O neoliberalismo provocou o aprofundamento das desigualdades, produziu uma descrença cada vez maior nas soluções políticas e acabou alimentando o surgimento de governos autoritários de extrema-direita. A avaliação é da economista Leda Paulani, professora da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP, em entrevista à série Horizontes Contemporâneos.
“Esses autoritarismos de extrema-direita são filhotes do neoliberalismo”, disse a economista, que neste mês de setembro participou do seminário “Discutindo o Brasil e o Mundo” – evento que integrou a série de atividades de comemoração pelos 40 anos da Editora da Unicamp.
Segundo ela, nas chamadas democracias liberais, existe a ideia de que, independentemente do partido, cada governo irá executar a mesma política. Isso significa que, para aqueles que estão na base do sistema – que, na avaliação da professora, sentem-se “perdedores” –, a política não faz mais diferença. “Portanto, você tem uma descrença na política, e isso leva, evidentemente, a decisões autoritárias”, diz.
A professora cita o filósofo, historiador da economia e antropólogo econômico húngaro Karl Polanyi, que afirma que uma sociedade guiada só pela ideia de que os mercados se autorregulam é uma sociedade fadada à falência. “Ela não se sustenta, porque o mercado não pode ser tão importante ao ponto de se sobrepor à sociedade. Ela não resiste, desmantela-se. E o autoritarismo é o desmantelamento da sociedade”, explica a professora.
Em um alerta, a professora afirmou que o presidente Jair Bolsonaro pode até perder as eleições, mas o bolsonarismo “veio para ficar” e deve permanecer no Brasil “por muito tempo”.
Leda Paulani conta que, em 2008 – quando uma crise iniciada no mercado imobiliário norte-americano transbordou para o sistema financeiro do país e exigiu intervenção direta do Estado –, foi instada a responder se concordava com a afirmação da colega economista Maria Conceição Tavares, segundo a qual a crise era uma evidência de que o neoliberalismo havia se esgotado. Na época, Leda Paulani foi categórica ao dizer que não se tratava de esgotamento.
Hoje, ela já não é assim tão categórica. “Eu diria que a mesma pergunta colocada hoje não tem uma resposta tão fácil. Não foi difícil para mim, àquela altura, dar essa resposta: ‘olha, não é o esgotamento do neoliberalismo’. Hoje, a resposta é mais difícil”.
Por três razões, explica ela. A primeira é o agravamento daquilo que chamou de “crise estrutural do capitalismo”; em segundo lugar, o surgimento da “era das pandemias”; por fim, as mudanças no tabuleiro geopolítico internacional.
Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.
A sra. diz que a extrema-direita é filhote do neoliberalismo. Quais as indicações que a levaram à essa conclusão?
Leda Paulani - Se a gente se lembrar do pensador clássico Karl Polanyi, ou se recorrermos à pensadora moderna Wendy Brown – eles irão dizer. Qual o resultado de quatro décadas de neoliberalismo – sendo que depois de uma grande crise, se verificou o aprofundamento da ideologia, dessas práticas, dessas receitas de bolo?
O resultado disso é uma crescente descrença na política. Porque, nas chamadas democracias liberais do centro do sistema – ou mesmo da periferia do sistema – existe a ideia de que, entra governo e sai governo, seja o partido que for, a mesma política será executada.
Ou seja, para aqueles que se sentem perdedores, que estão na base desse sistema, a política não faz mais diferença. E se a política não faz mais diferença, a solução é insurgir-se contra ela. [Jair] Bolsonaro ganhou aqui no Brasil dizendo que era contra a política. O que é uma mentira, já que ele esteve os 30 anos anteriores no Congresso Nacional. Só que ele conseguiu passar a imagem de que era um cara fora da política e, portanto, mais confiável que alguém de dentro da política.
Portanto, você tem uma descrença na política, num primeiro ponto. E isso, evidentemente, leva a decisões autoritárias. A política, por definição, é a arte do diálogo. Agora, se isso não vale mais, se é preciso insurgir-se contra a política, é preciso uma autocracia, um governo ditatorial, tirânico, que imponha a lei pela força.
A outra coisa é que os nacionalismos começam a ser mais valorizados, porque sempre buscam inimigos sobre os quais deve recair a culpa pela situação ruim.
