Em maio de 2019, o professor Fernão Pessoa Ramos, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, escreveu um artigo sobre o filme “Imagem e Palavra” e pensou em intitulá-lo “O último Godard” – uma referência à espécie de código usado por cinéfilos dos anos 60 e 70 que, quando encontravam outros aficionados, indagavam se os outros haviam visto o último filme de Godard, aquele que havia acabado de chegar aos cinemas ou que circulava pelos cineclubes. O professor, que temeu ser mal interpretado, acabou decidindo que o artigo – publicado no Jornal da Unicamp – deveria chamar-se “O novo Godard”. Ironicamente, porém, o ensaio tratou daquele que ficará conhecido como o último longa metragem de Godard.
O genial diretor franco-suíço morreu no último dia 13 de setembro, aos 91 anos, após suicídio assistido, na pequena cidade suíça de Rolle. A expressão “o último Godard” remete a um período muito específico da história do mundo e do cinema, diz o professor do Departamento de Multimídia e Comunicação do IA. “Nos anos 60, o cinema teve uma dimensão catalisadora de toda uma geração – em que as artes todas desembocavam no cinema. Todo mundo queria ver cinema, queria ser cineasta”, diz Ramos. “Por isso, havia uma expectativa muito grande sobre os novos filmes, especialmente os de Godard”, acrescenta.
“O Godard é um pouco o Leonardo da Vinci do século 20”, comenta o professor. “Ele reúne um conjunto de artes e de tendências e passou por tudo: de Rolling Stones a Mao Tsé Tung. Da guerra da Bósnia à Bíblia. Ele pegou tudo”.
“Foi uma das principais figuras de uma vanguarda central do cinema do século 20, que é a Nouvelle Vague, tendo sido depois reconhecido por Hollywood e por quase todos os festivais no mundo. Ganhou, inclusive, um Oscar pelo conjunto da sua obra, que não foi receber. Teve um vínculo intenso com o neorrealismo italiano e com o documentarismo de vanguarda, ou ensaísmo, através do grupo Dziga Vertov (diretor soviético dos anos 1920/1930 que Godard homenageou). Teve igualmente um lado de ficção muito forte (embora não através de filmes com enredo linear) em que foi capaz de lidar com as dificuldades de seu tempo”, conta Ramos.
“Godard é único. Ele viveu um momento histórico do cinema, os anos 50, 60, 70, período em que o filme, se sobrepondo ao cinema, teve seu auge”, acrescentou. Presidente fundador da Sociedade Brasileira de Cinema e Estudos de Mídia, Ramos não trata a morte com fatalismo. “As coisas mudam. Eu, que esperava na minha juventude o último Godard, agora já estou com cabelos brancos”, argumenta ele.
“Já se passaram muitos anos, e não é possível que a gente queira que continue tudo igual. O cinema acabou? Não. As pessoas continuam indo ao cinema, e há, ainda, a permanência muito forte do filme através do streaming e de outras mídias. Nas plataformas digitais, além dos filmes, também há as séries, que vêm do filme-cinema, são narrativas audiovisuais seriadas e extensas”.
O importante, diz ele, foi a história que Godard construiu. Segundo o professor, a influência da Nouvelle Vague – e especialmente de Godard – foi imensa, no mundo todo. “A Nouvelle Vague foi o primeiro dos ‘Cinemas Novos’. Você tem o novo cinema brasileiro, o novo cinema tcheco, o novo cinema inglês, o polonês, o norte-americano; tudo nos anos 1960. E todos eles têm uma influência muito forte da Nouvelle Vague”, explica.
Para Ramos, Godard é figura central na Nouvelle Vague. “Os Incompreendidos, de François Truffaut, de 1958, é o filme inaugural da Nouvelle Vague, mas À bout de souffle (Acossado) – que quer dizer sem fôlego, no sentido de que não há mais ar para respirar –, que é um pouco o ritmo do filme feito em 1960, é o que detona propriamente o movimento em seu lado mais inovador, que irá conseguir lidar com o pós-1968”.
A Nouvelle Vague, diz Ramos, parte de duas vertentes. Uma delas é a relação com o realismo, principalmente o neorrealismo italiano, que era uma nova forma de se fazer cinema na rua, com orçamento baixo, sem roteiro, fotografia precária, câmera na mão. “Tudo isso produz uma estilística que a gente poderia chamar de realista, no sentido de que ela é mais próxima da vida, do cotidiano, das improvisações, das indeterminações que cercam o dia-a-dia das pessoas”, explica o professor.
A outra vertente se refere a uma densidade intertextual muito forte. “A Nouvelle Vague incorpora a história do cinema. Por isso, afirmo que Acossado é um filme pioneiro em termos de inaugurar o cinema moderno, porque dialoga com a história do cinema, em particular com o (filme) noir, com o musical, com o policial, com a narrativa clássica, com o cinema hollywoodiano; enfim, a modernidade cinematográfica por excelência, ao contrário das modernidades do início do século – do cinema russo ou o expressionismo alemão, que têm um diálogo mais forte com outros campos artísticos”, diz ele.
Para o professor, a característica central de Acossado é essa proposta mais realista, dialogando com as novas tecnologias que aparecem, por exemplo, nas câmeras móveis, na maior sensibilidade fotográfica da película e no diálogo com a história do cinema. Desde seu surgimento, a Nouvelle Vague exerce uma influência muito forte no mundo e continua ecoando, segundo avaliação do professor Fernão Ramos.
