Neste final de semana, terá início na Unicamp mais uma edição do evento Meninas SuperCientistas, que visa incentivar a presença feminina nas áreas de exatas, tecnologia e engenharias. Ao longo de cinco sábados, entre os dias 12 de novembro e 10 de dezembro, o projeto irá receber alunas de escolas públicas e privadas de Campinas e região para uma imersão no ambiente científico da Universidade. Este ano, o encontro inclui palestras sobre temas como astrobiologia e inteligência artificial, oficinas de lançamento de foguetes e cultivo de microrganismos, além de visitas ao acelerador de partículas Sirius e a laboratórios e espaços de ciência do campus.
O evento, que está em sua terceira edição, é organizado por alunas, funcionárias e professoras da Unicamp preocupadas com a baixa representatividade feminina nas chamadas STEM, sigla em inglês para Ciência, Tecnologia, Engenharias e Matemática. Para se ter uma ideia, na Unicamp, garotas responderam por apenas 33,8% das matrículas realizadas nos cursos de exatas em 2022, 30,4% nas engenharias e 39,5% nas tecnológicas. Essa discrepância é ainda mais visível quando se analisa cursos específicos: elas são apenas 6,5% das matriculadas este ano na Ciência da Computação, 11% na Engenharia Elétrica e 18% na Tecnologia em Análise e Desenvolvimento de Sistemas.
De acordo com a idealizadora do projeto, a estudante de Matemática Aplicada e Computacional Marcela Medicina, embora seja importante incentivar toda a sociedade em relação às ciências, as meninas são desestimuladas a entrarem nessas áreas. Ela relata que, ao ingressar no curso de matemática, após ter passado um semestre nas Ciências Sociais, se surpreendeu ao ver que em muitas ocasiões era a única mulher na sala de aula, além de ter passado por muitas situações de hostilidade. “A gente quer incentivar as meninas, criar uma rede de apoio para que no futuro esse ambiente esteja transformado para elas. Para que esteja melhor do que quando eu entrei”, argumenta.
Marcela criou o Meninas SuperCientistas em 2019, inspirada no Meninas Com Ciência do Museu Nacional. Na época, ela esquematizou um rascunho com base na programação original, contando com o apoio de duas amigas para a criação do site e das artes, além do patrocínio do Museu Aberto de Astronomia de Campinas. Apesar de acreditar que não seria levada a sério por ser aluna da graduação, Marcela foi atrás de apoio institucional da Universidade, redigindo um relatório com dados da ONU (Organização das Nações Unidas) e da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) sobre a presença de mulheres na ciência. Ela enviou esse documento para a docente Anne Bronzi, do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (Imecc), que se tornou a primeira professora a integrar o projeto.
O Meninas SuperCientistas acabou se tornando um sucesso, recebendo mil inscrições apenas na primeira edição, das quais 50 foram selecionadas, por sorteio. Contabilizando todas as edições, o projeto já recebeu mais de 5.200 candidaturas. Para Marcela, esse resultado foi uma surpresa porque tudo aconteceu muito rápido. “Eu tive a ideia em fevereiro e o evento começou em março”, relata a universitária, que mantém até hoje vínculo com as participantes. “A gente se apaixona pelas meninas e o amor é recíproco, porque a gente recebe tanto carinho, é muito gratificante. E elas seguem a gente nas redes sociais e mandam atualizações sobre o que estão fazendo. Acho que elas realmente nos enxergam como as amigas cientistas da universidade”, conta.
Desmistificando a imagem do cientista
Este ano, o Meninas SuperCientistas irá receber 65 alunas do Ensino Fundamental II. Segundo dados do Relatório Decifrando o Código, publicado em 2018 pela Unesco, é nessa fase que as meninas começam a perder o interesse pelas STEM e que começa a cair o desempenho escolar delas nessa área. “Minha hipótese é que isso tem relação com o fim da infância”, propõe Ana Augusta Xavier, uma das coordenadoras do projeto. “Criança é mais curiosa, não tem vergonha de errar, descobrir, fazer perguntas. E a base da ciência é o questionamento. Quando elas começam a amadurecer, cai a autoestima e elas ficam mais retraídas”, acredita.
Ana Augusta é pesquisadora da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp e participa do evento desde o início, primeiro como monitora e depois como organizadora. Apesar de ser da farmácia e bioquímica, área formada majoritariamente por mulheres, ela conta que sempre se incomodou com o fato de os cargos de liderança, como os de chefes de departamento e coordenadores de laboratório, serem ocupados por homens na maioria das vezes. O chamado teto de vidro, mecanismo que dificulta o acesso de mulheres a posições de comando, foi o que a sensibilizou a fazer algo para mudar esse cenário.
