O conservadorismo cristão, o antipetismo e o apoio à intervenção militar são alguns dos elementos do bolsonarismo. Acompanhando as manifestações do dia 7 de setembro desde o ano passado, o sociólogo Sávio Cavalcante, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, analisa o perfil desse movimento de massa, indicando que ele é majoritariamente branco e de classe média, vem incorporando um estrato de menor renda e pode justificar uma “ruptura democrática como se isso fosse a efetiva democratização”.
Segundo Cavalcante, a análise das manifestações ajuda a compreender as “diferenças de Bolsonaro como fenômeno eleitoral e o bolsonarismo como movimento de massa”. Este último, aponta o professor, conforma uma base de apoio para questionamento dos resultados eleitorais em caso de derrota.
Para ele, “o que unifica esses grupos em torno da liderança de Bolsonaro é fundamentalmente a radicalização do antipetismo, a forma de expressão do anticomunismo no Brasil contemporâneo”, que se constrói na direção contrária aos avanços democráticos de conquista de direitos.
No que se refere a formas de atuação do bolsonarismo, o professor destaca que a militância do movimento dispõe de “meios de comunicação, de agitação e propaganda próprios, que constroem uma realidade alternativa àquela elaborada por canais tradicionais, pelas instituições ou pela ciência”. É comum, também, que tratem a aniquilação de adversários como natural, “dado que apenas os bolsonaristas estariam no polo da pureza moral”.
Possíveis cenários após as eleições presidenciais também são analisados pelo sociólogo. “Em caso de derrota de Bolsonaro, o mais provável parece ser um cenário semelhante ao dos EUA com Trump: questionar o resultado para manter sua base social engajada para as próximas batalhas, continuar interditando alternativas de direita menos radicais e usar dessa força para barganhar sua liberdade e a de sua família quando não mais possuir as proteções que o cargo presidencial lhe oferece”, avalia.
Na entrevista que segue, Cavalcante ainda comenta o reacionarismo da classe média brasileira em relação a uma democracia mais inclusiva, o que ajudou a legitimar o golpe de 1964, e a defesa do poder irrestrito sobre a propriedade enquanto a base material do bolsonarismo, ligada, entre outros elementos, à “apologia das armas para proteção privada”.
Em relação às manifestações do 7 de setembro, o que elas mostraram sobre a base de apoio a Bolsonaro?
Sávio Cavalcante – Manifestações de rua como essa, assim como outras realizadas em apoio direto e amplo às pautas e ao governo de Jair Bolsonaro desde 2019, nos ajudam a entender um pouco melhor as diferenças de Bolsonaro como fenômeno eleitoral e o bolsonarismo como movimento de massa, ou seja, a diferença entre seu eleitorado, cujos determinantes de voto são mais complexos, porque multifatoriais e contextuais, e sua base social propriamente dita, isto é, os grupos que incorporam de maneira mais direta e integral sua pauta e dedicam tempo e recursos próprios para expressar suas posições nas redes e principalmente nas ruas de modo militante.
Dito isto, as manifestações de setembro de 22 mostram a eficácia da estratégia antidemocrática do governo em mobilizar um movimento de massa que se pretende democrático e em defesa da liberdade. Em São Paulo, 71% dos manifestantes não confiam nas urnas eletrônicas e 69% são favoráveis a uma intervenção militar em “caso de fraude nas eleições”.
Isso mostra, como ensaio e teste empírico, que Bolsonaro tem sob seu controle um potencial movimento de massa para apoiá-lo quando questionar os resultados em caso de derrota – questionamento sobre o qual já não há mais dúvidas que irá ocorrer, mas sem que se saiba qual o efeito que terá nas demais instituições e na sociedade como um todo.
Um perfil predominantemente branco, masculino, de classe média e católico foi o principal público das manifestações em São Paulo e no Rio de Janeiro, segundo pesquisa da USP/UERJ. O que aproxima esse perfil de Bolsonaro?
Sávio Cavalcante – É importante apenas ponderarmos um pouco mais sobre esse perfil, o que faço baseado nessa pesquisa, mas também por ter acompanhado in loco as manifestações de 7/9/21, 1/5/22 e 7/9/22. Sim, trata-se de uma base social majoritariamente de classe média (renda familiar acima de 5 salários mínimos), também com muitos pequenos empresários e autônomos, acima dos 35 anos e branca, o que é ainda mais visível se priorizarmos as lideranças que organizam os atos e promovem discursos em carros de som.