Nos países europeus, por exemplo, a culpa recai sobre os imigrantes – são os árabes, os africanos, não importa. O mesmo ocorre na América Latina. [Donald] Trump queria construir um muro para impedir os mexicanos de entrarem. Ou então é o poder branco – os negros seriam os culpados.
Sempre há algum grupo social, ou alguns grupos sociais como culpados. No caso do nazismo, aliás, havia perseguição aos judeus, mas não apenas a eles. Hitler e as milícias hitlerianas também perseguiram negros, homossexuais e socialistas. Ele perseguiu igualmente toda essa gente.
Enfim, são grupos sociais que acabam sendo responsabilizados pelos problemas. Não é mais o governo, não é mais o sistema, não é mais o capital. São determinadas pessoas e, assim, elas precisam ser eliminadas. É de onde vem, então, o autoritarismo, a violência, a necessidade de exterminar o outro.
Então, esses autoritarismos de extrema-direita são filhotes do neoliberalismo.
[Theodor] Adorno diz que o fascismo é um mal latente no sistema capitalista. Ele está sempre ali, à espreita. Dependendo de como a coisa é conduzida, ele vem à tona ou não.
E, no caso do neoliberalismo, depois de três décadas – os primeiros casos de governos autoritários começaram a surgir a partir de 2010 – aparecem os governos autoritários.
E de que maneira Polanyi explica o fascismo? Ele diz que uma sociedade guiada só pela ideia de que os mercados se autorregulam, que o mercado resolve tudo, é uma sociedade fadada à falência. Ela não se sustenta, porque o mercado não pode ser tão importante ao ponto de se sobrepor à sociedade. Porque ela não resiste. Ela se desmantela. E o fascismo, o autoritarismo, é o desmantelamento da sociedade.
Essa força de direita irá conseguir se manter pela próxima década, por exemplo? Observando o cenário atual, é possível fazer algum tipo de previsão de quanto tempo isso ainda deve durar?
Leda Paulani – Para falar sobre isso, é preciso levar outros fatores em consideração. Um deles é a questão geopolítica. É óbvio que a força do neoliberalismo está associada à força dos Estados Unidos como, digamos, uma espécie de líder mundial, capaz de pilotar a locomotiva capitalista.
Se isto está sendo colocado em xeque, se você tem transformações no plano geopolítico que começam a questionar o poder norte-americano, então vocês podem dizer que o neoliberalismo perde força e, dependendo de como a política andar, você também poderá destruir o filhote do neoliberalismo.
É o que a gente espera que aconteça aqui, no Brasil. Agora, uma coisa é certa aqui, no Brasil. Bolsonaro pode ser derrotado (nas eleições), mas o bolsonarismo veio para ficar. E ele vai ficar muito tempo por aí.
Ou seja, se um eventual governo Lula der muito errado – ou pelo menos um pouco errado – o bolsonarismo pode voltar.
A população está votando contra o Bolsonaro por causa da economia e da pandemia, mas não porque ele, Bolsonaro, seja antidemocrático. Não porque, de fato, ele não goste da democracia.
Esse é um argumento nosso, de intelectual, de professor, de estudioso. A população como um todo nem sabe o que é isso. Está votando contra o Bolsonaro pela forma como ele geriu a pandemia, que foi tenebrosa, e a economia, que foi um desastre. É contra isso que eles estão votando.
No caso de um governo Lula, ninguém vai levar em conta a seguinte situação: a economia pode não estar tão boa, mas tudo bem, ele não é um homem que ameaça destruir a democracia.
Esse não é um argumento que faça a diferença. A maior parte da sociedade brasileira não dá a isso o valor que tem, por desconhecimento, por ter um nível de informação muito baixo. Então é muito difícil fazer qualquer previsão sobre o rumo que a extrema-direita irá tomar.
Também tem a ver com a questão ambiental – que vem se agravando muito rapidamente, e não vai dar mais para os governos ignorarem isso. Ou seja, transformações terão que acontecer no sistema.
De que maneira?
Leda Paulani – A lógica capitalista é contrária à preservação dos recursos. Ela é contrária à preservação do meio ambiente, por definição. E o agravamento da questão ambiental irá impor limitações ao sistema, de alguma forma. Pelo bem ou pelo mal.
Agora, como isso ocorrerá, ou de que forma ocorrerá, ainda não é possível saber. A verdade é que deverá haver uma frequência de desastres ambientais cada vez maior.
