma parte dele, mas que tomasse essa decisão.

Só forças que eram minoritárias do ponto de vista institucional viram em junho de 2013 uma oportunidade. Tanto à direita quanto à esquerda. É aí que nascem esses novos movimentos de direita, como MBL e o Vem Para a Rua, e ao mesmo tempo você tem a eleição de figuras tão emblemáticas como Marielle Franco, infelizmente um símbolo trágico, mas que viram em 2013 uma possibilidade de mudar o Parlamento.

Para dar outro exemplo de mudança possível: paridade entre homens e mulheres no Parlamento. Reservar a cota de 30% talvez não seja suficiente. O fato de você ter que financiar candidaturas negras, candidaturas indígenas, obrigatoriamente, é fundamental para podermos ter um pingo de representatividade nos vários níveis. Todas essas coisas poderiam ter sido feitas em 2013 e não foram feitas.

E culminam na ascensão de uma extrema-direita que frequentemente ameaça a democracia. Como você avalia as possibilidades de um golpe no país? E quais seriam as características?

Marcos Nobre – Quando se fala em golpe, é preciso entender que é num sentido amplo. Muitas vezes a gente pensa em um golpe clássico, com tanques na rua. Pode acontecer? Pode. Mas é o menos provável no cenário que temos. As estratégias autoritárias nascidas na década de 2010 são estratégias de fechamento do regime por dentro, que não exigem esse tipo de movimento explícito, de tomada do poder e de imposição de uma ordem, pela força direta, militar ou policial. Essa é uma hipótese. Mas o golpe pode ser, por exemplo, produzindo um caos social duradouro, com motins policiais generalizados que levam à destituição de lideranças políticas eleitas, como aconteceu na Bolívia. Ou com uma paralisação de caminhoneiros, como aconteceu antes do golpe no Chile, em 1973. Você pode ter um movimento parecido com uma invasão do Capitólio nos Estados Unidos, só que de maior amplitude e mais organizado.

Quando você produz algum tipo de caos social, você produz também a necessidade ou desejo de ordem. E, nesse momento, não é que as Forças Armadas ou as forças policiais dão o golpe, mas elas vêm para eliminar o caos social e, portanto, para encontrar uma solução institucional que normalmente não é aquela que saiu das urnas.

A última possibilidade de golpe é uma continuidade da atuação do que eu chamo de partido digital bolsonarista, que não é um partido formalmente instituído, mas que é muito organizado e muito poderoso, dono de uma máquina de desinformação e de propaganda muito efetiva que vai atuar durante quatro anos – supondo que Bolsonaro não vá ser reeleito e que os resultados [das urnas] serão respeitados, que quem ganhar vai tomar posse e vai conseguir governar.

Supondo tudo isso, que não é óbvio no Brasil, haveria um partido informal, o partido digital bolsonarista, fazendo uma oposição desleal. Quando você se coloca dentro dos limites da democracia, também tem que supor que, quando se faz oposição, um dia você vai chegar ao poder. E que, portanto, a oposição tem que ter certos limites para poder se apresentar como uma candidatura crível na eleição seguinte.

Quem não tem o compromisso com a democracia não tem esse limite e, portanto, faz uma oposição desleal porque não vê o adversário como adversário, mas como um inimigo a ser abatido. Isso vai levar a outra possibilidade de golpe, que é ter uma força fazendo oposição de maneira desleal e aguardando a eleição de 2026 para voltar ao poder. E aí em condições completamente diferentes, porque Bolsonaro plantou durante quatro anos a absoluta destruição e a devastação do Brasil, e a reconstrução do país não vai se fazer em quatro anos. Com isso, a possibilidade de ele se apresentar como um redentor da destruição que ele mesmo plantou é muito alta.

Como eu costumo dizer, não é que existe método no caos de Bolsonaro, é que o caos é o método de Bolsonaro.  A gente tem que pensar sempre nessa metáfora, do jogo da democracia. Suponhamos que o jogo da democracia seja o futebol: Bolsonaro entra no campo e pega a bola com a mão, mesmo não sendo o goleiro. Quer dizer: ele não respeita nenhuma regra da democracia. Isso seria outra forma de golpe, porque Bolsonaro pode dizer, assim como Trump pode fazê-lo em 2024: 'Vocês disseram que 2018 foi um acaso e eu ser eleito novamente não é mais um acaso’. E aí se completa o golpe, fazendo a segunda etapa de fechamento do regime por dentro.

Legenda interna  Nobre: “Quando você produz algum tipo de caos social, você produz também a necessidade ou desejo de ordem”. Foto: Antoninho Perri
Nobre: “Quando você produz algum tipo de caos social, você produz também a necessidade ou desejo de ordem”. Foto: Antonio Scarpinetti

Essa forma de atuar é que o senhor chama de octógono do golpe...