Porém, há indícios de aumento de participação de estratos de menor renda, e minha hipótese é de que há uma participação maior de trabalhadores autônomos, cuja experiência de precariedade e instabilidade é mobilizada pelas estratégias do atual governo. E, sobre a questão da religião, de fato, a observação in loco das manifestações encontra poucos sinais que singularizam as religiosidades evangélicas, ainda que muitos lá estejam presentes (cerca de 35%, segundo a pesquisa). O importante a destacar é a presença do conservadorismo cristão como um todo, naquilo que unifica católicos e evangélicos.
Mas, enfim, o que unifica esses grupos em torno da liderança de Bolsonaro é fundamentalmente a radicalização do antipetismo, a forma de expressão do anticomunismo no Brasil contemporâneo. Não à toa, as variações da direita tradicional acomodadas à sua maneira ao jogo democrático foram, desde 2014, sendo descartadas em prol de uma unificação de extrema direita liderada por Bolsonaro.
Esses grupos encontram em Bolsonaro – a rigor, são eles que produzem o bolsonarismo ao conferir força social a um indivíduo – a solução autoritária e reacionária aos processos de politização progressista da diferença – raça, gênero, sexualidade – e combate das desigualdades sociais que eram marcas do ciclo petista. Dialogando com as pesquisas do cientista político André Kaysel [IFCH/Unicamp], especialista no tema, podemos dizer que o anticomunismo/antipetismo é o nome da reação de extrema direita atual para impedir os avanços da democracia em direção à ampliação de direitos civis, políticos e sociais.
Quando falo em radicalização do antipetismo, isso significa: a transformação do ressentimento e do temor de desclassificação social, especialmente no caso da classe média e dos autônomos, em energia para atos supostamente heroicos de purificação da vida, da família e da nação. Possuem meios de comunicação, de agitação e propaganda próprios, que constroem uma realidade alternativa àquela elaborada por canais tradicionais, pelas instituições ou pela ciência. E agem de forma homogênea hierarquizando pautas ao calor do contexto, mesmo que não possuam um partido político puramente bolsonarista dedicado exclusivamente a esse fim. Qualquer apelo à violência e eliminação dos adversários é visto como moralmente justificável, dado que apenas os bolsonaristas estariam no polo da pureza moral. Por isso que é possível normalizar as apologias à violência e à tortura feitas por Bolsonaro, o que tornou também possível normalizar as mortes evitáveis da pandemia ante a estratégia do governo de fazer o vírus causador da Covid-19 circular o mais rápido possível.
Quais são os principais motivos da intolerância ao PT? E, tendo em vista mais um assassinato por motivos políticos contra um apoiador de Lula no dia 9 de setembro, é possível compreender que o antipetismo alimenta a violência política?
Sávio Cavalcante – Como adiantei na questão anterior, o antipetismo é sobretudo causado pelas reações a um processo social que, mesmo que limitado e não apenas protagonizado pelo PT, questionou formas tradicionais de dominação e suas ideologias (como patriarcalismo, democracia racial e meritocracia), ampliou as vozes e espaços das dissidências e de grupos oprimidos e sinalizou para uma democracia mais inclusiva.
Esse reacionarismo sempre existiu na classe média brasileira e contribuiu de várias maneiras para reproduzir o conservadorismo popular nos “de baixo”. Foi fundamental, por exemplo, para barrar os avanços sociais da democracia pré-64 e legitimar uma ditadura militar. Uma parte da classe média nunca aderiu eleitoralmente aos governos petistas e sempre questionou o fato de um líder operário “sem diploma” ocupar a presidência. Esse reacionarismo meritocrático foi levado ao extremo pelo lavajatismo [argumento desenvolvido no artigo Classe Média, meritocracia e corrupção]. A Lava Jato cumpriu um papel primordial ao dar um verniz de legalidade a métodos de exceção e conferir legitimidade, no início do governo Bolsonaro, com a ida de Moro ao Ministério da Justiça. Mesmo que depois tenha sido descartada, seus efeitos de ordem moral perduram na base social bolsonarista.
Mas é preciso dar um passo além: a radicalização da direita não se explica apenas por aquilo que aparece como gostos, preferências e moral conservadora. Todo reacionarismo tem uma base material, e a causa mais determinante, a meu ver, é a defesa do poder irrestrito sobre a propriedade. Isso explica a reação de pequenos empresários e autônomos contra intervenções do Estado (mesmo por razões sanitárias na pandemia) e a apologia das armas para proteção privada; explica a reação de classe média ante a perda do monopólio de acesso a espaços que reproduzem suas posições no mercado de trabalho (cotas em concursos e universidades, por exemplo) e aos temores também de diminuição de retorno dos investimentos que passam a fazer cada vez mais no mercado financeiro; explica a reação até mesmo mais transversal (também nas camadas populares) de perda de poder sobre os filhos, que são vistos, na tradição patriarcal (e desde os anos de 1960 e 1970 em parte da neoliberal), como propriedade dos pais e, por isso, com o destino por eles traçado.