Apesar de o evento ser organizado totalmente por mulheres, com o objetivo de questionar a imagem do cientista como um homem branco de jaleco, Ana Augusta defende que esses homens em cargos de comando também podem contribuir para o projeto, sensibilizando-se sobre a importância dele e facilitando os processos para realização do evento dentro de suas instituições. “Eu acredito que essa sensibilização ajudaria não somente na questão do apoio financeiro, mas também na própria realização do evento, na liberação de espaços, por exemplo. Existem muitas coisas que não precisam ser tão burocráticas, mas acabam sendo, e a contribuição deles agregaria muito”, propõe.
A importância da contribuição também se estende à comunidade a que essas alunas pertencem. Um dos incômodos sentidos pelas organizadoras do Meninas SuperCientistas era o fato de que, após essa imersão na Unicamp, as meninas voltavam para seus ambientes originais, nos quais nem sempre o prospecto de ingresso em uma universidade ou de seguir carreira científica é visto como uma algo palpável, deixando-as então bastante isoladas. Por isso, uma novidade dessa terceira edição é que o último dia do evento irá receber a visita dos pais das e responsáveis pelas alunas, que poderão assim conhecer a Universidade e as formas de ingresso nela.
Entre as atividades a serem realizadas nesse dia, contam-se palestras de representantes da Comissão Permanente Para os Vestibulares da Unicamp (Comvest), da embaixadora da Ilum Ana Carolina Zeri (a escola de ciências do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais-CNPEM), e da professora Sonia Guimarães, do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). “Esperamos que essas meninas, quando voltarem para casa, não se sintam tão sozinhas e desanimem de seus objetivos. Porque aqui elas encontram não só na gente, mas também nas outras meninas, um grupo ao qual podem pertencer e que gosta de ciência tanto quanto elas”, comenta Ana Augusta.
Experiência Online e Perspectivas
Em 2022, o Meninas SuperCientistas está retomando suas atividades presenciais. Em 2020, o evento teve que ser paralisado após o primeiro encontro devido à pandemia de covid-19 e só retornou no ano seguinte, de maneira online. Embora essa transição tenha sido positiva do ponto de vista de alcance – foi possível transmitir o evento para pessoas de fora de Campinas, via canal de YouTube, e contar com palestrantes externas –, o modelo virtual quebrou a característica mais importante do evento, que é criar vínculos entre as participantes e possibilitar que as meninas estejam no ambiente universitário.
As organizadoras relatam que frequentemente são questionadas sobre a possibilidade de ampliar a quantidade de alunas recebidas nos encontros, mas, além da falta de estrutura física, isso reduziria a qualidade e proximidade da interação entre as participantes. Ainda assim, o projeto está com planos de aumentar o número de edições realizadas por ano. “A gente não imaginava o potencial de transformação que o projeto tem, a quantidade de inscrições que íamos receber e a repercussão que ele ia gerar. Com isso, a gente começou a sonhar bem grande e a escalar o projeto e a querer fazer muita coisa legal”, antecipa Marcela.
Atualmente, elas estão redigindo um projeto de mentoria para que as meninas tenham o acompanhamento de cientistas após a participação no evento. Como as alunas contempladas estão em uma faixa etária ainda distante do processo de escolha de uma carreira profissional – a primeira turma, de 2019, só começará a prestar o vestibular em 2023 –, há a preocupação de que esse intervalo de tempo possa fazer com que elas percam o interesse pela área. Embora o Meninas SuperCientistas mantenha o vínculo com as estudantes via WhatsApp e redes sociais, o objetivo é haver um projeto mais estruturado de acompanhamento escolar dessas meninas.
Para a execução dessas iniciativas, o Meninas SuperCientistas conta atualmente com o financiamento da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp e da empresa Eppendorf, que produz material de laboratório. Além disso, o projeto foi contemplado pelo Edital Decolas Extras, do Fundo Patrimonial Patronos da Unicamp, voltado à promoção da educação e do desenvolvimento humano e técnico na Universidade. Nos últimos anos, elas também conseguiram aumentar o tamanho da equipe envolvida, o que está permitindo estruturar o projeto de modo a torná-lo mais presente nas redes sociais. Com isso, elas esperam conseguir disseminar a ideia do projeto para outras instituições. “Eu espero que, da mesma forma com que me deixei inspirar, o Meninas SuperCientistas inspire estudantes, docentes e funcionárias de outras universidades. E, por último, o que eu mais espero é que as meninas dominem o mundo”, brinca Marcela.