Marcos Nobre – Isso. Eu digo que o campo democrático está jogando amarelinha e o Bolsonaro está montando o octógono de MMA do golpe. Porque ele usa essa metáfora do MMA muitas vezes. Por exemplo, quando o ex-governador João Dória desistiu da candidatura presidencial, ele disse que estava desistindo de disputar o cinturão dos pesos médios do MMA. E o octógono também tem o sentido de que ele fala muito das quatro linhas da Constituição, mas não são as quatro linhas da Constituição – é o octógono do MMA, onde ele vai massacrar os adversários. Não é jogo de amarelinha. Desde que eu escrevi isso, o campo democrático demonstrou certa vitalidade e organização, que não é partidária ou eleitoral, em defesa da democracia, e a gente espera que isso continue. Mas ainda é algo muito frágil como frente ampla em defesa da democracia, embora seja muito importante tudo o que foi feito até agora.

Falando em frente ampla, o senhor aponta que ela seria necessária, mas que não deve focar apenas na questão eleitoral. Além disso, diz que, caso vença a eleição, não seria possível governar com uma coalizão tão heterogênea para não repetir erros. Como seria essa forma de atuação?

Marcos Nobre – Isso é muito importante porque quando se tem uma força política relevante que tem como projeto destruir a democracia, como é o caso de Bolsonaro, é preciso contar com duas frentes diferentes de ação política. Uma frente é partidária e eleitoral e, com essa, a gente já está acostumado. Mas tem uma outra, que é uma frente política que não é nem eleitoral nem partidária, em que forças da direita democrática e da esquerda se unem para dizer que não vão admitir que a democracia seja destruída. Essa diferenciação é difícil de se fazer, mas é fundamental e começou a ser feita agora no 11 de agosto com a manifestação, em todos os lugares do Brasil, incluindo na Unicamp, da frente ampla em defesa da democracia.

A outra coisa é a frente ampla eleitoral partidária. Isso aconteceu em vários países, como na França, porque há pessoas que são contrárias a [Emmanuel] Macron [presidente francês], mas votaram nele no segundo turno para evitar a vitória da [Marine] Le Pen, de extrema-direita. Nos Estados Unidos, muita gente que não era democrata votou em Joe Biden para impedir que o ex-presidente Donald Trump se reelegesse. Isso pode acontecer no Brasil também. Muita gente pode votar na chapa Lula-Alckmin, que é aquela que neste momento está mais bem posicionada, para evitar a vitória de Bolsonaro, e que não necessariamente são partidários da candidatura. Farão isso para evitar Bolsonaro.

Quando a gente pensa na lógica de governo, precisamos pensar que uma coisa é se eleger por uma frente ampla eleitoral e partidária, outra coisa é governar. Você não pode governar com a mesma frente que o elegeu. O governo Lula tem que ser um governo de centro-esquerda. Ele não pode ser um governo que tenha todas as forças políticas dentro de si, senão vai repetir o erro pré-2013, que é o erro de fazer supermaiorias no Congresso – 70%, 75% de apoio –, de aceitar a entrada de qualquer partido que queira aderir e que vai receber um quinhão correspondente à sua capacidade no Congresso.

É preciso ter um governo com uma coalizão e com uma maioria no Parlamento mais enxuta e mais aguerrida. Isso vai permitir que o governo seja mais homogêneo, mais ágil, que seja mais fácil de fazer agendas transversais. E, ao mesmo tempo, isso tem um efeito colateral importante, que é obrigar a direita tradicional brasileira a se reorganizar e a disputar com a extrema-direita a hegemonia do campo da direita. A extrema-direita hoje tem hegemonia sobre o campo da direita, mas esta precisa encontrar lideranças, forças, organização e aglutinação para se tornar novamente hegemônica – uma direita não-bolsonarista e que isole a extrema-direita.

Esse movimento de um governo, e digamos que seja o governo Lula-Alckmin, de centro-esquerda, tem que ser um governo que, ao ser mais enxuto, permita que a direita tradicional se reorganize em termos democráticos. Do contrário, nós teremos muitas dificuldades. Porque, se for formada de novo uma grande coalizão, esse é justamente o caldo de cultura em que fermenta o bolsonarismo e a extrema-direita.

audiodescrição: fotografia colorida do professor Marcos Nobre
"Já existem elementos ditatoriais e autoritários no Brasil", analisa professor. Foto: Antoninho Perri

Outra dificuldade é que os parlamentares estão habituados ao esquema de emendas num volume nunca antes visto. Como o senhor avalia os rumos dessa relação entre Executivo e Legislativo, independentemente do candidato que vença?