É este, a meu ver, o fundamento da radicalização autoritária bolsonarista: tentativa de retomada de poder irrestrito sobre o uso “livre” da propriedade. Isso ajuda a entender duas outras coisas importantes: por que não é totalmente “falsa” ou “equivocada” a defesa da liberdade que faz o bolsonarismo (essa disposição fundamentou parte importante do liberalismo realmente existente nos últimos séculos) e por que tantos neoliberais embarcaram no projeto.
A ameaça de golpe perpassou tanto as falas de Bolsonaro como se expressou em cartazes de manifestantes. Que elementos são importantes para compreender a aversão do bolsonarismo à democracia e qual a sua avaliação sobre as perspectivas de efetivação de uma nova ruptura democrática?
Sávio Cavalcante – Como disse antes, o ponto mais importante é entender que a crítica à democracia existente é feita, pela base social bolsonarista, em nome do que seria uma democracia mais autêntica. Tal como no contexto do Golpe de 64, é possível, para esse campo, justificar a ruptura democrática como se isso fosse a efetiva democratização. Portanto, já não é mais razoável esperar que apelos genéricos em defesa da democracia possam reverter esse processo. O resultado a partir de agora, a rigor, depende da força que os campos poderão demonstrar nas ruas e nas instituições.
Tudo isso torna decisivo saber qual será o jogo que os militares e as polícias irão jogar quando Bolsonaro questionar o resultado em caso de derrota: preservar posições num novo governo ou dobrar a aposta? Os sinais que especialistas no tema identificam são preocupantes. Porém, o contexto internacional de hoje (especialmente na América Latina e EUA) é menos favorável à legitimação de uma ruptura democrática no Brasil. Os custos estão ficando altos e não parece haver apoio suficiente nas classes dominantes para bancá-lo até o fim.
Em caso de derrota de Bolsonaro, o mais provável parece ser um cenário semelhante ao dos EUA com Trump: questionar o resultado para manter sua base social engajada para as próximas batalhas, continuar interditando alternativas de direita menos radicais e usar dessa força para barganhar sua liberdade e a de sua família quando não mais possuir as proteções que o cargo presidencial lhe oferece.
O problema é que, quando se inicia o processo de questionamento das eleições, nem sempre é possível controlar todos os efeitos. Nos EUA, foram 5 mortos e 52 presos apenas na invasão do Capitólio.
Uma das imagens que circulou bastante no dia foi a de manifestantes bolsonaristas brancos em motociata sendo vaiados por passageiros, predominantemente negros, de um ônibus. O que esse registro, feito no Rio de Janeiro, pode nos dizer sobre os projetos das principais forças políticas que disputam as eleições presidenciais neste ano?
Sávio Cavalcante – Diz muito, mas é preciso ser realista e evitar algumas ilusões. Principalmente por tentar monopolizar as atenções do conservadorismo de base cristã, o bolsonarismo pode e tem penetrado nas classes populares e mesmo nos grupos mais afetados negativamente por suas políticas. As fontes de agitação e propaganda bolsonaristas, geridas em escala e ritmo industrial, são potentes em criar imagens alternativas que dissimulam os problemas causados por seu governo.
Agora, por outro lado, e o mais importante, é que a imagem explicita a força do sentimento de injustiça e a revolta que explode com a enorme desigualdade social, com as políticas econômicas que reproduzem a pobreza dos trabalhadores e as opressões que afetam mulheres, negros e dissidências de gênero e sexualidade. Mostra também uma juventude insubmissa. Esse sentimento tem sido talvez o mais importante freio às pretensões eleitorais de Bolsonaro, que não consegue até agora reverter o apoio majoritário a Lula no estrato de renda abaixo de 2 salários mínimos, entre mulheres e pretos/pardos.
Lula e o PT, goste-se ou não, representam, no momento, a única alternativa real para um projeto de país em que as diferenças possam encontrar um solo comum efetivamente democrático, mais inclusivo e socialmente justo. Não é o suficiente, mas é o necessário; um ponto de partida básico para reconstruir o país.