“Mais contemporaneamente, temos o Quentin Tarantino (diretor norte-americano, que criou a empresa de produção cinematográfica “Band Apart”, uma brincadeira com o nome do clássico filme de Godard, Bande À Part, de 1964). E qual o eixo que o Tarantino pega? A intertextualidade de Godard. O Acossado é puro Tarantino. É aquela coisa fora da gravidade; bang-bang, essa brincadeira com a narrativa que Godard sempre gostou de fazer. Mas, é preciso lembrar, esse recorte não esgota a estilística de Godard”, avisa.
O professor diz que, no caso brasileiro, a influência de Godard foi maior ainda. O Cinema Novo surgiu no Brasil de forma precoce. Enquanto os novos cinemas são mais tardios – mais para o final da década de 1960 ou início dos anos 70 –, o Cinema Novo do Brasil data do início dos anos 60. Glauber Rocha já havia sido premiado em Cannes em 1964 e reconhecido internacionalmente, lembra ele.
Para Ramos, apesar de ocorrerem quase simultaneamente, a influência da Nouvelle Vague pode ser sentida no cinema novo brasileiro de forma muito direta. “Você pega Deus e o Diabo na Terra do Sol (de Glauber Rocha, de 1964) e vê que a fragmentação, a sobreposição de vozes, as formas narrativas, tem tudo a ver com as propostas do Godard. Isso sem falar da participação do Glauber no filme O Vento do Leste (realização de 1970 do Grupo Dziga Vertov )”, lembra o professor.
“O Glauber fala pelo cinema do terceiro mundo. Veja. Não é nem da América Latina. Quem é o porta voz do cinema do 3º mundo à época? O Glauber e toda a sua geração. Além disso, ainda tem o Cinema Marginal. Daí, a influência é ainda maior”, afirma. “A relação entre Pierrot le Fou (que no Brasil ganhou o título O Demônio das Onze Horas) e o Bandido da Luz Vermelha é imensa. As similaridades são evidentes. Influência de Godard”, garante.
O professor, aliás, brinca com a tradução do título do filme. “Eu até hoje me pergunto o que passou pela cabeça do tradutor ao chamar Pierrot le Fou de Demônio das Onze Horas. Por que 11 horas? Por que demônio?”, questiona ele, rindo.
Além da Nouvelle Vague
Fernão Pessoa Ramos avalia, ainda, que a carreira do cineasta foi além da Nouvelle Vague. “O Godard vem da Nouvelle Vague, mas ela, como todo movimento cinematográfico, é restrita no tempo. O mesmo ocorre com o Cinema Novo. Você pode perguntar: Glauber foi maior que o Cinema Novo? Esses movimentos não têm uma data de nascimento, como os seres humanos, que contam sua idade a partir do momento em que saem do corpo da mãe. Também não têm características que se encontram nos livros, como as que separam os mamíferos dos répteis, por exemplo. Não se pode dizer Nouvelle Vaugue é isso, isso, isso.... Ou dizer que não é isso, não é isso... Como o romantismo, o barroco. Existem características fluidas que definem a Nouvelle Vague. Algumas características bem fortes definem o movimento de forma clara, mas não é uma definição matemática”, argumenta ele.
“Há uma parte da carreira que Godard desenvolve no núcleo da Nouvelle Vague, influenciado pela Nouvelle Vague e fazendo a Nouvelle Vague, mas ele vai muito além. Depois, cria um grupo que se quer maoísta, um maoismo do se fazer cinema, e o Truffaut, por exemplo, está fazendo filmes clássicos. O Rohmer (Éric Rohmer – outro integrante da Nouvelle Vague) vai fazer um outro tipo de filme, até com viés de dilemas religiosos, cristãos. E o Godard segue a carreira dele, e neste sentido, ele vai bem além do núcleo que compôs o jovem Godard em seu âmago”, afirma o professor.
A radicalidade da vida
Fernão Pessoa Ramos diz ter ficado perturbado com a morte de Godard, mas avalia que as circunstâncias (suicídio assistido) foram coerentes com a radicalidade de sua vida. “Eu fiquei um pouco chocado com a morte dele. É como se parte de nossa geração tivesse ido embora. Mas essa história não se acaba”, diz ele.
“Fiquei impressionado com a forma como ele morreu. Não destoou da vida dele. Foi coerente com a carreira, no sentido de que, de uma certa maneira, ele quis ter controle sobre o momento em que desligaria. Como o maior ‘metteur en scène’ de sua geração, tenho a impressão de que construiu uma encenação, uma mise-em-scène, também para sua morte. Num momento em que se sentiu, no fundo da alma, profundamente esgotado e frágil. Acho que chegou uma hora em que ele disse: chega. E saiu como entrou, encenando a farsa da vida”, afirmou o professor.
“Foi um fecho. Não vou dizer que foi um fecho de ouro, porque não é o caso, não existe isso. Mas foi um fecho em sintonia com a sensibilidade artística e a estética que pregou toda sua vida. O Godard sempre teve esse lado radical. Aí que está a sintonia na morte: essa radicalidade. Não teve a violência, só a radicalidade da cena”, finalizou o professor.