Marcos Nobre – Eu vou voltar um pouco para que a gente possa entender o estilo de governo do Bolsonaro. Desde sempre, ele nunca teve a pretensão de governar para uma maioria. Ele sempre pretendeu governar para uma minoria, ampla o suficiente para impedir o impeachment e também para o levar ao segundo turno na eleição de 2022. Ele sempre pensou nesse grupo objetivo. E por que não governar para a maioria? Porque governar para uma minoria significativa, como 30% da população brasileira, tem dois objetivos principais.

O primeiro deles é poder manter o discurso antissistema: se você governa para a maioria, como vai dizer que é antissistema? Se governa para uma minoria, mas uma minoria significativa, pode manter o discurso antissistema e fazer com que ela se torne cada vez mais organicamente autoritária. Não são todos, dos 30% que apoiam Bolsonaro, que são autoritários. Não sabemos medir direito quantos são. É algo entre 10% e 15% do eleitorado. Então, ele tenta tornar organicamente autoritária essa parcela da população, porque é justamente isso que vai permitir, numa segunda etapa, impor a vontade da minoria para uma maioria – que é a definição de uma ditadura autoritária. Por que esses 30%? Porque, para ele, esses são os autênticos brasileiros, são os brasileiros de verdade porque estão com ele e quem o apoia é o verdadeiro brasileiro. Essa é a lógica.

Quando a gente pensa nisso, em Bolsonaro governar só para 30%, significa que todos os assuntos que não dizem respeito a essa parcela da população que o apoia, tudo aquilo que não favorece nem desfavorece essa parcela, não interessa. Ele não governa para além daquilo que interessa a essa base. E ele entrega isso para o Congresso, que passa a ter um acesso a fundos públicos que antes nunca teve. E, no fundo, é quem governa. O Executivo abriu mão de governar, entregou para o Congresso.

Qual é o efeito dessa estratégia?

Marcos Nobre – É um acordo de mútua vantagem: Bolsonaro mantém sua base e, ao mesmo tempo, não sofre impeachment, nem investigação, e o Congresso recebe mais recursos.

Mas como vai fazer se o Bolsonaro for derrotado e outro governo vier para acabar com coisas tão absurdas, como o orçamento secreto? O orçamento secreto em uma democracia é a definição de uma ditadura. A democracia não pode ter orçamento secreto por definição. Já existem elementos ditatoriais e autoritários no Brasil, além do sequestro da agenda pública. A gente não discute mais o que realmente importa. A gente fica discutindo só o diversionismo do Bolsonaro na maior parte do tempo.

Trata-se de um arranjo que favorece os dois lados. Como outro governo vai poder acabar com isso? Bom, tem que acabar, porque é um arranjo disfuncional para a democracia. Ele é funcional para um projeto autoritário de Bolsonaro. Primeiro, é preciso esperar as eleições para o Congresso, porque não sabemos qual vai ser a taxa de renovação e a composição. Aí, talvez, a gente possa recolocar a pergunta e ver sobre que nível de dificuldade estamos falando. Mas o orçamento secreto e o sequestro do orçamento público pelo Congresso precisam acabar.

O orçamento discricionário, que de fato o Executivo pode mobilizar de maneira livre, aquele não carimbado, é da ordem de 5% do total do orçamento. Já é pouco e atualmente o Congresso controla 20% desses 5%. Você pode pensar que é algo bom, porque os deputados conhecem sua base. Mas há uma quantidade enorme de recursos despejados em uma cidade e a pessoa que quebrou a perna não tem gesso no posto. Quer dizer, o dinheiro não chega para essa pessoa. Então não só o orçamento é secreto como também é ineficiente. É algo que precisa ser eliminado. A situação é muito difícil para qualquer governo que assuma depois da destruição de Bolsonaro. Mas há coisas que precisam ser feitas. Do contrário, não vai ser possível governar.

Inventar um modo de política diferente é um horizonte colocado por você. Qual seria esse outro modo?

Marcos Nobre – Um pouco eu já falei anteriormente, sobretudo sobre o que não foi feito até agora. Dando mais um exemplo que ainda não dei, o PT teve, durante os seus governos, experiências de participação, de criação de conselhos de fóruns, de conferências nacionais de Interconselhos, o que foi muito importante. Mas era um modelo baseado nas experiências dos governos petistas de 1990, que é completamente analógico. Então, se Lula vencer essa eleição e resolver refazer tudo o que o Bolsonaro destruiu – os conselhos, as conferências e os fóruns de participação da sociedade civil –, se ele tentar refazer exatamente como era nos anos 2000, vai dar errado, porque a sociabilidade, a maneira como a gente se relaciona, já não é mais analógica, é digital. Teria que pensar nesses mecanismos de participação e de deliberação num novo formato, só para dar mais um exemplo além de todos os outros que eu já dei e que estão relacionados a questões eleitorais e de comportamento dos partidos.

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Audiodescrição: imagem colorida; sobre uma mureta, dezenas de manifestantes com suas respectivas sombras projetadas ao fundo em uma parede branca (Foto: Agência Brasil)

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