A sra. acha que o neoliberalismo já se esgotou? Ou, pelo menos, que está muito próximo disso?
Leda Paulani – O que se chama de crise do neoliberalismo, na verdade, tem por detrás uma outra crise, que a gente que trabalha com economia política avalia se tratar de uma crise do processo de acumulação capitalista. É uma crise que a gente chama de sobreacumulação.
A crise de 2008 foi um pico desse processo prolongado de crise. Na realidade, temos um processo prolongado de crise no capitalismo – que nunca mais recuperou seu vigor depois dos anos 1970. Por isso, alguns estudiosos falam de uma crise estrutural do capital.
O neoliberalismo foi uma forma de lidar com essa crise. Foram mudanças que ocorreram na institucionalidade da vida capitalista como forma de enfrentar a crise. Vieram mudanças na relação Estado x mercado, no papel do Estado e em relação também aos trabalhadores, que passaram a ter menos direitos, por exemplo.
E esse modo de gestão teve consequências, que foram várias e ruins do ponto de vista social. A desigualdade se aprofundou tanto dentro de cada país, como entre os países. Então, você tem como resultado do neoliberalismo o aprofundamento da desigualdade, um agravamento da crise ambiental, sem resolver o problema do processo de acumulação.
Então, em 2008, quando me perguntaram se o neoliberalismo tinha acabado por conta da crise, eu disse não. E disse que não era o fim, porque a base do sistema continuava a ser a riqueza financeira. E o neoliberalismo é uma forma de gestão do capitalismo adequada à base, que atende aos requisitos desse tipo de riqueza. Então não dava, naquele momento, para dizer que havia um esgotamento do neoliberalismo. E não houve.
O que houve?
Um aprofundamento das políticas neoliberais no período posterior à crise. Basta ver o que aconteceu com a Grécia, no âmbito da zona do euro. E mesmo aqui, no Brasil, que a gente teve um golpe para que um programa ultraliberal trazido pelo Temer [ex-presidente Michel Temer] pudesse ser implantado.
Então, não houve a morte do neoliberalismo, pelo contrário. Agora, a situação é diferente. Porque a gente tem mais dois elementos que vêm complicar esse cenário, além dos efeitos da crise de 2008.
Um deles é aquilo que a gente pode chamar de era epidêmica ou fase epidêmica do capitalismo. Porque a questão da pandemia da covid-19 talvez tenha sido o exemplo mais gritante, mas a gente tem vários surtos de epidemias do tipo coronavírus, desde o começo dos anos 2000 – a primeira em 2001.
E essas pandemias estão associadas com o desequilíbrio ambiental, que também não está sendo resolvido, porque a lógica do mercado vai contra a lógica da preservação do meio ambiente, dos recursos naturais.
Além disso, o que é preciso ter para que se possa enfrentar uma pandemia? É preciso ter Estado, é preciso políticas públicas, senso de comunidade, de posicionamentos coletivos. E tudo isso vai contra a lógica capitalista – contra a lógica neoliberal.
E o mundo provou isso. A história revelou isso, à revelia daqueles que defendem o modelo neoliberal.
Então esse é o primeiro elemento que se associa a esse momento de crise aguda da acumulação capitalista.
O segundo elemento é a mudança no panorama geopolítico mundial. No período pós-crise de 2008, há uma reafirmação inconteste da liderança chinesa, e há, também, mais recentemente, uma afirmação do poderio russo por conta da guerra da Ucrânia e o fato de a Rússia ser a potência bélica que possui mais armas nucleares. Você tem uma mudança nesse tabuleiro.
É inegável que os Estados Unidos vêm perdendo poder nesse novo desenho. Os analistas dessa cena internacional dizem que não teremos mais um mundo unipolarmente comandado pelos Estados Unidos, mas sim um mundo multipolar.
E, num mundo multipolar, o neoliberalismo não irá funcionar. Porque o neoliberalismo está associado à globalização, está associado à ideia de que os estados-nação perdem poder, está associado à ideia de que o poder dos capitais é maior e atravessa tudo.
Então, essa mudança no cenário geopolítico também irá se contrapor às permanências do neoliberalismo. Eu digo o seguinte: se há 14 anos era fácil responder sobre se se tratava do fim do neoliberalismo, hoje a resposta já é mais complicada, porque a gente tem esses dois novos elementos que podem indicar, sim, que alguma mudança mais profunda pode acontecer.